sexta-feira, 30 de outubro de 2015

O Mirante (Gözetleme Kulesi)

"O Mirante" (2012) dirigido pela turca Pelin Esmer (11'e 10 kala - 2009) é um filme contemplativo que disserta sobre a solidão e o desespero. Dois seres relutantes em sair de uma situação de isolamento, desenvolve uma relação que os permite redescobrir a compaixão em suas vidas e a superar seus traumas.
Nihad (Olgun Şimşek) trabalha em um mirante, vigiando áreas verdes em montanhas de cima de uma torre de onde consegue ver tudo. Seher (Nilay Erdönmez), uma moça que estudava numa boa faculdade e vivia com os pais decide arranjar um emprego como rodomoça. Os dois sofrem por motivos particulares e sozinhos lidam com suas dores, mas em dado momento suas vidas se cruzam. É um filme lento, porém interessante, aos poucos vamos conhecendo os personagens, seus dilemas e o porquê de suas escolhas. Nihad preferiu se abster da vida comum, o seu emprego lhe permite isso, quieto e praticamente enclausurado passa os seus dias a observar e desce até a cidade apenas para comprar suprimentos. E é aí que ele conhece Seher, uma jovem que trabalha no ônibus e que por vezes serve café na estação. Devagar ficamos sabendo do trauma de Nihad e de Seher, inclusive ela é dona de uma cena fortíssima que emociona muito.
O fato é que Seher está grávida, foi estuprada pelo próprio tio enquanto morava em sua casa para fazer faculdade, desnorteada sumiu e arranjou esse emprego, ela esconde até o fim a sua gravidez e Nihad, bom observador que é, sabe que algo aconteceu a ela. Entre silêncios suas solidões se juntam, e com muita dificuldade vai se construindo uma relação.
A fotografia é linda e explora profundamente todos os aspectos, seja o ambiente ou personagens. As cenas estáticas são recorrentes e poucos são os diálogos, é uma bela história que nos diz que quando estamos amparados é muito mais fácil seguir em frente e não enlouquecer com as dores que nos acometem. Quando sentimos na pele o sofrimento, a compaixão pelo outro se aflora e somos capazes de ajudar e compartilhar. E é na dor que nos conhecemos e nos reconhecemos, a dor é universal e nos liga ao sentimento que torna-nos humanos. Tem uma frase de Jean-Jacques Rousseau que exemplifica bem essa questão: "O homem que não conhece a dor, não conhece a ternura da humanidade."

Não é um filme que nos tira lágrimas, e o ponto a se acrescentar é o seu desenvolvimento, sem pressa ele vai ganhando força. 
"O Mirante" é um belo filme que apesar de trazer a solidão e o desespero como tema, também nos faz pensar na compaixão, em recuperar a sensibilidade de compreender o outro. 

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Dez Canoas (Ten Canoes)

"Eu venho de uma poça desta terra que Yurlumggur criou, eu era como um pequeno peixe no meu charco, então meu pai cercou o meu charco, perguntei-lhe por minha mãe. Eu queria nascer. Meu pai apontou a uma de suas esposas: "Aquela é tua mãe", me disse. Esperei o momento oportuno, e sem mais entrei em sua vagina, então meu pai teve um sonho, esse sonho o fez saber que tinha um pequenino em seu interior. Esse pequenino era eu. Quando eu morrer voltarei pro meu charco e esperarei ali como um peixinho, esperando renascer. No meu povo acontece sempre assim."

"Dez Canoas" (2006) dirigido por Peter Djigirr e Rolf de Heer (Charlie's Country - 2014) é um filme inusitado e divertido. É um conto primitivo interessante, uma abordagem sobre o mundo aborígene, onde ensinamentos são passados para que os mais jovens compreendam as tradições de seu povo.
Na Austrália, quando havia somente as tribos aborígenes, dez homens vão ao pântano coletar ovos de gumang, uma espécie de ganso. Dayindi, um jovem guerreiro, corteja a mulher mais nova de seu irmão mais velho. Para que ele aprenda os costumes corretos, contam a ele a lenda de um passado mítico. Baseado em lendas aborígenes, o filme é assinado oficialmente como ''um filme de Rolf de Heer e dos habitantes de Ramingining'', região onde foi filmado. Os diálogos são falados no dialeto ganalbingu, pela primeira vez captado num filme de ficção.
Somos apresentados à história com uma narração lúdica e irônica do ator David Gulpilil, para nos explicar que o que vem a seguir é algo completamente diferente do nosso mundo. O jovem Dayindi (Jamie Gulpilil - filho do grande David Gulpilil, Walkabout - 1971, Geração Roubada -2002) se apaixona pela mulher mais nova de seu irmão, só que ele deve aprender que em seu povo existe uma série de tradições, para isso somos inseridos em um passado mais distante ainda que narra a trajetória de Yeeralparil (Jamie Gulpilil). Minygululu (Peter Minygululu) diz sobre um guerreiro, Ridjimiraril (Crusoe Kurddal) que suspeita de um estranho visitante ter sequestrado sua segunda esposa, sem querer ele mata um homem da tribo estranha e acaba tendo que se sujeitar a um ritual de vingança em que consiste em atirar lanças até que alguém seja atingido. Os aborígenes têm as suas regras e eles as cumprem com honra e coragem. 
A história do presente é em preto e branco e a do passado é colorida, o roteiro é bem delineado e não fica nada pendente, a narração ajuda nesse ponto, tudo está na tela. A fotografia exuberante faz nossos olhos brilharem diante a natureza que se apresenta como personagem.
"Dez Canoas" acerta por mostrar os aborígenes e suas tradições e cultura sem uma exotização, tudo nele é natural e por isso cativa. Os vemos proseando, comendo, caçando, etc. A vida selvagem é amplamente mostrada e a câmera foca bastante nos rostos e nos corpos. 

