sexta-feira, 30 de junho de 2017

Dois Rémi, Dois (Deux Rémi, Deux)

"Dois Rémi, Dois" (2016) dirigido por Pierre Léon (O Idiota - 2008) é uma adaptação leve do livro "O Duplo" de Dostoiévski, que reflete sobre os conflitos da existência, as inseguranças e o desejo de ser outro. Rémi (Pascal Cervo) é um homem de 30 anos perdido na vida que não tem um bom emprego e que leva uma tímida vida amorosa. Certo dia, ele precisa dividir sua vida com um sósia, um outro dele, um ser não muito agradável e bem invasivo. A questão é, qual deles será o verdadeiro Rémi?
Rémi leva sua vida de modo pacato, divide um apartamento com o irmão Philippe (Serge Bozon), trabalha em uma empresa especializada em produtos para gatos e é apaixonado por Delphine (Luna Picoli-Truffaut - neta de François Truffaut), filha do seu patrão, a sua timidez e insegurança o travam nas decisões, principalmente as amorosas, Rémi não é sociável no trabalho e os colegas não têm muito o que dizer sobre ele. Um dia, Rémi encontra um homem parecido com ele e começa a segui-lo, então se assusta ao ver que ele é exatamente idêntico, um duplo. O Rémi dois é o oposto do Rémi um, totalmente relaxado, debochado e também um tanto chato e insensível, ele toma a vida do original, vai trabalhar no mesmo local e o engraçado é que ninguém ali questiona ou se importa com o fato de ter dois Rémi, ao contrário, ficam comparando e na maior parte do tempo indiferentes. A única pessoa que percebe algo estranho e não aceita Rémi dois é Delphine.
O filme é bem curtinho (66 min) e surpreende por seu humor, extrai leveza de um tema complexo e nos tira gargalhadas de situações inesperadas, há diálogos certeiros e extremamente atuais, demonstra a indiferença das pessoas, a completa falta de empatia, relações superficiais e automáticas e o imenso vazio que sobra disso tudo. Rémi não se relaciona muito com os outros, não chega a ser um antissocial, porém cultiva insegurança e conflitos existenciais, Rémi gostaria de ser mais determinado, ousado, falador e conquistador, percebe que seu eu não cativa os que estão próximos, daí surge seu duplo, o tal mito chamado "Doppelganger", que diz que todos têm uma cópia em algum lugar do mundo, geralmente o outro seria uma versão diferente apenas no caráter. Na história Rémi dois é mal-intencionado, esbanja carisma por onde passa, mas na verdade é um chato, Rémi a partir da chegada do seu duplo é posto em xeque por si mesmo e reflete sobre seus conflitos internos e sobre seu verdadeiro eu.
"Dois Rémi, Dois" é suave, mas não deixa de ser intrigante e nos instiga a fazer um exercício de autoconhecimento e entender o como encaixamos no meio em que vivemos, é difícil permanecer seguro de si diante a "manuais" que dizem que tais qualidades são importantes num ambiente de trabalho, ou se for mais de um jeito do que outro se dará melhor na vida, isto acaba alimentando a insegurança e o desejo de ser outro. É inevitável, ainda mais nas redes sociais em que todos mostram os seus melhores lados.

A narrativa é agradável e subjetiva, joga com esses conflitos de personalidade e dualidade com a ótima e cativante atuação de Pascal Cervo, os dois Rémi são bem delineados e suas expressões preenchem a tela. Há um certo charme em muitas passagens e não tem como não sorrir e gargalhar apesar de todo o drama envolvido, exemplo disso é a cena do piano com a mãe e o irmão de Rémi. A trilha sonora concebida por Alexander Zekke é vivaz e a fotografia de Thomas Favel encanta, é um filme com características únicas e surpreende por utilizar o humor de maneira inteligente e promover questionamentos acerca de temas existenciais. 

terça-feira, 27 de junho de 2017

A Morte de Luís XIV (La Mort de Louis XIV)

