quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Hereditário (Hereditary)

"Hereditário" (2018) dirigido pelo estreante Ari Aster é dessa nova leva de terror que vem mais atrelado ao thriller psicológico, que não se concentra em artifícios fáceis e que não subestima o espectador, é um exemplar perturbador que possui várias camadas, repleto de simbolismos a trama nos arrasta devagar para a sinistra família marcada por infortúnios. 
Após a morte da reclusa avó, a família Graham começa a desvendar algumas coisas. Mesmo após a partida da matriarca, ela permanece como se fosse uma sombra sobre a família, especialmente sobre a solitária neta adolescente, Charlie, por quem ela sempre manteve uma fascinação não usual. Com um crescente terror tomando conta da casa, a família explora lugares mais escuros para escapar do infeliz destino que herdaram. Atenção: Spoilers a Seguir!
É preciso estar atento as pistas, aos detalhes que a história vai dando, não é um filme para se assistir olhando o celular ou fazendo qualquer outra coisa, é preciso imergir nela, pois o desenrolar e a atmosfera pesada vem de modo gradativo, já no início a câmera foca no colar da avó, que é igual ao que Anne (Toni Collette) usa, o símbolo desse colar aparece em várias cenas e sua significação é de extrema importância, o discurso feito por Anne no enterro reflete a relação complicada e o como ela desconhecia a mãe, "uma mulher muito reservada e privada... ela tinha rituais privados e amigos privados"após o falecimento dessa avó que era adorada aparentemente apenas por Charlie (Milly Shapiro), desestabiliza essa família por completo. Anne é uma artista primorosa que constrói miniaturas para uma galeria de arte, toda a sua obra representa a sua própria vida, uma maneira perturbadora de se lidar com a realidade, Charlie é uma garota peculiar que ou está desenhando ou está construindo seus próprios bonecos (outro simbolismo), também vive comendo barras de chocolate, sua introspecção é extrema e parece não habitar a realidade. Seu irmão Peter (Alex Wolff) é um adolescente que fuma maconha escondido dos pais e que está começando a se desinibir, o pai (Gabriel Byrne) apesar de não esboçar muitos sentimentos com o decorrer se mostra a pessoa mais centrada ali naquela família. Muitas questões se desnovelam dentro daquela casa, o luto, a dificuldade da comunicação, maternidade, distúrbios psíquicos, o fato é que todos se fecham em si mesmos, Anne em seu mundo miniatura, Peter no seu quarto fumando maconha, Charlie desenhando e Steve o único tentando resolver os problemas reais, mas que se recolhe em seu casulo não dando assistência emocional a ninguém. Anne busca ajuda em grupos de autoajuda e ali compreendemos mais da conflituosa relação com a mãe e sobre a hereditariedade dos distúrbios psíquicos, o flerte com o oculto acontece mesmo depois da morte trágica de Charlie, que parece ter sido articulada por forças sobrenaturais, Peter quer ir a uma festa, mas Anne só deixa se ele levar Charlie, claramente a menina não quer, mas acaba indo, Peter sobe para fumar com a menina que está afim e deixa Charlie à vontade para comer um bolo de chocolate, que está forrado de nozes, logo sua alergia ataca e sua garganta fecha, Peter se desespera e a coloca no carro, no caminho o acidente, no poste o símbolo, um momento terrível que faz o espectador arregalar os olhos tamanho o horror. Peter fica paralisado, demora a se recompor e recomeçar a dirigir, no asfalto a cabeça da irmã, no carro o corpo. 

Peter não diz nada à família, Anne descobre pela manhã e irrompe em desespero, novamente o luto, a angústia, o silêncio. Ninguém diz nada a ninguém, Anne se isola em seu estúdio, Peter vaga pela casa esperando que a mãe diga algo, a culpa o corrói. Então a família começa a ruir de vez, enquanto isso Anne novamente pensa em buscar ajuda fora e é aí que conhece Joan (Ann Dowd), que a consola e a convida para participar de um ritual, uma espécie de jogo do copo, onde ela chama pelo espírito do neto, Anne fica comovida e se agarra a possibilidade de se conectar com Charlie. Tudo desanda de vez, ela aceita o oculto e a partir daí vai descobrindo mais sobre sua mãe e vai ladeira abaixo, ao fazer o chamado de Charlie o espírito começa a atormentar Peter. Steven não acredita nestas coisas e acaba interpretando que Anne está descontando no filho seu sofrimento e ele por conseguinte manifestando com comportamentos estranhos. Esse desencontro familiar, a incomunicabilidade e distanciamento só ajuda na entrada do mal, cada vez mais ele se acomoda e chega mais próximo do que deseja, Peter.