Lindo é como os aborígenes são ligados à natureza, eles se veem como parte dela e respeitam, porque se algo for destruído, eles também por consequência se destruirão. A maneira que eles contam como cada coisa foi criada é especial, isso indica o quão estamos distanciados da natureza e que realmente o meio em que vivemos não entende que nada pode continuar se não compartilharmos com ela. E eles utilizam lanças, bastões feitos de madeira, ossos e pedra, dificilmente estão sem algo parecido e confeccionam suas canoas com cascas de árvores, e um fato interessante é que os aborígenes não são guerreiros, eles recorrem à guerras em raras ocasiões, como forma de justiça. Sem dúvidas, o filme se torna um pouco didático, mas carrega uma delicadeza e leveza poucas vezes vista sobre o tema.

"Dez Canoas" é um conto inusitado, divertido e gracioso, o tom descontraído é o diferencial. Somos inseridos em uma cultura incrível que traz mensagens de honra, justiça, preservação de tradições, amor e morte.  

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Carteiros nas Montanhas (Nashan Naren Nagou)

"Carteiros nas Montanhas" (1999) dirigido pelo chinês Jianqi Huo é um lindo filme sobre a difícil relação entre pai e filho. Baseado no conto homônimo de Peng Jianming, a história retratada é sutil, simples e encantadora, uma obra de arte delicada e deveras preciosa. 
Quando um velho carteiro (Ten Rujun), que passou anos entregando cartas nas comunidades rurais da montanha de Hunan, está para se aposentar, começa a treinar seu jovem filho (Ye Liu) para substitui-lo em sua função. O pai o acompanha então na primeira viagem de trabalho deste, que é também sua última. É a primeira vez que passam tanto tempo juntos, não separados pelas longas viagens do pai, e têm tempo de reforçar seus laços afetivos, pensar em suas relações familiares, e no passado.
O pai trabalhou a vida toda entregando cartas às pessoas, uma profissão exaustiva, mas que dava a ele uma imensa alegria, todos têm muito carinho e sempre o recebe como se fosse da família, porém nesses anos deixou de estar presente em sua própria família, não viu seu filho crescer e agora precisa passar todo seu conhecimento para alguém de confiança, está doente e não mais consegue trabalhar, o escolhido é o filho, este que ao decorrer vai se aproximando do pai e entendendo as circunstâncias da vida. O orgulho pelo pai e a admiração pelo filho vai crescendo e nós ao mesmo tempo que sorrimos derramamos também lágrimas.
São cenas dotadas de sensibilidade a fim de nos emocionar e capazes de fazer com que olhemos para dentro de nós e percebamos a nossa própria relação com nossos pais. O filho julgou muito o pai por sempre ter sido distante, mas durante a viagem que dura três dias passando pelos povoados compreende o quanto esse pai foi esforçado ao se sacrificar para dar uma vida digna para a família. Somos presenteados por vezes pelos pensamentos dos dois, o filho pensando sobre sua infância e o pai lembrando de como doía a saudade que sentia toda vez que partia.
O filme passa uma mensagem muito significativa, nos permite olhar por ângulos diferentes dessa relação, e o mais lindo é saber que ao final, a gratidão, um do mais nobres sentimentos vem à tona. Nesta viagem não só a relação se faz difícil, mas também o caminho, são obstáculos complicados e o jovem ainda não sabe lidar com a situação, ele não conhece e não se dá bem com a solidão, já o pai se sente confortável com sua solidão, sendo sua única companhia seu cachorro, um pastor inteligentíssimo que o ajuda muito.

A paisagem deste filme é algo divino, filmado no sudoeste e sul de Hunan, uma parte se passa numa aldeia do povo Dong, incluindo um festival à noite com uma dança lusheng. As belezas estão em todos detalhes, principalmente nos olhares e silêncios, não tem como não mencionar a cena no rio em que o filho carrega o pai nas costas e lembra que quando era criança pensava que ele era grande, mas que agora que cresceu e seu pai envelheceu percebe o quão pequeno é. E enquanto está sendo carregado relembra de quando ele carregava o filho.
São pequenas reflexões que portam uma força e tanto, repensamos na relação de pais e filhos e na distância que existe, sempre é bom lembrar que os filhos demoram olhar para os pais como seres humanos cheios de defeitos e qualidades, e que a vida os obrigou a fazer escolhas como qualquer outra pessoa. Quando o filho senta e conversa com seu pai, e este lhe confidencia momentos importantes de sua vida, ele acaba se tornando um alguém melhor, ele deixa de ser um menino para se tornar um homem.

Exercer a profissão de carteiro naquela região é muito mais do que somente entregar cartas, é criar relações próximas de afeto. A cena em que o pai o faz ler uma carta para uma senhora cega, compreende-se a importância de seu trabalho.

"Carteiros nas Montanhas" é primoroso, sua trilha sonora transcendental cria uma atmosfera de calmaria propícia à reflexão. Um filme encantador e enriquecedor, uma poesia audiovisual.

sábado, 24 de outubro de 2015

Haider

"A verdadeira liberdade está para além da violência. Lembre-se vingança só gera vingança."