"A Morte de Luís XIV" (2016) dirigido por Albert Serra (O Canto dos Pássaros - 2008) é um filme austero, uma experiência cinematográfica que causa agonia, acompanhamos o findar-se de um nobre e sua impotência diante do inevitável.
Baseado nos escritos do filósofo e economista francês Saint-Simon, observamos o lento fim de um soberano. Agosto de 1715. Após sair para uma caminhada, Louis XIV (Jean-Pierre Léaud) sente uma dor na perna. Nos dias posteriores, o rei mantém seus deveres e obrigações, mas tem o sono turbulento e sofre com uma séria febre. Ele mal come e enfraquece cada vez mais. É o começo da lenta agonia do maior rei da França, cercado por seus parentes e médicos.
O reinado de Luís XIV, considerado o maior Rei da França e autoproclamando como "Rei Sol" teve um dos reinados mais longos na história europeia, entre 1643 e 1715. Foi um dos líderes da crescente centralização de poder na era do absolutismo europeu. Luís XIV escolheu como emblema o sol, pois assim como o astro era considerado forte, belo, brilhante e de poderes ilimitados. Luís XIV gostava de ser contemplado, seus afazeres e intimidades eram públicas, seus súditos assistiam ele acordar, comer, etc. Essa figura tão poderosa e esplendorosa é apagada aos poucos pela narrativa de Albert Serra, um diretor peculiar que sempre trata de assuntos incômodos de um jeito incômodo. Com ritmo lento enaltecendo o tempo e os detalhes é um filme completamente imersivo e que provoca reflexões importantes. A riqueza dos pormenores, a sutileza das ações nos faz realmente viajar no tempo e observar com total crueza o fim do Rei Sol, a câmera capta a fragilidade com excelência, Jean-Pierre Léaud - ícone da nouvelle vague - entrega um personagem denso, contido, meditativo, uma figura altiva contrapondo-se com a vulnerabilidade e amargura. O interessante e o que nos deixa inquietos é a sua falta de expressão, a única coisa que temos certeza é a sua prepotência, mas o que realmente está sendo dito por aquele olhar? 
A sensação claustrofóbica é outro ponto do filme, tudo se passa num único espaço, o quarto, a agonia só cresce, estamos de fato velando-o, cada vez mais a doença do rei se agrava e médico nenhum é capaz de identificá-la e tratá-la, é chamado os melhores da época e recorrem até para métodos alternativos, como elixires, também é colocado como solução amputar, mas logo é descartada pelo rei, a angústia em não conseguir curar o rei atormenta os médicos. O que fica é a frase final: "Senhores, faremos melhor da próxima vez". Há cenas intensas e parece até que se sente o cheiro putrefato, um primor, seja na condução da narrativa, na composição visual, os figurinos, objetos, detalhes que enchem os olhos, como na sua belíssima fotografia, onde se trabalha os efeitos de luz e sombra através da iluminação natural de velas, isso tudo dá uma atmosfera sufocante que incomoda e fascina.

A melancolia que o filme traz também é a de associar o definhamento do Rei ao envelhecimento de Léaud, o eterno Antoine Doinel de "Os Incompreendidos", somos colocados de frente à realidade do tempo e de que a morte é sempre solitária e dolorosa, pesa pensar nela e, principalmente, quando se está próximo o sentimento de "entrega" causa desespero, amargura, e a solidão se torna pungente, o fato é que independente de ser nobre ou não ninguém possui o poder de driblá-la, o filme reflete sobre velhice e finitude, mas, sobretudo, capta os sentimentos e sensações de Luís XIV, um ícone, símbolo de poder absoluto nos momentos que antecedem seu derradeiro fim. 
"A Morte de Luís XIV" é um filme interessante, desconfortável e maravilhoso, porém muito particular, mas certamente marcante.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Nine Lives - Cats in Istambul (Kedi)

"Em Istambul, gatos são mais do que apenas gatos. Eles personificam o caos, a cultura, a singularidade essencial de Istambul. Sem o gato, a cidade perderia parte da alma. E não há nada igual no mundo."

"Kedi" (2016) dirigido pela turca Ceyda Torun é um documentário mágico e fascinante, principalmente aos que amam gatos. Mas Kedi não é um documentário sobre gatos de casa ou os gatos vadios que você ocasionalmente vê no seu quintal. Kedi é um filme sobre milhares de gatos que percorreram a metrópole de Istambul livremente por milhares de anos, vagando dentro ou/e fora das vidas das pessoas, as impactando de muitas formas, um animal que vive entre o mundo da vida selvagem e o domesticado. Os gatos e seus gatinhos trazem alegria e propósito para aqueles que os escolhem, dando às pessoas uma oportunidade para refletir sobre a vida e seu lugar nela, especialmente em Istambul, onde os gatos são os espelhos para seus habitantes.
Encantador observar o como a cidade se relaciona com os gatos, é algo cultural, característico de Istambul, eles andam livremente pelas ruas, descansam em cafés, barracas e a maioria da população foi tocada de alguma maneira por esses bichanos, a alegria de contar as peripécias, os apelidos que lhes dão, impressionante e emocionante ver o como as pessoas zelam e os respeitam. Há um mistério envolvendo a cidade e os gatos, a predominância da cultura muçulmana e seu respeito pelos felinos é um fator, os gatos são admirados e reverenciados por sua limpeza, e têm permissão para entrar em mesquitas. Acredita-se que um muçulmano que faz mal para os gatos será gravemente punido na vida após a morte. Outra explicação seria que Istambul foi um dos principais portos da região, tanto nos navios que ali chegaram quanto, mais tarde, durante a expansão da cidade com os otomanos e a construção dos primeiros sistemas de esgoto, os gatos mostraram seu valor no controle de roedores e ganharam terreno no coração dos moradores de Istambul. O elo é forte e todo o sentimento é retratado perfeitamente no documentário.
Gatos são animais incríveis, dotados de personalidade, cada gato tem a sua, por exemplo, somos apresentados a sete gatos, a caçadora, a amante, a psicopata, o sociável, a ladra, o cavalheiro e o jogador, todos eles exibem suas características únicas que faz com que as pessoas ao redor os admirem e os respeitem, há um enorme sentimento de proteção em torno deles e por isso são tão livres e despachados. Os gatos têm seu lugar em Istambul, eles fazem parte do cenário e da identidade do lugar. 