Anne começa a ligar os pontos em determinado momento, assim como nós espectadores, Joan era uma antiga amiga de sua mãe e ambas faziam parte de um culto que desejava dar um receptáculo a Paimon, um dos reis do inferno, segundo a magia Goetia, desde o começo sua mãe articulou tudo, sobre Anne ter um segundo filho e dessa maneira se reconectar a ela, em várias partes Anne diz o quanto odiava quando sua mãe alimentava Charlie e da sua afeição estranha pela menina, mas é que ela era um receptáculo de Paimon, quando a avó morre a menina pergunta quem cuidará dela, a mãe tenta consolá-la e diz que era favorita da avó, Charlie por sua vez diz que a avó preferiria que ela fosse homem. Compreendemos isso mais tarde quando depois de sua morte o culto começa a ritualizar em cima de Peter, pois Paimon tem preferência por corpos masculinos, então tudo vai se encaixando e a obscuridade vai tomando conta da história. A escolha dessa entidade foi um acerto original, muitos filmes retratam o demônio, satanás, lúcifer, o capeta e sempre com intuito apenas de assustar, não há profundidade ou contexto. Segundo a demonologia, Paimon é o nono espírito dentre 72 da Goetia (Refere-se à prática de Invocação de Anjos ou a Evocação de Demônios descritos no grimório do séc. 17), ele é considerado um dos reis do inferno e muito obediente a Lúcifer, ele aparece sob a forma de um homem de rosto afeminado sentado em cima de um dromedário com uma coroa em sua cabeça, ele tem o poder de influenciar e ensinar todas as artes e ciências e pode revelar conhecimentos e mistérios da Terra. É no final que o ritual se concretiza e vemos Paimon se apoderando do corpo de Peter, o que mais chama a atenção é a estátua dedicada ao rei Paimon, que faz referência às imagens católicas, mas que possui alguns detalhes que escarnecem com o significado religioso.

"Hereditário" é um drama familiar atrelado ao terror, isso desencadeia diversas questões, como luto, incomunicabilidade, o sofrimento que cada um carrega, a maternidade, não é só algo que flerta com o oculto, mas que mescla os dramas e constrói a partir disso situações sinistras caminhando sempre em direção ao tão aterrorizante desconhecido.
Por mais que o filme pareça arrastado todas as cenas são primordiais para que a história ganhe corpo e camadas, todos os personagens são explorados e maravilhosamente bem compostos, Toni Collette exibe facetas aflitivas, é uma mulher complexa que desesperada luta com as perdas da mãe e da filha, do casamento falido, com a confusa relação com Peter, com as descobertas sobre a mãe e sua derrocada psicológica. Milly Shapiro e seus estalos com a língua gera inquietação, só sua presença ajuda a criar estranheza, Alex Wolff compõe um adolescente perdido e que está sempre assustado, sua evolução é ótima e tem momentos terrificantes, Gabriel Byrne é uma presença fantasma, não faz muito para ajudar a família e só faz crescer o caos por isso. Não tem como não falar também de Ann Dowd como Joan, que age calculadamente para atingir seu objetivo com o culto que a mãe de Anne liderava. A atmosfera ganha tons mais sombrios lá pelo final, o sobrenatural se alia ao caos psíquico e assim o desconhecido ganha formas. 

Criativo, instigante e encorpado, é um filme que pede revisões e cativa os espectadores que curtem mais um terror enigmático e sem sustos baratos, há todo um contexto por trás e nada é de graça, é necessário prestar atenção aos símbolos, diálogos e nos detalhes de cada personagem, a escolha da entidade que possui conhecimentos e auxilia e ensina as artes de todos os tipos, além de fornecer riquezas inimagináveis foi bem acertada, pois traz à tona o universo da Goetia, os mistérios são sedutores e sai da zona de conforto dos filmes de possessões e crucifixos invertidos. 

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