"Haider" (2014) é a versão indiana de Hamlet (história de como o Príncipe Hamlet tenta vingar a morte de seu pai, Hamlet, o rei, executado por Cláudio, seu irmão que o envenenou e em seguida tomou o trono casando-se com a rainha), e assim como a peça traz a loucura real e a loucura fingida, do sofrimento opressivo à raiva fervorosa, e explora temas como a traição, vingança, corrupção e moralidade. Dirigido por Vishal Bhardwaj é o terceiro filme da sua trilogia Shakespeariana, sendo o primeiro, "Maqbool" - 2003 (Macbeth) e o segundo, "Omkara" - 2006 (Otelo).
"Haider" é o tipo de filme que surpreende em todos os quesitos, a sua evolução, reviravoltas, e principalmente a interpretação, a entrega do ator Shahid Kapoor, que nos deixa literalmente boquiabertos com tamanho talento. Como um bom filme indiano, "Haider" traz um roteiro redondo capaz de hipnotizar o espectador em suas 2h40 min, é uma história forte e admirável.
Em 1995, durante o conflito da Caxemira, Hilaal Meer, um médico se compromete a realizar uma operação de apendicite no líder de um grupo pró-separatista. Para evitar a detecção, ele executa a operação em sua casa, para desgosto de sua esposa Ghazala, que questiona sua lealdade. No dia seguinte, durante uma incursão militar, Hilaal Meer é acusado de abrigar terroristas. Um tiroteio segue em sua casa, o líder do grupo separatista é morto e Hilaal é levado para interrogatório. A casa do médico é bombardeada posteriormente, a fim de eliminar qualquer outro esconderijo militante lá. Vários dias depois, Haider, o filho de Ghazala e Hilaal, retorna de sua universidade para procurar respostas sobre o desaparecimento de seu pai. Na chegada, ele fica chocado ao encontrar sua mãe cantando e rindo junto com seu tio (irmão de seu pai) Khurram. Incapaz de compreender o comportamento de sua mãe, ele começa a procurar por seu pai em várias delegacias e centros de detenção com a ajuda de sua noiva Arshia, uma jornalista. A princípio, Haider supõe que o motivo tenha sido apenas político mas uma revelação bombástica dá um novo rumo à história.

A adaptação é inovadora e ousada, os diversos gêneros dão a possibilidade de vermos a história por vários ângulos. Haider ao chegar em sua terra natal para procurar seu pai está quieto, retraído, mas ao ver sua mãe e seu tio em uma cena suspeita ele se revolta e enlouquece, e ao descobrir mais e mais coisas a sua sede de vingança vai aumentando.
Shahid Kapoor é um espetáculo e nos brinda com cenas inesquecíveis. O filme se destaca não só pelo roteiro e atuações, mas também pelo ótimo visual, figurinos e cores, além da belíssima trilha sonora da qual consiste em músicas folclóricas da Caxemira. Há uma sequência deslumbrante em que Haider revela verdades se apresentando cantando e dançando a canção "Bismil" no casamento de sua mãe e seu tio, sem dúvidas, uma das melhores partes do filme.
A relação com sua mãe é complexa e envolve muitos segredos, ela é intrigante e mexe demais com os nossos sentimentos. "Haider" é um filme sofisticado pela sua narrativa magistral, ritmo emocionante e atuações impecáveis.

Talvez o que menos interesse na história seja o romance de Haider e Arshia, mesmo tendo momentos bonitos, o que pesa é a relação de Haider e sua mãe, e a vingança que o toma por completo. Sua mudança é sensacional e cada detalhe se faz importante. A versão moderna da tragédia de Shakespeare com conflitos da Índia e Paquistão pelo território de Caxemira é realmente fascinante.
"Haider" encanta pela sua bela e intensa história e demonstra que Shahid Kapoor é um ator completo e não apenas um galã de filmes água com açúcar. Um maravilhoso exemplar do cinema bollywoodiano que merece atenção por sua ousadia em adaptar a já tão conhecida tragédia, e ainda assim ter características tão próprias. É pra aplaudir de pé!

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Human

"Human" (2015) dirigido pelo fotógrafo francês Yann Arthus-Bertrand, criador da série fotográfica "Earth from Above", que vendeu 4 milhões de livros, e pela direção e co-produção do filme "Home", assistido por 600 milhões de pessoas. Em  setembro de 2015 lançou seu novo documentário: "Human", um retrato sensível sobre a Terra e seus habitantes. Foram 3 anos de filmagem e mais de 2.000 entrevistas em 60 países. É um trabalho extremamente lindo que capta emoções e que demonstra que somos únicos. São diversas culturas, histórias e olhares que fazem com que compreendamos o outro. Os assuntos variam entre amor, felicidade, superação, dor, guerra, morte, pobreza versus riqueza e o sentido da vida. Vivemos sem perceber o outro e não pensamos duas vezes em julgar, esse é um documentário essencial para que lembremos o que significa "ser humano". Em intervalos somos presenteados com belíssimas imagens aéreas ao redor do mundo, é mostrado o Quênia, Nepal, Paquistão, Mongólia, Madagascar, Bolívia, República Dominicana, Haiti, USA, França, entre outros, e tudo acompanhado por uma trilha sonora transcendental criada por Armand Amar que ajuda imensamente refletir sobre o que vemos, proporciona uma interiorização bem significativa.
"Eu sonhei com um filme em que a força das palavras ampliasse a beleza do mundo. As pessoas me falaram de tudo; das dificuldades de crescer, do amor e da felicidade. Toda essa riqueza é o centro do filme". (Yann Arthus-Bertrand)