A cada cena e história contada compreendemos a relação da população com os gatos, as calçadas com casinhas, água e comida, pessoas que se dispõem a andar pelas ruas os alimentando, pescadores, feirantes, donos de cafés e restaurantes, artistas revelando o poder de mudança em suas vidas quando se respeita e se dedica a esses seres que precisam tanto, porque mesmo que tenha essa aura linda em torno da cidade e os gatos existem inúmeros problemas, novas construções, ruas perigosas, uma infinidade de coisas que abrangem grandes metrópoles. 

"Um gato miando no seu pé e olhando para você é a vida sorrindo para você. É nesses momentos que temos sorte, pois eles nos lembram de que estamos vivos."

"Kedi" é um mimo para os que amam esses bichanos, emociona, diverte e também nos faz refletir, estamos todos juntos, coexistindo e ocupando o mesmo espaço, por isso respeitá-los e ajudá-los é o mínimo que podemos fazer, quantas pessoas não enxergam ou até maltratam, os colocam numa categoria inferior, mas a verdade é que quando convivemos juntos tudo muda, a relação de carinho com o gato é uma experiência gratificante, pois eles são observadores e se expressam em detalhes, diferente do que dizem que são frios e selvagens, conquistar um gato requer tempo e dedicação, mas vale a pena, pois o amor dado em troca será sincero.

"Você só pode amar se seu coração estiver aberto. A vida é bela quando você olha as coisas com amor. Se você puder aproveitar a presença de um gato, um pássaro ou uma flor, o mundo todo será seu. É o que eu digo."

Istambul é fascinante em muitos aspectos, única cidade do mundo situada em dois continentes, capital de impérios, tradições que se colidem, o velho e o novo, a efervescência, sua arquitetura exuberante e esta adorável relação com os gatos que acrescenta uma imensa beleza. Tudo é primoroso nesse documentário, os gatos, os lugares, as pessoas, as histórias contadas, a riqueza cultural, as musiquinhas.... Poesia!

"Os problemas que os gatos de rua ou outros animais enfrentam não são independentes dos nossos. Seria mais fácil ver os gatos de rua como um problema e lidar com eles como se fossem. Mas, se pudermos aprender a viver juntos novamente, talvez nossos problemas também sejam resolvidos com os deles. Tenho certeza de que poderíamos recuperar nosso senso de humor e recuperar nossa alegria de viver, que anda cada vez mais fraca."

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Tirésia

"Tiresia" (2003) dirigido por Bertrand Bonello (Nocturama - 2016) é um longa francês peculiar e atraente, disserta sobre masculino e feminino e o poder de transformação do ser humano.
Para uma melhor compreensão é bom que se saiba sobre o mito grego do qual intitula a obra, Tirésias todo dia ia ao templo fazer suas orações, um dia ao sair encontrou um casal de cobras venenosas copulando, ambas se voltaram contra ele e então atirou uma pedra na fêmea, assim Tirésias transforma-se numa mulher e torna-se em uma prostituta famosa. Tempos depois indo ao mesmo templo orar encontrou outro casal de cobras copulando e novamente interrompeu o ato, dessa vez matando o macho e assim tornando-se homem novamente. Como Tirésias tinha passado pelos dois sexos, Zeus e Hera o chamaram para uma discussão sobre quem teria mais prazer na relação sexual, Hera dizia que era o homem, Zeus dizia que era a mulher. Tirésias decidiu a questão: "se dividirmos o prazer em dez partes, a mulher fica com nove e o homem com uma". Hera, furiosa por sua derrota, cegou Tirésias por vingança. Mas Zeus, compadecido e em recompensa por Tirésias ter dado a ele a vitória, deu-lhe o dom da previsão. Dentro deste contexto somos absorvidos pela estranha narrativa de Bonello, Tirésia, em seu primeiro momento (Clara Choveaux), é um transexual brasileiro que vive com seu irmão se prostituindo nos subúrbios de Paris. Certa noite ela encontra Terranova (Laurent Lucas), um homem distante, misterioso, que fica obcecado e a sequestra. No cárcere e sem as doses regulares de hormônios que tomava para adquirir formas femininas, Tirésia volta à sua forma masculina original (Thiago Telès). Decepcionado, Terranova cega Tirésia e o abandona em uma floresta, onde é resgatado pela jovem Anna (Célia Catalifo), que o leva à igreja local, onde volta a se recuperar, definitivamente na forma masculina.
Terranova é um ser recluso que aprecia arte e tem pretensões poéticas ao sequestrar Tirésia, esta que se destaca aos olhos dele por sua bela forma e que o intriga por sua transformação. Ele a admira, observa-a no dia a dia que pouco a pouco sem os hormônios vai perdendo as características femininas, a barba cresce, a voz engrossa, Terranova vai atrás dos hormônios, porém, sem sucesso decide abandoná-lo numa estrada, mas antes cega Tirésia. Esta primeira parte do filme é instigante e provoca uma série de questões envolvendo gêneros, também exerce um grande fascínio pela maneira com que é abordado o tema, o clima é de total tensão. A interpretação de Laurent Lucas com seu olhar vidrado de curiosidade e seu silêncio incomoda, e Clara Choveaux exprime perfeitamente o medo, a solidão, e encanta quando canta uma cantiga popular brasileira, "Terezinha de Jesus", que mexe com Terranova.

