quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Feliz como Lázaro (Lazzaro Felice)

"Lazzaro Felice" (2018) dirigido por Alice Rohrwacher (As Maravilhas - 2014) é uma espécie de fábula inspirada como o título sugere na história bíblica de Lázaro, porém as camadas que o filme propõe são amplas e deixa em cada espectador um sentimento, a linguagem é simples, mas há metáforas e uma enorme carga reflexiva, com certeza é uma obra para revisitar e tentar compreender e absorver o máximo possível das ideias expostas. 
Nesta leitura livre da história bíblica, Lázaro (Adriano Tardiolo) é um garoto pobre e pouco inteligente, mas extremamente bondoso. Ele é explorado pelos familiares, fazendo trabalhos forçados diariamente, além de colaborar com a marquesa, proprietária das terras onde vivem. No entanto, após uma tragédia, Lázaro retorna à vida no século XXI. Ele não compreende mais a lógica deste mundo, mas pretende reencontrar a sua família e viver como antigamente.
Nos deparamos com uma comunidade de camponeses, que mais adiante percebemos serem explorados por uma marquesa, dona das terras e conhecida como "a senhora do tabaco", cuja fortuna advém desse trabalho escravo, dentro dessa engrenagem de exploração, Lázaro, um garoto ingênuo e prestativo, bondoso por essência jamais se enraivece ao ser sempre chamado pelos seus companheiros para realizar o trabalho duro, ele parece olhar o mundo sob uma perspectiva da pureza, a marquesa em determinada parte diz: "Eu os exploro e eles exploram aquele pobre homem. É uma reação em cadeia e não pode ser parada". Quando questionada pelo próprio filho se não tem medo que descubram a verdade, já que vivem sob um véu de ignorância, ela diz: "Humanos são como animais, liberte-os e só aí eles se darão conta da própria condição de escravos, condenando-os ao próprio sofrimento. Agora eles sofrem, mas não sabem disso". Os camponeses não sabem nada, o isolamento geográfico, o pensamento restrito, o fato de conhecerem somente aquele mundo e que não há outro meio a não ser se submeter à marquesa o fazem continuar nesse ciclo, enriquecendo-a e mantendo-se na extrema pobreza. Lázaro acaba por se aproximar do filho da marquesa, o rebelde Tancredi, que abomina a maldade da mãe, só que nada faz, na verdade utiliza a inocência de Lázaro também a favor de sua revolta, forja o próprio sequestro, o faz acreditar que é seu meio-irmão e toma para si o refúgio de Lázaro nas montanhas. Essa relação com Tancredi desperta em Lázaro coisas que não havia sentido antes, uma conexão em que se doa ainda mais, ele faz tudo pelo amigo e mesmo quando adoece se lembra que Tancredi está sozinho nas montanhas e vai atrás do amigo, seu medo é que Tancredi pense que ele o abandonou.

Nesse trajeto Lázaro sofre uma queda e morre, mas ele revive décadas depois por meio de uma dádiva e quando vai procurar pelas pessoas não há mais nada no local, tudo está abandonado e ladrões estão saqueando a grande casa, ele segue a pé o caminho até a cidade apontado pelos ladrões e, por ocasião, reencontra alguns rostos conhecidos, dos quais momentaneamente se chocam por reencontrá-lo e por permanecer com a mesma aparência, seria ele um santo ou um fantasma? Com o desenrolar percebe-se que pouco importa e Lázaro neste século também não tem chance, a bondade simples e pura não existe nesse mundo repleto de interesses. A exploração do outro é novamente exposta, só que com novas roupagens, as pessoas antes exploradas agora precisam encontrar maneiras de se sustentar e o que resta a eles é enganar e roubar. Lázaro reencontra Tancredi e reaviva o amor pelo amigo e sem entender e sem se contaminar pelo meio o tenta ajudar indo a um banco para pedir que devolva os bens dele, que claro foram tirados por conta da situação que a mãe o colocou, o escândalo da marquesa do tabaco que mantinha uma comunidade feito escravos.

"Lazzaro Felice" é um filme que trabalha com elementos do realismo fantástico que ora fascinam, ora entristecem, revela que na sociedade seja em qualquer época nunca a bondade irá resplandecer, alguém dotado desse nobre sentimento sempre é visto como um idiota ou doente mental, e que por nunca pensar mal de ninguém e querer sempre fazer o outro feliz é explorado das mais diferentes formas, a diretora Alice Rohrwacher disse: "A história é de uma menor santidade, sem milagres, poderes ou superpoderes, sem efeitos especiais. É a santidade de viver neste mundo sem pensar mal de ninguém e simplesmente acreditar em seres humanos". É um filme diferente que ecoa dentro de nós por algum tempo, são camadas preciosas para explorar e que deixa uma reflexão contundente sobre a humanidade e sua falta de ternura.

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