O que nos torna humanos?
A primeira parte se concentra na questão do amor, dor e status social, são visões diferentes e interessantes. Acompanhamos histórias de amor, o amor que cuida, mas também o amor que machuca, as distorções acerca do sentimento que, afinal todos nós buscamos, porque não suportamos estar sós no mundo.
Relatos sobre a pressão e a exaustão do trabalho, dores físicas e psicológicas, a vida que se resume em se levantar e trabalhar, sacrifícios para sustentar a família, esforços que tiram a força e anulam uma vida. A diferença de classes também é mostrado como nesse depoimento: "O que é pobreza para mim? É quando eu preciso ir para à escola, mas não posso ir. Quando preciso comer, mas não posso. Quando preciso dormir, mas não posso. Quando minha esposa e meus filhos sofrem. Não tenho o nível intelectual necessário para sair dessa situação. Nem eu, nem minha família. Eu me sinto realmente pobre. No corpo e na mente. E vocês ricos que estão me ouvindo, o que têm a dizer sobre sua riqueza?"

Em vários momentos percebe-se que a riqueza dá liberdade de adquirir, mas torna as pessoas incapazes de esbanjar sentimentos, e que a pobreza dá as pessoas uma riqueza impossível de ser comprada por dinheiro. Há um depoimento bem marcante de um aborígene que diz assim: "Das pessoas mais generosas que conheço, algumas não têm dinheiro. E deve ser assim. Quando não se tem dinheiro, vive-se de outra forma. Os anciões por exemplo... Nossa língua não tem palavras para dizer 'por favor' ou 'obrigado', porque se espera que compartilhemos e demos o que temos. Hoje temos de dizer 'por favor' e 'obrigado', temos de implorar. Antigamente era normal compartilhar tudo. Fazia parte de nossa identidade. E não só para os aborígenes, eu imagino que no mundo todo fazia-se a mesma coisa antes do dinheiro. Mas agora é: 'Isso é meu', tem palavras como 'meu', não se compartilha mais nada. E virou. Isso nos mata como seres humanos, como sociedade, como raça. Quando digo 'raça', refiro-me à raça humana. Negamos abrigo aos outros, negamos comida, negamos a sobrevivência somente por causa do dinheiro."
Também contém uma entrevista com o ex-presidente do Uruguai José Mujica, um grande ser humano que exemplifica bem a questão da sobriedade, em se ter apenas o necessário, pois o que se gasta na verdade é o nosso tempo de vida, porque quando compramos algo pagamos com o tempo de vida que gastamos para conseguir o dinheiro, e a vida é a única coisa que não se pode comprar. 

A segunda parte reflete sobre homossexualidade, guerra, família e morte. Impressionante são as histórias vivenciadas por conta da guerra, vidas destruídas, seja pela perda de familiares ou de si mesmos, há aqueles que se modificaram como pessoa, que jamais viverão sem se lembrar do que passaram, pois viram e sentiram o gosto amargo da violência, mas alguns desejam vingança e outros que gostaram da sensação de matar. Um trecho bem significativo é de um cara que diz que todos querem saber como é a guerra, mas ninguém se preocupa em perguntar como ele está se sentindo. Angustiante e pesado vemos crianças preparadas para a guerra, pois se tornou um estado normal em muitos lugares. As pessoas estão realmente cansadas desse tipo de vida. Todos se despem perante a câmera e confiam a nós pedaços de suas vidas, somos arrebatados por tantas emoções, sorrisos, sofrimentos, lamentações e súplicas que fica difícil não derramar lágrimas e perceber que por mais que sejamos diferentes queremos o mesmo, viver dignamente e ser o que somos!
A homossexualidade também faz parte desse emaranhado de histórias e acompanhamos fortes depoimentos, de quem não se aceita, de quem não é aceitado, ou aqueles que receberam todo o apoio dos pais, o fato é que muitas pessoas creem que ser homossexual é uma opção, não acreditam que isso faça parte da pessoa como qualquer outro traço de personalidade. Como dito: "Você é gay? E daí?", esse 'e daí' faz tanta falta e é tão óbvio.

Da morte não falamos, principalmente em nossa cultura, temos medo do fim, quando na verdade o que precisamos é falar para pelo menos entender um pouco que estar vivo é algo maravilhoso. Aceitar que o corpo vai embora, mas os momentos vividos ficam, não tem como lutar contra isso. Seja com humor: "Depois da morte não tem mais nada. Vamos dar risada. Vamos para o céu, mas não pegamos o caminho certo. Embaixo da terra, não vai dar no céu. Não é o caminho certo. Eu não acho que exista vida após a morte. Eu não acredito nisso", ou com sabedoria: "Não tenho medo de morrer. Não sei se Deus existe ou não, mas prefiro acreditar. E quando olho para o universo, espero que nosso espírito vá para algum lugar, onde nos reconheçamos uns aos outros. Além dos meus pais, eu adoraria rever meu melhor amigo Shaunie, que morreu quando tinha 21 anos. Eu adoraria passar tempo com ele, viajando de carona pelo céu, como fazíamos aqui na Terra quando éramos jovens. Também adoraria encontrar todas as pessoas maravilhosas que tentaram tornar o mundo melhor e trabalharam pela justiça e pela paz no mundo. Para mim, isso é o mais importante. E quando analisamos as grandes religiões, filosofias e ideologias, e tentamos simplificar dogmas e teologias complexos, tudo se resume ao amor. Então espero que meu espírito seja levado para um grande balé e uma grande dança cósmica de amor, onde não haja mais sofrimento nem tristeza. Onde não possamos mais magoar ou ser magoados. E onde possamos realmente celebrar o grande dom da consciência, o grande dom de ser, o grande dom da vida. E se, afinal, Deus não existir, ainda sou grato pelo dom da vida. Sempre penso... que as últimas palavras que gostaria de dizer antes de morrer são: "Obrigado. Obrigado pelo dom da vida". 