Após ser deixado na beira da estrada a história ganha novos tons e até parece ser um outro filme, a passagem é realmente brusca, Tirésia, interpretado por Thiago Telès é acudido por Anna, uma jovem muda que vê em Tirésia um propósito. Laurent Lucas nesta parte interpreta um padre, o que causa uma grande confusão, mas representa a dualidade. Tirésia aceita a transformação e o dom da premonição e muitas pessoas vão até ele lhe oferecendo presentes, a curiosidade e o desejo de saber o que acontecerá move as pessoas. 

Sombrio, melancólico e incômodo, a experiência para quem o assiste é única, abarca muitas questões sem apresentar necessariamente respostas, somos deixados à deriva ao final matutando tudo o que vimos, absorvendo e tentando pelo menos um pouco compreender este enigma chamado ser humano.

terça-feira, 20 de junho de 2017

Viva

"Viva" (2015) dirigido pelo irlandês Paddy Breathnach (Blow Dry - 2001) é um filme ambientado em Cuba que reflete sobre questões importantes, como preconceito, família e sonhos com total firmeza e também delicadeza, o protagonista causa empatia e o acompanhamos nesta jornada de aprendizado, onde o resgate do amor e o sonhar se misturam. Uma bela história, tão essencial para todos nós refletirmos.
Quando tudo está à venda, qual o preço do amor? Jesus (Héctor Medina) é maquiador de um grupo de drag queens em Havana, mas sonha em se apresentar. Quando ele finalmente tem a chance de estar no palco, um estranho surge da multidão e bate em seu rosto. O estranho é seu pai Angel (Jorge Perugorría), um antigo lutador, que estava ausente por 15 anos de sua vida. Com pai e filho em conflito sobre suas expectativas opostas um do outro, Viva é uma história de amor sobre homens que lutam para se entender e voltar a ser uma família novamente.
Seguimos Jesus em seu cotidiano, pelas ruas de Cuba, a sua luta solitária para se sustentar arrumando cabelos de velhinhas e escovando as perucas das drags numa casa noturna, seu maior desejo é se apresentar e um dia surge a oportunidade, então se monta e entra no palco, Mama (Luis Alberto García), que comanda tudo por lá o protege dando conselhos, o incentiva ensinando a arte do espetáculo, Jesus realiza seu sonho passeando pelo salão interpretando, mas de repente leva um soco de um homem, que diz ser seu pai. Angel se instala na antiga casa e Jesus não se altera, mas fica chocado pela volta do pai que foi preso quando ainda era pequeno, Angel o proíbe de frequentar a casa de shows, o único sustento de Jesus, e daí esperamos uma reação mais enfática dele, mas não, por muitas vezes nos perguntamos o motivo desse garoto não o expulsar de lá, suas atitudes perante esse pai nos fazem refletir muito, sobre a importância de ter alguém da família por perto, um fator interessante é que o pai de Jesus não se importa dele ser gay, o que o incomoda é ele se montar, ele é um homem durão, ex-lutador que afundou a carreira cometendo um crime, está no fundo do poço, não consegue arranjar emprego e passa os dias a beber e a fumar. Jesus por um bom tempo acaba apelando para a prostituição, já que nada ganha arranjando os cabelos das velhinhas, tudo o que consegue é para comprar comida. 

A relação com o pai vai tomando uma outra forma quando Angel fica doente e Jesus cuida dele, a proximidade dá a chance desse pai entender o como seu filho tem um coração bom, e aos poucos se livrando desse preconceito e entendendo o sonho de Jesus, que amadurece e ganha ainda mais forças para seguir em busca do que quer.
O filme passeia por vários temas, como família, preconceito, sonhos e se aprofunda em cada um deles, é extremamente bela a interpretação de Héctor Medina, causa grande empatia, seus olhos jorram sentimentos, uma delicadeza melancólica, Jorge Perugorría também excelente em sua figura machista que se transforma pela bondade do filho, e sem deixar de enaltecer a interpretação de Luis Alberto García como Mama, que representa a maturidade e força. Outro ponto a se destacar é a intensa e dramática trilha sonora, boleros de se jogar no chão de tanto chorar, por exemplo, "El Amor".

"Viva" é lindo e sua beleza e força de expressão já começa pelo título, uma exultação triste e feliz ao mesmo tempo, mas libertadora. A transformação, a aceitação que se dá no fim exemplifica perfeitamente, uma cena marcante e uma lição que todos deveriam aprender.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Amor em Dobro (Twin Falls Idaho)

