quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O Animal Cordial

"O Animal Cordial" (2017) dirigido pela estreante em longas-metragens Gabriela Amaral Almeida é o primeiro slasher feito por uma mulher no Brasil e, sem dúvidas, um exemplar potente para indicar sem medo àqueles que ainda acham que o cinema brasileiro carece de criatividade e ousadia. A atmosfera tensa coroada por brilhantes interpretações garantem um arrepio na espinha diante do quão fácil é o ser humano se tornar um animal selvagem.
São Paulo. Inácio (Murilo Benício) é o dono de um restaurante de classe média, por ele gerenciado com mão de ferro. Tal postura gera atritos com os funcionários, em especial com o cozinheiro Djair (Irandhir Santos). Quando o estabelecimento é assaltado por Magno (Humberto Carrão) e Nuno (Ariclenes Barroso), Inácio e a garçonete Sara (Luciana Paes) precisam encontrar meios para controlar a situação e lidar com os clientes que ainda estão na casa: o solitário Amadeu (Ernani Moraes) e o casal endinheirado Bruno (Jiddu Pinheiro) e Verônica (Camila Morgado). Entre a cruz e a espada, Inácio - o homem pacato, o chefe amistoso e cordial – precisa agir para defender seu restaurante e seus clientes dos assaltantes.
Percebe-se algo pulsante desde o início, a relação entre patrão e empregados, há algo querendo se libertar, principalmente de Inácio e da personagem Sara, que puxa o saco de Inácio e o olha com desejo, já Djair não aguenta mais as condições em que trabalha, sem hora pra ir embora, o patrão dizendo que as receitas são deles e também o preconceito. Inácio é um ser aparentemente tranquilo apesar de conduzir o restaurante com pulso firme, mas conforme a noite avança o percebemos estranho, a cena em que ele se olha no espelho é poderosa e aí parece despertar algo diferente. Enquanto os empregados estão doidos para ir pra casa, com exceção de Sara, há um cliente comendo um coelho e um casal tomando vinho e reclamando do ambiente. O tempo vai passando e eles continuam sentados, até que dois dos empregados saem com um saco de lixo pela frente irritando Inácio, logo Djair sai também da cozinha e senta no balcão, os ânimos estão exaltados até que tudo culmina num assalto, Inácio por impulso tenta desarmá-los e logo sugere amarrá-los, desesperados alguns pedem para chamar a polícia, só que o dono do restaurante se recusa, ele quer dar uma lição nos meliantes. Como nem todos cooperam com Inácio ele decide amarrá-los com a ajuda de Sara e daí pra frente observamos o como os personagens se comportam, mudando conforme o rumo dos eventos.

Djair é justo e lidera a cozinha com as receitas de sua família, por isso Inácio de certa forma é dependente dele, o funcionamento do restaurante se dá pela capacidade e talento de Djair, isso o irrita e até parece invejá-lo, mas ele também não gosta de sua forma de ser, os seus cabelos compridos o enoja profundamente, mas no cotidiano tudo é velado e as relações seguem cordialmente, até que a noite do assalto muda tudo e o que estava adormecido levanta-se e se mostra da pior maneira. Sara fantasia a oportunidade do seu chefe a enxergar e faz o que ele pede e se torna tão selvagem quanto, Inácio e Sara deixam de lado todas as regras sociais e morais e mergulham no desespero de suas infelicidades.
Murilo Benício neste filme mostrou uma faceta que até então, particularmente, não havia visto ainda, está perfeito na pele de Inácio, suas feições e olhares antes de acontecer o assalto o traduzem para nós, aliás todos estão espetaculares, Irandhir Santos e Luciana Paes também se destacam poderosamente.

"O Animal Cordial" não é somente um slasher ou um thriller, também carrega uma boa dose de crítica social, as relações entre patrão e empregados, a angústia gerada entre classes sociais, como a cena do casal rico no restaurante debochando de Sara, esta que se submete a Inácio sem ser vista, já Inácio dependente de Djair, o responsável pelo restaurante ir pra frente, e este mesmo com condições de trabalho ruins e todos os olhares reprovadores por conta de sua figura se mantém no emprego. Essa tensão entre eles é o que faz o desabrochar de cada um ser ainda mais perturbador e suas ações cada vez mais perversas, cujas cenas maravilhosas são regadas a muito sangue, erotismo e pitadas de ironia.
O medo, a infelicidade e o desespero quando instalados no ser humano o leva em momentos cruciais a realmente revelar um lado do qual se mascara no cotiano devido as regras sociais e morais, o obscuro vêm à tona e aí a violência domina por completo. Um surpreendente filme que nos brinda com um terror bem feito e ainda consegue dialogar sobre as aflições que atingem os brasileiros.

*Murilo Benício recebeu o prêmio de Melhor Ator no Festival do Rio, em 2017. No FantasPoa 2018, o filme foi premiado nas categorias Melhor Direção e Melhor Atriz, para Luciana Paes.

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