A terceira parte diz sobre felicidade, educação, corrupção e o sentido da vida. É incrível observar que para cada um a felicidade significa uma coisa, para muitos está em suprir as necessidades básicas, ou poder se satisfazer com miudezas, compartilhar momentos, adquirir bens materiais, ver um sorriso no rosto do filho, se aceitar, colher o que plantou, acordar pela manhã e estar vivo.
A importância da educação é evidenciada, as crianças que vivem em lugares que sempre estão em conflito e que ir pra escola é difícil, nutrem a esperança de que com a educação as pessoas se livrariam da ignorância e perceberiam que a guerra é inútil. São olhares tristes, mas esperançosos. A imagem do professor é poderosa, eles podem mudar o destino de muitos. A deficiência é outro tema abordado, a dificuldade de viver em sociedade, dos obstáculos a ser ultrapassados, das estigmatizações e esteriótipos. 

Nos tornamos humanos quando somos capazes de sentir a dor do outro, quando conseguimos adentrar no ser de outra pessoa e sentimos vontade de fazer algo para que essa dor se amenize. Viver com dignidade, essa é a questão que fica pairando, ainda mais quando o tema imigração vem à tona, o caos, a desumanidade é tão grande que é insuportável. 
E afinal, qual a finalidade de existir, se não fizermos nada valioso simplesmente nossa vida não terá sentido? É aterrador pensar que estamos aqui e apenas sobrevivendo, esquecendo-se de que somos importantes e que tudo é tão amplo e repleto de possibilidades. Um dos depoimentos mais lindos sobre isso é de um brasileiro, com verdade e sutileza ele diz: "A vida é como carregar uma mensagem da criança que você foi um dia para o velho que você vai ser amanhã. E tentar não deixar essa mensagem se perder, se desfazer. Muitas vezes me pergunto sobre isso, porque quando eu era criança eu pensava tantas coisas bonitas. 'Nossa! Eu quero um mundo sem mendigos, todo mundo feliz'. Coisas tão simples e sutis. Mas a gente perde isso, a vida faz a gente perder. Daqui a pouco só trabalhamos para poder comprar coisas e não tá nem aí pro mendigo, não ajuda ninguém. Aí cadê aquela mensagem da criança? Talvez o sentido da vida seja não deixar essa mensagem da criança desaparecer."

"Human" é um documentário enriquecedor que nos proporciona ampliar o olhar perante o outro, entender que cada ser humano é um mundo e que devemos respeitar, porque queremos que seja assim conosco. "Fazemos parte do 'todo humano', somos iguais na diferença, com nossos pensamentos, sentimentos e mistérios". Essa frase do escritor Khaled Hosseini se encaixa perfeitamente na aura do filme.
Por fim, assistam "Human", uma obra imprescindível capaz de nos modificar. Em tempos em que o amor ao próximo se tornou algo raro, é ainda mais válido!

Dividido em 3 partes de 90 min, está disponível no Youtube.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Labirinto de Mentiras (Im Labyrinth des Schweigens)

"Labirinto de Mentiras" do diretor Giulio Ricciarelli é baseado em fatos reais e retrata o período pós-guerra em que a Alemanha fingia não ver e não admitia as atrocidades cometidas pelo nazismo.
Em 1958, na Alemanha, um jovem procurador investiga casos relacionados aos crimes nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, e descobre diversos fatos capazes de incriminar altos funcionários do governo. Mesmo sofrendo grande pressão para abandonar a investigação, ele está determinado a revelar todo o horror cometido por seus compatriotas.
Johann Radmann (Alexander Fehling) é um ambicioso advogado que deseja mais que os casos de infrações de trânsito, ele vê a oportunidade quando um jornalista lhe dá a dica sobre um professor de crianças ter sido um carrasco no passado. Johann não pensa duas vezes e mergulha no caso e investigando relembra o que os alemães preferem esquecer. Os crimes cometidos pelos nazistas foram encobertos por instituições governamentais e o país ficou cego, quando se pergunta sobre Auschwitz, fingem ou não sabem o que de fato aconteceu no lugar. Pessoas que fizeram parte do período mais crítico da História estavam vivendo suas vidas como se nada tivesse acontecido. Johann cada vez mais absorvido pelo caso vai descobrindo por sobreviventes que na verdade o que procura é muito maior do que pensava. Muitos alemães acreditavam que as histórias contadas pelos sobreviventes eram alucinações, não faziam ideia do que acontecia nos campos de concentração, não existia nada além de relatos, o governo fez de tudo para esconder.
Johann vai se surpreendendo ao tentar encontrar provas, seus dias passam a ser totalmente dedicados a isso, são montanhas de arquivo, ele é ajudado pelo jornalista Thomas Gnielka (André Szymanski), mas é desprezado pelo procurador-geral, só que Johann não desiste, principalmente ao ver que o caso ganhou uma proporção inimaginável. Para se ter uma ideia em Auschwitz eram oito mil pessoas investigadas, encontrá-las virou a obsessão dele, especialmente Josef Mengele. Johann é sufocado pelo trabalho e enlouquece ao perceber que pessoas queridas fizeram parte deste passado tenebroso. Muitas questões surgem, a maior delas é sobre se o que foi feito foi porque eram ordens, ou porque acreditavam naquilo, a maior desculpa é a de que seguiam ordens, mas como o final do filme diz, a maioria quando foi a julgamento não demonstrou remorso.
Esse episódio foi imensamente importante para que o povo tivesse conhecimento e que sentissem vergonha, com certeza o nazismo ainda é um fantasma que ronda os alemães. "Labirinto de Mentiras" é um filme importante, forte, denso, e que propõe um olhar diversificado para esse período pós-guerra. Compreende-se um pouco do sentimento do povo alemão em relação ao seu passado. Johann percebeu que não se tratava de apenas condenar os culpados, mas de mostrar ao povo que esse fato deveria ser encarado de frente.