"Twin Falls Idaho" (1999) dirigido por Michael Polish (For Lovers Only - 2010) é um filme peculiar que retrata com sensibilidade o relacionamento dos reclusos irmãos siameses Blake e Francis, o compartilhamento tanto físico como emocional, as dificuldades de se viver num mesmo corpo sendo duas pessoas completamente diferentes, e a chegada de uma garota que muda não só a rotina mas também os sentimentos.
Escrito pelos cineastas irmãos Michael Polish e Mark Polish, "Twin Falls Idaho" é uma pérola indie delicada, certamente o fato de na vida real os cineastas serem irmãos gêmeos contribuiu para o tom natural da história, aliás, a interpretação melancólica e reflexiva deles é sublime, todo o contexto é belo e inúmeras questões surgem a partir do momento que os conhecemos e observamos tanto as dificuldades de se viver num mesmo corpo sendo duas pessoas opostas e também o compartilhamento e a generosidade entre eles. O título em português "Amor em Dobro" não reflete absolutamente nada da história, é pobre e aparenta ser um romance comum água com açúcar, portanto, não utilizarei no texto.
Blake (Mark Polish) e Francis Falls (Michael Polish) são literalmente grudados, tímidos moram em um hotel decadente e sonham reunir-se com sua mãe biológica, que os abandonou. Eles encontram sua porta de entrada para o mundo exterior através de uma excêntrica jovem prostituta chamada Penny (Michele Hicks). Eles concordam em participar de uma festa de Halloween com Penny e fingir estar vestindo uma fantasia de irmãos siameses. O filme ainda trata sobre seus problemas de saúde, a evolução da relação entre os irmãos e a relação de amizade com Penny.
De convencional o filme não tem nada, a espécie de triângulo amoroso exibe várias nuances e passa longe da estética freak, ao contrário, os irmãos são elegantes, gentis e carregam uma melancolia sedutora, as manobras cotidianas são feitas com graciosidade apesar das complicações, e adquiriram o hábito de sussurrar um para o outro quando algo os incomoda, Penny também é uma figura interessante e chega na vida deles após ser contratada para comemorar o aniversário de 25 anos dos dois, mas toma um susto ao se deparar com a situação, sai correndo embora, porém volta para buscar sua bolsa e acaba fazendo amizade com eles, Francis está fraco e doente e com o passar do tempo se sente enciumado com a relação de Penny e Blake, que está apaixonado. Não há garantias de que um sobreviva sem o outro, Blake é forte fisicamente, mas o preço pela liberdade e individualidade é alto e quase imperdoável. Francis adoece cada vez mais e a opção pela separação se torna cada vez mais real para Blake.

"Twin Falls Idaho" é fascinante, sua aura de mistério absorve, exibe sutilezas e uma melancolia arrebatadora, além de ser extremamente empático.
Francis em dado momento diz a Penny: "A história continua, e se está triste hoje, isso pode mudar amanhã", essa frase traduz muito bem a atmosfera do filme. Certamente um exemplar peculiar e digno de aplausos por seu esmero, há cenas belíssimas carregadas de emoção e detalhes que marcam. 

terça-feira, 13 de junho de 2017

Vanaja

"Vanaja" (2006) dirigido por Rajnesh Domalpalli é um belo filme indiano que retrata a cultura com naturalidade e sem efeitos melodramáticos, uma pérola a ser descoberta. Rajnesh Domalpalli é um diretor brilhante em sua simplicidade, orquestrou com gentileza um elenco de não profissionais durante dois anos, e este é seu primeiro filme, um extraordinário trabalho de conclusão para a sua faculdade em Columbia. 
Filmado no sul rural da Índia, a menina de 15 anos de idade Vanaja vai trabalhar para a senhoria local com a esperança de aprender a dança Kuchipudi. A química inocente com o filho da senhoria fica difícil, lançando ela em uma batalha de casta e alma.
Vanaja (Mamatha Bhukya), a filha de 15 anos de um pescador com dificuldades financeiras vai trabalhar na casa da senhoria local na esperança de aprender a dança Kuchipudi. Tudo corre bem, mas quando o filho da proprietária Rama Devi (Urmila Dammannagari) retorna dos EUA, começa uma química sexual inocente que se torna complicada, terminando em um estupro. Situada no sul da Índia rural, um lugar onde as barreiras sociais são construídas mais fortemente do que as antigas muralhas, a história explora o abismo que divide as classes e como uma jovem se esforça para atingir a maioridade.
Vanaja é sonhadora e quer muito se tornar uma dançarina, a senhora a ensina, pois também tem interesses envolvidos, a menina logo aprende e somos absorvidos pela beleza dos movimentos, há cenas hipnotizantes, a beleza do simples é algo fabuloso. O cotidiano dela muda quando o filho da proprietária da casa retorna da América para se tornar um político, ele se aproxima da garota que nutre curiosidade por sua figura máscula, não é difícil imaginar o que se segue. Vanaja é estuprada e engravida, como é de uma casta inferior o casamento está fora de cogitação, o aborto é sugerido, mas ela foge e com a ajuda de sua amiga, que inclusive é umas das coisas mais lindas retratadas, ela dá à luz. O pai cada vez mais afundado na bebida e muito doente acaba sendo um problema para a senhora, que depois tenta negociar com Vanaja, lhe diz que cuida da criança, mas que ela teria que se afastar, já que as pessoas estavam comentando sobre o ocorrido, o casamento nunca seria a opção. A situação é muito triste, não existe uma saída. A força e a sensibilidade que o filme exprime é gigantesca, uma delicadeza exuberante que também conquista por suas cores que transmitem esperança.

