quarta-feira, 31 de outubro de 2012
Bullhead (Rundskop)
"Bullhead" (2011) é uma grata surpresa, uma trama emocionante, cuja interpretação do protagonista é simplesmente perfeita. A história se passa entre os flamengos e valões que dividem a Bélgica. O enredo parte da máfia dos hormônios de gado para chegar a um ensaio sobre as consequências de um ato brutal que não permitirá que o personagem consiga escapar de seu passado.
A família do jovem pecuarista Jacky Vanmarsenille, que usa hormônios ilegais em sua criação, recebe a proposta de um notório mafioso do comércio de gado alterado por esteroides. Mas o assassinato de um policial e a eclosão de um segredo do passado de Jacky inicia uma cadeia de eventos que irá afetar a vida de todos os envolvidos. Seu jeito reservado prejudica sua relação com a família e na maneira como se relaciona com os demais. Por causa de um episódio na sua infância, Jacky utiliza alguns medicamentos injetáveis para controlar esse problema, mas isso acaba o consumindo de maneira descontrolada, e seu desfecho termina tragicamente. O valor da amizade também é discutido quando chega Diederik Maes (Jeroen Perceval). Por conta de decisões no passado, os dois precisarão consertar de alguma forma o ocorrido na infância, mas será que algo pode ser feito depois de todo o estrago causado na vida de Jacky?
O destino de um homem pode ser cruel, o acaso pode ser definitivo na vida, assim Jacky dá voltas sem conseguir se afastar do eixo em que sua história foi traçada. Os elementos de que se cerca são os mesmos, como se o tempo tivesse ficado em suspenso: o algoz, a mulher de seus sonhos, o companheiro de infortúnio, o gado, os hormônios. O poder de aprisionamento dos acontecimentos é reforçado quando o protagonista sente que suas consequências prevaleceram sobre a sua própria natureza. Devido o acontecido Jacky não consegue se relacionar com as pessoas, apenas com animais. O close em seu rosto demonstra o quanto aquele homem necessita de carinho, e como ele próprio disse em um diálogo emocionante, que tudo o que ele mais desejava era ter alguém que pudesse proteger.
Com receio de se sentir afeminado por conta de seu problema, Jacky toma testosterona demasiadamente, e isso o fez crescer muito. E essa imagem assusta as pessoas, o que era para sinalizar masculinidade, demonstra violência. Ele não quer machucar ninguém, mas para ter noção, um soco dele pode até matar. Jacky nada mais é que um menino em um corpo de homem/animal. Traumatizado ele tenta recuperar a inocência perdida. Por um lado ele é ameaçador, de outro frágil, dependente das injeções e comprimidos.
O longa fala das manobras proibidas entre comerciantes de gado e fazendeiros juntamente com um veterinário. O uso de substâncias proibidas é uma questão abordada e serve como uma ponte para o drama vivido por Jacky. Nos aproximamos demais dele e nos sensibilizamos com sua história. Jacky é vivido pelo ator Matthias Schoenaerts, que compõe o personagem incrivelmente, e do qual se faz inesquecível. Por dentro Jacky queria ser amado, abraçado. Ele precisava muito disso. Estava estampado em seu rosto, transbordava pelos seus olhos. Só que ninguém era capaz de ver.
Filme de qualidade em que trama, desfecho, fotografia e personagem se completam perfeitamente.
"Há coisas que acontecem na vida que fazem com que ninguém sequer ouse falar sobre o assunto, mas de algum jeito, aquilo virá à tona, e você sempre estará ferrado."
segunda-feira, 29 de outubro de 2012
Killer Joe - Matador de Aluguel (Killer Joe)
"Killer Joe" (2012) não foi feito necessariamente para que gostemos, até porque os elementos, a história contada não são nada agradáveis. Comparações ao estilo Tarantino é inevitável, mas atenha-se ao diretor William Friedkin (O Exorcista - 1973). O homem é mestre do humor negro!
O longa é baseado em uma peça de teatro homônima e adaptada para o cinema por Tracy Letts (também autor da peça). O roteirista é conhecido por trabalhar com personagens perturbados, situações grotescas e um mundo sem moral nenhuma.
A história segue Chris, um jovem traficante de cocaína metido em apuros por causa da sua mãe (que inclusive nem chega a aparecer), e que chama Killer Joe para assassiná-la. Com o consentimento de seu pai, da sua madrasta e sua irmã mais nova, Dottie, os três concordam em contratar Joe Cooper, um policial texano que "trabalha depois do trabalho", para dar cabo dela, e assim receber uma grana preta do seguro de vida que seria dada a Dottie. Como eles não tem o dinheiro de imediato, Joe mantém Dottie como forma de garantia, ameaçando levá-la caso o dinheiro não apareça. Matthew McConaughey está irreconhecível como Joe Cooper. Elegante e calculista. É uma figura interessante. Aliás o elenco todo sustenta perfeitamente o filme. As pessoas não têm escrúpulos e estão dispostas a tudo para satisfazer o próprio ego. São traiçoeiras, mesquinhas, e sem um pingo de amor pelo outro. Características tão humanas...
Emile Hirsch é um jovem impulsivo e rebelde, ele dedica uma atenção especial a irmã Dottie. Mas quando se vê em apuros não se importa em colocá-la na reta, claro que depois chega a se arrepender, mas não adianta muita coisa. Ansel, o pai é um caipira que parece aceitar tudo. A madrasta é uma personagem egoísta e muito mais esperta do que pensamos. E Dottie, uma adolescente de 12 anos, consegue passar a imagem da inocência contrastando com a sensualidade.