Com um roteiro redondo e uma bela fotografia, além das maravilhosas atuações, principalmente de Alexander Fehling, "Labirinto de Mentiras" é um filme intenso que dificilmente será esquecido por quem o assiste. Apesar de utilizar um tema já tão explorado pelo cinema, é um ótimo exemplar que propicia um novo olhar e novos sentimentos, por mais que se fale sobre o holocausto, sempre há o que acrescentar. 

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

O Conto dos Contos (Il Racconto dei Racconti)

"O Conto dos Contos" dirigido por Mateo Garrone (Reality - 2012) é um filme que reformula os contos de fada e abusa de absurdos e situações bizarras. Criativo, ousado e também encantador, a fotografia é um deslumbre e os três contos cativam o espectador de maneira hipnótica.
No reino de Longtrellis, o rei (John C. Reilly) e a rainha (Salma Hayek) vivem com uma frustração, já que não podem ter filhos. Em busca de uma solução, eles entram em contato com um mago, que oferece uma receita: é preciso capturar o coração de um monstro marinho e fazer com que uma virgem o cozinhe, sem que alguém esteja por perto. Entretanto, ele faz um alerta: toda vida criada exige uma perda, para que o equilíbrio seja mantido. Em outro país, um rei (Vincent Cassel) guiado pelo desejo está obcecado por uma mulher que viu pela janela, no alto de seu palácio, sem saber que ela na verdade é uma idosa. Em um terceiro país, um rei (Toby Jones) se surpreende com a descoberta de uma pulga que, alimentada por seu sangue, cresce cada vez mais.
A inveja, a luxúria, a ambição, o egoísmo, entre tantos outros sentimentos que uma hora ou outra destroem o ser humano estão explícitos nos personagens.
Somos introduzidos a um mundo surreal em que a rainha, interpretada por uma Salma Hayek seca faz qualquer coisa para ter um filho, seu marido se dispõe a matar um monstro marinho, a fim de pegar seu coração para que uma jovem virgem o cozinhe e sua mulher o coma, as palavras do mago foram seguidas, mas conforme dito haverá consequências. A virgem e a rainha engravidam de imediato e as crianças nascem iguais e fiéis uma a outra, o que irrita a rainha profundamente, ela se torna possessiva, e portanto capaz de tudo para mantê-lo por perto, mas seu filho é um jovem independente e de bom coração.
O segundo conto é sobre um rei vivido pelo sempre sedutor Vincent Cassel, que ao ouvir um canto se apaixona, ele crê que a voz é de uma bela e jovem virgem, e cego faz de tudo para tê-la. Dora (Hayley Carmichael) é uma idosa que vive trancafiada com sua irmã Imma (Shirley Henderson), as duas brincam com o rei e um dia Dora aceita a proposta com a condição de que ele a leve para seu palácio e que consumem o ato no escuro. Mas, ao amanhecer o rei vê o seu rosto e a joga pela janela. Inesperadamente, ela é encontrada por uma bruxa que a transforma numa bela ninfa, o rei, claro, se encanta e a pede em casamento. Imma não se conforma em ser deixada pela irmã e enlouquece desejando voltar a ser jovem novamente também. Só que a juventude não é para sempre, Dora volta a ser velha e Imma paga um preço bem caro pela sua obsessão.

O terceiro conto, talvez o mais engraçado e esquisito é sobre o rei de Highhillsque, ele é fixado em pulgas e as cria domesticamente, as alimentando até que fiquem gigantes. Um dia, um de seus monstros morre, ele retira a pele do animal e faz uma aposta, quem descobrir de que animal é essa pele poderá se casar com sua filha, Violet (Bebe Cave), uma jovem que sonha com um príncipe encantado. Porém, o ganhador é um ogro e ele a leva para morar nas montanhas. Dias depois, ela é ajudada por Circus Owner (Alba Rohrwacher) e seus filhos, mas não vai ser tão fácil quanto ela pensava. O final dessa história é sangrento e emocionante.
"O Conto dos Contos" vem para descaracterizar a imagem que se criou em cima das fábulas, não há nada de infantil ou feliz, as histórias mostram de forma cruel que tudo na vida tem seu preço, se desejar incontrolavelmente alguma coisa e se dispor a fazer de tudo, pode ter certeza que ao final será cobrado. Com um roteiro primoroso e uma fotografia impecável somos absorvidos por esses contos que carregam uma beleza cru, e que mesmo sendo lúdicos conversam com a realidade.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Top 10 - Achados Musicais

Segue uma lista de Achados Musicais que encontrei ao acaso no Youtube ou pesquisando em sites. Todos valem muito a pena. Aproveitem!!