A cultura rica e profunda é exposta por meio das músicas e a dança Kuchipudi, tão clássica e espiritual, também exibe como crítica a questão das castas, religião e poder, que infelizmente ainda faz parte de muitas regiões da Índia. O filme é honesto e não utiliza artifícios para comover ou engrandecer a história, ele apenas é. 
Mamatha Bhukya encanta com sua naturalidade, seus olhos brilhantes e sua personalidade genuína, uma fortaleza. Ao diretor Rajnesh Domalpalli só resta agradecer por esta belíssima e sensível obra que ao mesmo tempo mostra as belezas culturais e também o outro lado, o sistema de castas que inferioriza e humilha, difícil encontrar filmes indianos com essa coragem e autenticidade. O diretor não teve apoio, inclusive de seu próprio país, mas recebeu prêmios mundo afora e conseguiu dar destaque a esse primoroso trabalho na Internet. Está disponível no próprio canal de Youtube do diretor: Vanaja.

*Vanaja - lírio d’água, cujas raízes estão fundamentadas em meio à lama e que aos poucos vai subindo à superfície para florescer com notável beleza. O simbolismo está especialmente nesta capacidade de enfrentar a escuridão e florescer limpa e pura. 

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Paterson

"Paterson" (2016) dirigido por Jim Jarmusch (Amantes Eternos - 2013) é um filme singelo, delicado, gentil, a poesia reside no cotidiano, na vida comum. 
Paterson (Adam Driver) é um motorista de ônibus que mora na cidade de Paterson, New Jersey - ele e a cidade dividem o mesmo nome. Diariamente, Paterson vive uma simples rotina: dirige pela rota diária, observa a cidade, ouve fragmentos de conversas, escreve poesias num caderno, passeia com o cachorro, bebe uma cerveja no bar de sempre e finalmente, volta para casa, para a esposa Laura (Golshifteh Farahani). Ela, em contraste, vive num mundo que sempre muda, com novos sonhos diários. Eles se amam. Ele a apoia no alcance das novas ambições, ela festeja nele o dom da poesia. "Paterson", o filme, observa os triunfos e derrotas da vida diária com poesia evidente nos menores detalhes.
Acompanhamos Paterson durante uma semana e é tão prazeroso observá-lo, desde ao acordar junto de sua esposa, tomar o café, ir para o trabalho, dirigir seu ônibus, voltar para casa, jantar, passear com o cachorro, a parada no bar e voltar para casa, parece tediosa essa rotina, mas ele consegue extrair coisas bonitas daí e nas horas em que está descansando escreve poesias recheadas de miudezas, ele é um sujeito calmo que dirige seu ônibus pela cidade da qual sente-se tão íntimo, ouve as conversas dos passageiros, as reclamações do colega de trabalho, olha para seu relógio e se encanta a cada dia pela esposa inquieta, que ora está pintando cortinas, ora fazendo cupcakes de sabores estranhos, interessante que mesmo tendo essa insaciedade o preto e o branco domina, as roupas, os objetos, sua arte, o violão, ela vive a sonhar, mas permanece nas cores do cotidiano. O casal apaixonado nada tem a ver um com o outro aparentemente, ela é fugaz, ele é pacato, ela é ambiciosa, ele é desprendido, mas tanto um como o outro têm as suas práticas artísticas, Paterson escrevendo suas poesias sem ter o objetivo de publicá-las e Laura com seu violão sonhando que um dia será uma estrela country, eles se completam e essa troca deles por si só também é poesia. 
Adam Driver encanta ao interpretar Paterson, sua personalidade, seus olhos ternos, seu sorriso sincero, ele sabe escutar, consegue enxergar além do grosso do cotidiano, há uma ponta de tristeza nisso tudo, claro, mas a beleza não deixa de estar presente.

"Paterson" também é título de um livro do autor William Carlos Williams, que o protagonista admira e se inspira, assim como ele Paterson vê beleza em coisas diminutas e que para a maioria não faz o menor sentido, apenas pessoas sensíveis e ligadas na poesia do cotidiano são capazes de sentir essa beleza. E é inspirador também para o espectador, pois a frase que o japonês fala ao final para Paterson resume perfeitamente, "uma página vazia dá mais possibilidades", é assim todos os dias que acordamos, uma nova página em branco será preenchida com pequenas ou grandes alegrias, abraços, tristezas, cansaço, irritação, solidão, e se olhar com mais atenção, poesia.

Nada extraordinário acontece em "Paterson", não há conflitos, grandes decisões, o tédio da vida comum e banal é que dita o ritmo e isso não é ruim ou chato, ao contrário, é lindo e prazeroso, fazemos parte da história e nos encantamos com o simples sendo retratado, há um cuidado nos diálogos, uma naturalidade fascinante em expor o dia a dia, as poesias que ele vai escrevendo que, de repente, vão criando formas e traduzem sentimentos tão orgânicos. "Paterson" é um belo registro do cotidiano tão sem graça e tão rico ao mesmo tempo. 

