quarta-feira, 11 de março de 2020

Entre Realidades (Horse Girl)

"Entre Realidades" (2020) dirigido por Jeff Baena (The Little Hours - 2017) é um filme que se encaixa na categoria de ame ou odeie, particularmente o encarei de forma séria e em vários momentos a tristeza foi inevitável, é preciso analisá-lo nas entrelinhas e por mais que pareça algo bizarro a sensibilidade impera, ainda mais porque vemos a história sob o olhar da protagonista. 
Sarah (Alison Brie) é uma mulher sonhadora e socialmente desajeitada. Apaixonada por artes e artesanato, cavalos e crimes sobrenaturais, ela percebe que seus sonhos estão cada vez mais lúcidos e passa a se perguntar o que seria realidade e o que seria ilusão.
O filme tem uma carga dramática intensa, mas possui uma delicadeza impressionante, principalmente pela incrível atuação de Alison Brie e seus grandes olhos que nos revelam lentamente e confusamente sua decaída psicológica, o desencadear-se do seu adoecimento mental é progressivo e nos envolve numa manta de surrealismo que beira o humor, mas que na verdade é profundamente doloroso. Sarah é uma moça introspectiva, porém gosta de se comunicar e é bastante agradável, mantém uma relação distante, mas amigável com sua colega de quarto Nikki (Debby Ryan) e a sua colega de trabalho Joan (Molly Shannon), só que ninguém de fato é um elo e a vemos sempre sozinha, sua rotina inclui trabalho, visitar a hípica do qual seu antigo cavalo se encontra, fazer aulas de zumba e assistir seu seriado favorito, chamado Purgatório. Quando chega seu aniversário Nikki a obriga a se divertir um pouco e lhe apresenta um amigo, Darren (John Reynolds), Sarah já se encanta pelo nome, o mesmo do personagem da sua série predileta, com a ajuda de bebidas e algumas substâncias consegue se desprender e se divertir, mas esse momento marca o começo de um desencadear de problemas que vêm como sonhos lúcidos em que ela se enxerga num quarto branco com duas pessoas desconhecidas e mais adiante acordando em lugares estranhos, sua conclusão é que esta sendo abduzida e que é um clone de sua avó. Mesmo que ela saiba que tanto sua avó como sua mãe sofreram com distúrbios psicológicos não acredita que esteja acontecendo também consigo, seu pensamento é de que faz parte de algo grandioso e esteja num emaranhado de coisas sobrenaturais e experiências científicas. Elabora teorias cada vez mais surreais e junta elementos do seu cotidiano, como pessoas que viu, frases aleatórias que ouviu e sua mente produz sonhos, ela imerge tanto nesse universo que termina acordando em outros lugares e quando entra em si pensa ter sido abduzida.

No início a história possui um tom levemente cômico, uma personagem agradável e doce, mas a medida que sua mente se torna mais confusa e paranoica entramos junto dela num território sombrio, estranho e genuíno, sua mente vai se perdendo progressivamente e intensamente, o ápice seria quando ela conversa com seu ficante a respeito de suas teorias, o rapaz a ouve achando engraçado, mas entende depois através de um colapso nervoso que não estava brincando, essa cena explica o seu estado de saúde mental, e é impressionante que a partir daí as coisas realmente se tornam desesperadamente tristes, como a cena em que num minuto está no banho e no outro aparece pelada na loja em que trabalha, todas as cenas carregam sutilezas e por ser tudo mostrado através de seu olhar talvez nos confunda um pouco, mas é para nos dar a justa sensação de estar se perdendo dentro de si mesmo.

"Entre Realidades" é um ótimo exemplar sobre saúde mental, ele te insere na falta de controle sobre os delírios de forma orgânica, e mesmo sendo por vezes elusivo suas minuciosidades garantem a beleza da obra, certamente um filme para se ver com mais carinho.

terça-feira, 10 de março de 2020

Sócrates

"Sócrates" (2018) dirigido por Alex Moratto é um filme nacional de uma crueza e sensibilidade arrebatadora, produzido pela Querô Produções - um braço da ONG Instituto Querô, de Santos, traz o cotidiano aflitivo de um garoto que tenta sobreviver diante de tantas dificuldades e conflitos em camadas que transbordam tensão e desespero.
Depois da morte de sua mãe, o jovem Sócrates (Christian Malheiros), que foi criado apenas por ela durante os últimos tempos, precisa fazer tudo o que for possível para que consiga sobreviver na realidade da miséria, somado com o preconceito por ser homossexual. Seus valores e ideais são colocados na balança com o medo de não conseguir se virar sozinho.
Acompanhamos a sofrida saga de Sócrates em busca da sobrevivência, ele se vê sozinho e perdido quando sua mãe falece e por ser jovem demais não consegue emprego, vive de bicos e mal consegue se alimentar, tudo se complica quando conhece e se envolve com Maicon (Tales Ordakji), que não aceita a sua própria natureza, esse relacionamento desencadeia sentimentos autodestrutivos, Sócrates começa a beber e a se tornar mais agressivo, são muitas coisas das quais precisa lidar, o luto, a carência, o desespero, a solidão, não há tempo para ele refletir e tentar outros caminhos, a vida corre e parece não haver absolutamente nada. Nessas suas andanças atrás de emprego enfrenta a falta de oportunidades e se esquiva do serviço social que o colocaria sob a tutela do pai, este que o renega por sua sexualidade, há uma cena bastante pesada lá pelo final do filme em que sem mais saber o que fazer Sócrates recorre ao pai, ele quer comida e também afeto, o desespero é palpável, mas o que ganha é agressão e humilhação, de fato o que se sucede é de um amargor que nos revira.
A história é crua e não há espaços para qualquer momento calmo, o cotidiano machuca e não parece oferecer nada além de miséria, o sentimento de abandono, tristeza e solidão pulsa por esse garoto que se sente confortado nos braços de Maicon, mas novamente o que ele recebe é preconceito e desamor; a vulnerabilidade é imensa.