"A música expressa o que não pode ser dito em palavras mas não pode permanecer em silêncio." (Victor Hugo)

10- Absinto Muito (Brasil)
Absinto Muito é uma banda de rock'n roll natural de Minas Gerais. Com raízes no rock dos 70's, a aura é psicodélica e transcendental. A banda passeia pelo tropicalismo do Brasil e pelos campos hippies de Woodstock, trazendo amor e ousadia em suas composições e versões. Um encontro entre Hendrix, Mutantes e Zeppelin culminando em uma sonoridade atual e nostálgica. Deixo o link do segundo álbum "A Banda Morre" (2013)

09- Cartel da Cevada (Brasil)
Cartel da Cevada é uma banda gaúcha que faz um rock sem frescuras, são letras escrachadas repletas de riffs e grooves vibrantes influenciadas pela energia do hard rock setentista de bandas como Black Sabbath e Kiss. Deixo o link do álbum homônimo de 2011.

08- Confraria da Costa (Brasil)
Confraria da Costa é uma banda de Rock Pirata de Curitiba fundada em 2010. Sua música tem influências do Blues, Folk, Jazz, Gypsy e música erudita. Suas composições são em português e fazem uma reflexão cínica e irônica sobre o homem, a sociedade, o alto mar e os meandros da vida e da morte. A banda possui dois discos lançados, o homônimo "Confraria da Costa" (2010) e "Canções de Assassinato" (2012).

07- Hillbilly Rawhide (Brasil)
Hillbilly Rawhide é uma banda curitibana de rockabilly e country rock alternativo, sendo uma das poucas bandas brasileiras deste gênero musical. Deixo o link do E.P "F.N.M" (2008), que tem a ótima música "O Enxofre e a Cachaça".

06- Howling Black Soul (Reino Unido)
Howling Black Soul é um trio inglês que surgiu por uma obsessão em bandas como Led Zeppelin, Jimi Hendrix, Rolling Stones, Black Sabbath e outros do final dos anos 60. É um som que resgata o clássico, mas permanece totalmente atual. O début da banda aconteceu em 2014 com o álbum autointitulado.

05- Alabama Shakes (EUA)
Alabama Shakes é uma banda de southern rock e blues rock formada em Athens, Alabama em 2009. A vocalista e guitarrista Brittany Howard tem uma voz marcante e a banda coroa com um instrumental poderoso. Eles já lançaram dois álbuns, "Boys & Girls" (2012) e "Sound & Color" (2015). Deixo o link da música "Hold On", que fez com que a banda fosse percebida e agora cada vez mais admirada.

04- Leon Bridges (EUA)
Leon Bridges, cantor e compositor alcançou a fama muito rapidamente e com apenas três músicas disponibilizadas na internet, uma dessas faz referência à infância da própria mãe, contando episódios como o batismo em um rio. Ele tem sido comparado com um dos grandes ícones do soul, Sam Cooke. Sua voz é emocional e nos transporta para os anos 50/60. Seu álbum de estréia "Coming Home" já está entre os melhores de 2015.

03- Wolf Larsen (EUA)
Wolf Larsen é o nome artístico de Sarah Ramey, cantora, compositora e escritora. Sua voz suave encanta, são canções intimistas e melancólicas. "Quiet at the Kitchen Door" saiu em 2011 e revela muita poesia. Deixo o link da bela música "If I Be Wrong".

02- Heartless Bastards (EUA)
Heartless Bastards é uma banda americana de garage rock. Erika Wennerstrom tem uma voz áspera que cativa logo de primeira. A banda já lançou cinco álbuns: "Stairs and Elevators" (2005), "All This Time" (2006), "The Mountain" (2009), "Arrow" (2012) e "Restless One"(2015). Deixo o link da ótima canção "Marathon".

01- Marjan Farsad (Irã)

Marjan Farsad é uma cantora e ilustradora iraniana. Suas músicas são delicadas e sensíveis, uma verdadeira preciosidade. Deixo o link da canção "Khooneye Ma" do álbum "Blue Flowers" (2014).

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Que Horas Ela Volta?

"Que Horas Ela Volta?" (2015) dirigido por Anna Muylaert (É Proibido Fumar - 2009) aborda de maneira simples uma questão bastante pertinente, a diferença entre classes sociais no Brasil, principalmente a relação entre patrões e empregados.
A pernambucana Val se mudou para São Paulo a fim de dar melhores condições de vida para sua filha Jéssica. Com muito receio, ela deixou a menina no interior de Pernambuco para ser babá de Fabinho, morando integralmente na casa de seus patrões. Treze anos depois, quando o menino vai prestar vestibular, Jéssica lhe telefona, pedindo ajuda para ir à São Paulo, no intuito de prestar a mesma prova. Os chefes de Val recebem a menina de braços abertos, só que quando ela deixa de seguir certo protocolo, circulando livremente, como não deveria, a situação se complica.
Regina Casé interpreta Val, uma empregada doméstica que mora no próprio emprego, ela faz de tudo, até algumas tarefas absurdas como tirar o prato da mesa, ou buscar um copo de água para a patroa, é preciso prestar atenção a cada ação dos personagens para perceber o abismo que existe ali. Val criou Fabinho, filho dos patrões, o título do filme é uma pergunta do garoto para saber quando a mãe, a estilista Bárbara (Karine Teles), deve chegar, já que ela passa o tempo todo fora, os dois criam um vínculo forte, sempre que acontece alguma coisa é para Val que ele vai pedir ajuda. Val cuida de tudo e de todos naquela casa, mas não pertence àquele lugar. Ela não é vista como um ser humano, mas como algo que supre as necessidades deles. Isso é tão comum no cenário brasileiro que às vezes fica difícil enxergar, até porque as "Vals" são invisíveis.
A cena em que ela serve convidados que demonstram desprezo, seguido da atitude da patroa ao ver ela servindo café com o jogo de xícaras que Val comprou de aniversário pra ela nos deixa muito mal. As coisas se modificam com a chegada de Jéssica (Camila Márdila), que pretende prestar vestibular de arquitetura em uma das universidades mais disputadas, da qual Fabinho também prestará. Daí em diante levamos choque atrás de choque, pois a cada ação percebemos que está tudo errado dentro daquela casa. A tensão já começa quando Val diz à filha que mora na casa dos patrões, e que ela iria dormir no quartinho, inclusive com um colchão novinho que a dona Bárbara comprou, Jéssica não tem intimidade nenhuma com a mãe e ao ver o como ela vive e é tratada fica indignada e desse modo a hipocrisia daquela família vai sendo escancarada. Jéssica cai nas graças do dono da casa, que é rico por herança e cujo casamento com Bárbara é outra hipocrisia, ela acaba indo dormir no quarto de hóspedes, sentando na mesa e comendo o mesmo que eles. É incrível o quanto cresce a questão de que cada um tem o seu lugar ao longo do filme. 