quinta-feira, 8 de junho de 2017

The Love Witch

"The Love Witch" (2016) dirigido pela talentosa Anna Biller (Viva - 2008) é uma homenagem ao Technicolor, filmado em película 35 mm, técnica em extinção, a aura saudosista permeia toda a obra e remete aos filmes da Hammer, a famosa produtora especializada em filmes de horror dos anos 60/70. Especialmente, o final da década de 60, a cultura foi marcada pela inserção ocultista e o apelo erótico nos filmes de terror, Anna Biller conhece muito bem esse universo, é uma artista conceitual que é reconhecida por seus excessos visuais, humor burlesco e ainda é multifuncional, escreveu, produziu, dirigiu, editou e ficou responsável pela direção de arte. 
Elaine (Samantha Robinson) é uma jovem bruxa que está determinada a encontrar o homem de sua vida. Ela leva homens para sua casa e faz magias e poções a fim de seduzi-los. Tudo funciona bem, mas ela acaba com uma série de vítimas infelizes. Quando ela finalmente encontra o homem de seus sonhos, seu desespero para ser amada a torna insana.
Marcada por um passado de relacionamentos traumáticos, em flashes do passado podemos ver seu marido reclamando de suas habilidades domésticas e outras coisas, Elaine decide ir para o interior depois da morte de seu marido, muda-se para um casarão gótico onde já transformada em bruxa dá o que os homens querem e com a ajuda de poções tenta encontrar o amor e fazer com que os homens morram de amor por ela, algumas vezes literalmente. Sua primeira vítima é Wayne (Jeffrey Vincent Parise), um professor de literatura mulherengo, ela joga seu charme, lhe dá a poção e pronto está feito. Elaine passa seus dias fazendo poções, participa de rituais pagãos e frequenta um clube burlesco, onde as bruxas sofrem preconceito. A sua inquietação é tanta que seduz também o marido de sua amiga, uma mulher focada no trabalho e independente, o homem se torna tão obcecado por Elaine que acaba com a própria vida, apenas com Griff (Gian Keys), que está investigando o caso de Wayne é que ela parece sossegar, ele de início se encanta e cai no feitiço, mas aos poucos sai do transe e começa a desconfiar da bela Elaine.
O filme tem uma proposta interessante e a atuação de Samantha Robinson está bem marcada e estilizada, o melodrama faz parte do estilo, é sensual e eleva o feminino. 

"The Love Witch" é uma viagem ao final dos anos 60, se não fosse os apetrechos tecnológicos passaria facilmente como um filme antigo, a crítica embutida é outro ponto de destaque, Elaine é uma figura frágil e doce que se diz viciada no amor, mas ela usa esse artifício como um meio para na verdade controlar os homens, que são manipulados facilmente e cuja fraqueza reside exatamente no amor, onde voltam a ser crianças mimadas. O interessante é a mescla de fragilidade e força que a personagem carrega, o que nos faz refletir e muito sobre feminilidade, gênero e etc.
É delicioso, nostálgico, lindo esteticamente, crítico e carrega um humor satírico. A trilha sonora também tem dedo da diretora e é ótima, por exemplo, a canção "Love is a Magickal Thing", que carrega a atmosfera de um conto de fadas renascentista.

terça-feira, 6 de junho de 2017

Peles (Pieles)

"O mundo é horrível, o ser humano é horrível… Mas não podemos fugir disto. Porque nós somos o horror."

"Peles" (2017), primeiro longa dirigido pelo jovem promissor Eduardo Casanova é original, desconcertante, poético, interessantíssimo e que provoca o espectador o tempo inteiro ao colocar protagonistas com deficiências físicas e emocionais. É um drama social sombrio com pessoas deformadas e desfiguradas que precisam encontrar maneiras de esconder suas diferenças e lidar com o resto da sociedade. 
O espanhol Eduardo Casanova tem no currículo alguns curtas-metragens e inspirado por um deles, "Eat my Shit", concebeu este longa repleto de reflexões, além de ter na produção um dos nomes mais irreverentes do cinema espanhol, Álex de la Iglesia (As Bruxas de Zugarramurdi - 2013). Somos apresentados a alguns personagens que visualmente incomodam, não sabemos lidar com o que vemos, o diferente é assim mesmo, causa repúdio, mas conforme vamos adentrando na vida de cada um percebemos as dores de se viver em uma sociedade que prima pelo superficial e esquece-se do que importa realmente. 
Laura vivida pela ótima Macarena Gómez (Ninho de Musaranho - 2014) não possui olhos, mas utiliza no lugar dois grandes diamantes rosas, há muita ingenuidade e carência afetiva nela, é usada por pessoas que gostam de "aberrações", a casa onde trabalha tem dos mais variados tipos bizarros, essa foi a sua maneira de se esconder. Ao longo vários personagens se cruzam, um mosaico interessante se forma e inúmeros pensamentos são abertos. Outra figura bastante peculiar e das que causam mais desconforto é Samantha (Ana Polvorosa), que teve o infortúnio de nascer com o ânus no lugar da boca e vice-versa, ela vive de forma solitária, o pai faz de tudo para que ela não apareça, só que em vários momentos a vemos fora de sua casa e sempre passando por alguma situação chata em que tiram sarro ou até a violentam, em determinado momento seu caminho se liga ao adolescente Cristian (Eloi Costa), que tem o sonho de ser uma sereia, não reconhece as suas pernas e vive tentando arrancá-las, o seu pai, um pedófilo, o abandonou quando nasceu por precaução e a relação com a mãe é conturbada por ela não saber como lidar com ele. Também há a anã Vanesa (Ana María Ayala) que trabalha num programa infantil vestida de urso e que luta para ser vista como uma mulher normal, Ana (Candela Peña) que tem metade do rosto desfigurado e seu namorado Guille (Jon Kortajarena), que tem o rosto totalmente queimado, eles estão juntos por se sentirem iguais, mas com o desenrolar entram em conflitos, e Ana ainda tenta se desvencilhar de um homem que a ama justamente por sua deficiência. Outros personagens surgem, se cruzam sutilmente e refletem as dificuldades, as dores, a solidão e a superação de cada um para tentar se encaixar num mundo onde o que faz sentido é apenas a aparência, a superfície.