Sócrates não tem tempo para pensar ou sentir o luto, ele precisa continuar e para isso tenta diversas alternativas, como conseguir o trabalho de sua mãe, porém apesar de esforçado esbarra na lei, então recorre a bicos que exploram mão-de-obra barata, ele segue sempre de maneira aflita tentando vivenciar as experiências e as camadas de sentimentos se confundem e entram em choque, tudo acaba indo para situações de humilhação e se transformando em raiva, por exemplo, o relacionamento com Maicon, o reencontro com o pai e a busca das cinzas da mãe, os entraves dessas situações aglomeram-se numa mistura de raiva e angústia que não tem como não explodir de algum modo, a atuação de Christian Malheiros é intensa ao longo de todo o processo de embrutecimento. 

"Sócrates" possui uma história forte e real, transmite tensão e angústia sem dar qualquer respiro, não há brechas para lamentações e quando esses momentos acontecem são silenciosos e o choro é preso, retrata organicamente a trajetória de um garoto marginalizado sendo sufocado e apagado aos poucos pelo sistema que está inserido. Filmaço!

quinta-feira, 5 de março de 2020

A Despedida (The Farewell)

"A Despedida" (2019) dirigido por Lulu Wang (Póstumo - 2014) é um filme sensível e interessante sobre as diferenças culturais entre oriente e ocidente principalmente em relação a morte e o luto, mas também retrata a contemporaneidade do país em seus belíssimos planos abertos, a diretora se inspirou na própria avó para compor a história que em nenhum momento soa pesada ou triste, mas sim exibe um olhar afetuoso e leve mesmo com toda a confusão e conflitos internos, a decisão tomada não é algo particular e individual, abarca uma série de outros pensamentos que ultrapassam qualquer tabu.
Quando a família de uma doce senhora descobre que ela possui apenas mais algumas semanas de vida, eles decidem não informá-la a respeito do diagnóstico. Em vez disso, seus filhos e netos tentam arranjar um casamento de última hora para que todos os parentes mais distantes possam vê-la por uma última vez sem que ninguém saiba o que está acontecendo de verdade.
O desenvolvimento é bastante agradável e gera sensações de acolhimento, além de refletirmos melhor sobre encarar a morte sem ser de forma fúnebre, claro que todos da família sentem, mas o cuidado em deixar a avó continuar vivendo feliz com suas coisinhas abre um horizonte belo e zeloso. 
Billi (Awkwafina) vive em Nova Iorque, mas volta à China para reunir-se com a família que descobriu que Nai Nai (Zhao Shuzhen), sua avó, está num estágio avançado de câncer, o médico não conta a verdade a pedido da família e ela continua vivendo feliz e sem maiores complicações, para ela não estranhar a reunião familiar inventam um casamento de última hora e aproveitam o tempo junto dela. As situações variam entre tensões para aceitar a decisão de não contar a verdade, pois a maioria se mudou do país e não estão tão próximos das tradições, as visões de cada um são diferentes, mas terminam entrando num consenso, para alguns é mais dificultoso não demonstrar tristeza, o peso de carregar uma notícia dessa, mas não querem que ela sofra, sua figura acolhedora e amável jamais poderia ser apagada com algo tão devastador. 

Uma das coisas mais bonitas é a forma como a morte é encarada, claro que com tristeza, mas nunca com desespero e ressentimento, na realidade celebram a vida e a alegria de a terem compartilhado com a pessoa que amam, algo que encanta aos nossos olhos também é a honestidade da história, sem afetação e estereótipos culturais, o longa mesmo sendo americano é praticamente falado todo em mandarim e é estrelado por atores chineses, portanto há muita sensibilidade e verdade no que está sendo retratado. 

"A Despedida" é um filme que mesmo retratando algo doloroso, pois saber que vai perder alguém certamente é angustiante, carrega simplicidade e muito acolhimento, há momentos espirituosos, a alegria se mistura com a tristeza e como não contam a verdade precisam se concentrar em não demonstrar, por isso as interpretações são contidas. É um filme curioso e intimista que capta nuances interessantes de como encarar a morte.