"Que Horas Ela Volta" é um abrir de olhos para algo dito normal, a frase mais comum que se ouve é: Eu tenho empregada, mas a considero praticamente da família, esse "praticamente" é um imenso abismo, ou esta aqui: Estou fazendo um favor já que muitas pessoas necessitam de emprego para sobreviver e eu não tenho tempo. As injustiças e preconceitos imperam, mas o véu da hipocrisia faz questão de cobrir. As pessoas querem comodidades, chegar em casa e vê-la limpa, roupas lavadas e passadas, mas não querem pagar o valor merecido do trabalho executado, a Val representa muito bem a classe doméstica, que por sua simplicidade sempre é passada pra trás.
O filme segue com situações cotidianas que acontecem em qualquer lar por aí, mas a sutileza, os detalhes, as coisas não ditas, por exemplo, os olhares da patroa coroam essa obra magnífica que deve ser vista e absorvida. Causa mal-estar e por mais que alguns momentos soem engraçados, perceba que na realidade é bem triste. Jéssica desestrutura toda a hipocrisia daquela família, sua curiosidade como ela mesma fala: "Não sou inteligente, sou curiosa", sua ousadia em prestar um curso concorrido numa das melhores faculdades, seu jeito desprendido e questionador incomoda o patronato e faz Val começar enxergar que "opa, pera aí, não pode ser assim". 

É um filme que reflete muito a situação de todos os envolvidos, toda vez que sem querer julgamos um personagem vem algo e nos desestrutura, é um choque de realidade e para se pensar na sociedade em que vivemos. "Que Horas Ela Volta" é um exemplar nacional inquietante, mas completamente necessário.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A Coleção Invisível

"A Coleção Invisível" (2012) dirigido pelo francês radicado no Brasil Bernard Attal é baseado num conto homônimo de Stefan Zweig, a história é transportada para o interior da Bahia num período após a "vassoura da bruxa" (doença dos cacaueiros causada por um fungo). É um filme extremamente simples e sensível, as atuações carregadas de emoção dão o tom exato e faz parecer crível. Vladimir Brichta está confortável em seu personagem, ele é contido, guarda suas emoções, sem dúvidas, até agora a melhor atuação de sua carreira. Na trama também tem a última aparição de Walmor Chagas, como o apaixonado colecionador. 
O início já nos fisga, um grupo de jovens conversando sobre o que gostaria de ser em outra vida, todos animados passam a noite bebendo e dançando, mas um acidente acaba com a vida de todos após saírem com o carro de Beto (Vladimir Brichta). Triste e sem rumo Beto passa seus dias silencioso, não derruba uma lágrima sequer, mas percebe-se que a culpa o corrói. No decorrer ele se envolve com a loja de antiguidades de sua mãe e vai em busca de uma coleção de gravuras raras que seu pai havia vendido tempos atrás. Então, ele viaja até o interior da Bahia e se depara com uma família em decadência e uma fazenda arruinada. Tudo que se vê por lá é a destruição por conta da praga e a agressividade da esposa (Clarisse Abujamra) e da filha (Ludimila Rosa) de Samir (Walmor Chagas). Elas fazem de tudo para que Beto não encontre Samir, ele é posto pra fora em todas as suas tentativas, o que o faz ficar ainda mais curioso. Samir já debilitado e cego, como o próprio Walmor, é protegido por sua rígida mulher. Enquanto Beto está no local ele pensa em tudo que lhe aconteceu e começa a enxergar a vida de uma outra forma.
Não há grandes acontecimentos, apesar de ser um road movie incluindo a autodescoberta, o filme é mais contemplativo e a mudança do personagem acontece apenas no final, os detalhes são importantes e a cada minuto que passa algo acrescenta à trama. "A Coleção Invisível" é um filme especial, sutil e muito bem desenvolvido.

Vladimir Brichta mostrou toda a sua potencialidade, incrível sua entrega e como é natural a sua introspecção e seu progresso. Imenso em sua simplicidade imergimos na história que ao final nos brinda com belíssimos diálogos de Samir e Beto e revelações que acabam por mudar a visão de mundo e de si mesmo.
A canção tema "Teus Olhos Cansados" interpretada por Tiê encanta e hipnotiza, realmente a delicadeza está absolutamente em tudo neste longa. A aura melancólica instiga a reflexão. Há muitas cenas tocantes em que sentimos todas as emoções junto com o protagonista.
"A Coleção invisível" é daqueles filmes memoráveis, pois tudo nele é agradável, mesmo com toda a dor e devastação. Beto conseguiu extrair beleza e pureza em meio a destruição e ao final saiu renovado e quem sabe pronto para continuar.