O filme impressiona por seu perfeccionismo e sua paleta de cores que consiste no rosa e roxo em absolutamente tudo, está em figurinos, paredes, móveis, objetos. O exagero, a ousadia não é pouca e certamente é isto que nos chacoalha e nos tira do lugar comum e faz com que pensemos porque achamos tão estranho o que estamos vendo, percebemos o quão cruel é a raça humana que usa, exclui e maltrata os que consideram mais fracos e diferentes. Por mais absurdo que pareça ser é um exemplar primoroso que irá atingir a consciência de cada um de formas distintas e irá permitir diversas análises. 

"A pele muda. Sofre cirurgias, envelhece ou se transforma. A aparência física não é nada. Absolutamente nada."

Em "Peles" muitos temas são abordados, como preconceito, rejeição, superação, pessoas marginalizadas que são usadas em função de dinheiro, entretenimento, fetichismo, como a anã explorada no programa infantil e Laura na prostituição, digerir todas as questões envoltas neste filme requer tempo, há muito o que se pensar. Uma obra sincera que desconstrói e atinge pelo bizarro, nada mais que um espelho da realidade. Um achado dentro do catálogo da Netflix! 

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Mais Sombrio Que a Meia-Noite (Più Buio di Mezzanotte)

"Mais Sombrio Que a Meia-Noite" (2014) dirigido por Sebastiano Riso é uma cinebiografia da famosa Drag Queen Fuxia, que viveu períodos complicados nas ruas de Catânia, Sicília. Ambientado nos anos 80, o roteiro foca na adolescência, no período conturbado em que sufocado pela fúria do pai decide colocar seus discos numa mochila e se aventurar pelas ruas, começa aí uma série de descobertas em que ao mesmo tempo que vive a sua liberdade encontra um mundo de prostituição e exploração.
Davide (Davide Capone) é diferente dos outros adolescentes. Algo o faz parecer uma menina. Davide tem catorze anos quando foge de casa. Sua intuição o leva a escolher Villa Bellini, um parque na Catânia, como refúgio. O parque é um mundo em si mesmo, o mundo dos marginalizados, para o qual o resto da cidade fecha os olhos. Mas um dia o passado o alcança e Davide precisa enfrentar a escolha mais difícil, desta vez, sozinho.
No início o vemos escondido cantando no porão junto a um mundo que criou, colorido e que reflete realmente quem é, seu pai é uma figura autoritária e violenta que não aceita o jeito do filho, a aparência andrógina de Davide causa muitas desavenças dentro de sua própria casa, a mãe tenta protegê-lo, mas é tão frágil quanto, a sua cegueira não é apenas física, decidido a viver livre sai para as ruas, especificamente, a Villa Bellini, local de prostituição, onde é acolhido por um grupo com La Rettore (Giovanni Gulizia) sendo seu guardião. 
Davide tem uma bela voz e sonha ser uma grande cantora, mas no decorrer acaba se introduzindo em um mundo sombrio, não há opções. Se apaixona, se desilude e se dá conta da exploração sexual, na noite são usados e na manhã seguinte invisíveis e propensos a sofrer alguma violência, a sociedade ignora e se nega a olhá-los, Davide vive esse dilema ao mesmo tempo em que pela primeira vez consegue viver a sua liberdade. São inúmeras as consequências que vêm com essa liberdade e sentimento de pertencimento, Davide se encontra com o preconceito, a prostituição, a violência, a solidão, a fome, o desamparo, propenso a exploração de cafetões e ao fetiche alheio. 

Delicado, triste, reflexivo, uma amostra do como a família pode destruir ao invés de amparar pelo fato de não saber lidar com o diferente, a realidade é essa, jovens sendo expulsos de casa por serem homossexuais e expostos a um mundo sombrio, que moral que essas famílias pregam que não acolhem seus próprios filhos, desrespeitando e deixando-os à mercê da marginalidade? É um retrato honesto e a força imagética do filme é imensa, um belo trabalho do ator Davide Capone que nos faz mergulhar em sua confusão interior e experiências.

"Mais Sombrio Que a Meia-Noite" tem um tom firme e apesar de todas as dificuldades e empecilhos há um enfrentamento, a força está imprimida no longa mesmo nos momentos tensos e desesperançosos, Davide está sublime e a cena final coroa espetacularmente esta obra, em frente ao espelho grita, um grito de liberdade.