O plano acaba dando errado. Chris precisa de dinheiro rápido e cada vez mais se mete em dívidas. Killer Joe não aceitará desculpas como pagamento. O bizarro toma forma, a cena final em que todos os personagens se juntam em um diálogo afiado e cuja cena mais chocante com um pedaço de frango aparece, rimos e ao mesmo tempo sentimos nojo daquelas pessoas. Nos impressionamos até onde o ser humano pode chegar.
O filme em vários momentos, especialmente nas cenas de Joe, com seu tom de frieza, a câmera evidenciando seu porte e suas expressões, dá a impressão de um estilo mais quadrinesco.
"Killer Joe" é escatológico, desconfortável, doentio e até odiável, mas todas essas definições são elogios. A insanidade impera e ela só tende a crescer.
É um Thriller original e se sobressai pelos personagens nojentos, mas o filme também pode ser encarado como uma comédia de erros, cujo humor negro não poupa ninguém.
sexta-feira, 26 de outubro de 2012
O Escafandro e a Borboleta (Le Scaphandre et le Papillon)
Baseado em uma incrível história real, "O Escafandro e a Borboleta" é sobre o editor da revista "Elle" da França, Jean-Dominic Bauby, que sofreu um derrame cerebral e ficou quase que completamente paralisado, o que o deixou somente com o movimento do olho esquerdo. Sua mente estava raciocinando normalmente apesar do estado de seu corpo. Numa história de superação sensacional ele ainda conseguiu escrever um livro. Bauby é interpretado por Mathieu Amalric. Ele passa quase todo o filme confinado à prostração, por conta da condição extrema que tem de enfrentar em decorrência de sua doença. Se antes o editor era um homem ativo e muito charmoso, com o acidente vascular cerebral ele se torna totalmente dependente da ajuda dos outros, situação com a qual luta com bravura, mas da qual não consegue sair.
A sensação de agonia diante dos procedimentos adotados pelos médicos é inevitável. O olho direito de Bauby sendo costurado de modo que sua visão se torne ainda mais restrita. Um dos aspectos mais emocionantes do filme é, sem dúvida, a decisão de Bauby de escrever a sua autobiografia. Para tanto, ele precisa se valer de um recurso um tanto insólito. Como não tem mais nenhum movimento em todo o corpo, a não ser o do olho esquerdo, ele conta com a ajuda de sua enfermeira, Henriette (Marie Josée Croze), que apresenta para ele um mecanismo possível para que se comunique. Como se mantém lúcido, ela lhe propõe que pisque uma vez para indicar qual letra deseja que seja escrita, e duas vezes para quando não for a letra que ele quer que escreva. É dessa maneira que ele vai ditando sua autobiografia, algo que requer a máxima paciência, atividade para a qual a enfermeira se mostra bastante solícita. Sua esposa Céline (Emmanuelle Seigner), é uma das que sentem a dificuldade de estar próxima do marido depois do acontecimento fatídico, e isso se demonstra no movimento de progressivo afastamento empreendido por ela a cada nova visita que faz.
O título não poderia ser mais poético. Por não ser mais capaz de movimentar seu corpo, ele se encontra preso em uma espécie de escafandro (metaforicamente), aquele equipamento pesado que serve para a respiração subaquática, mas sua alma e seu espírito encontram-se livres para voar como uma borboleta.
Por ser baseado em fatos reais nos leva a refletir mais ainda sobre a fragilidade humana, de como somos impotentes diante a vida. Por isso, o que lhe dá sentido hoje, o que valoriza em demasia, pode ser absolutamente nulo em uma condição igual a do protagonista. Somos limitados, mas também capazes de muito quando aprendemos o que cada coisa representa, as verdadeiras. Pode parecer melodramático, mas a história é contada com tanta sutileza que nos toca de maneira espontânea.
O longa mostra o passado de Bauby e todos os seus deslizes. A câmera funciona como se fosse nossos olhos, ficamos presos juntamente com o protagonista, a sensação de agonia é inevitável ao ver que ele não consegue se expressar. A inconformidade e o pessimismo em relação a seu estado físico que o assola, pois ele perdera todo o glamour, o tipo de pessoa que era de nada adianta, agora ele encara o mundo com apenas um olho e sem nenhum movimento. Mas com o passar do tempo e graças ao auxílio de sua família, de sua enfermeira e seu método de comunicação, ele consegue dar um sentido a tudo que está vivendo e começa a usar o método para expor sua autobiografia.
Bauby percebe que mesmo estando nessa condição seu espírito ainda continua vivo, que sua memória permanece intacta, e seu poder de imaginação ainda vive. Assim suas esperanças são renovadas. Ele sai de seu escafandro ao piscar de cada letra para que a frase se construa. Num trabalhoso ritual, a sua vida continua e bate as asas como uma borboleta.
quinta-feira, 25 de outubro de 2012
Moonrise Kingdom
Quem dera que na vida real as descobertas fossem mais coloridas, mais puras e inocentes, assim como no universo do diretor Wes Anderson. "Moonrise Kingdom" tem um ar fabulesco, daquelas histórias retiradas dos livros, onde tudo é encantador.
A história se passa na década de 60 numa ilha fictícia na costa da Nova Inglaterra, cujo único contato com o continente se dá através de um rádio na estação de polícia. Correspondência, apenas por hidroavião, que é também o único meio de acesso. Lá moram Sam e Suzy, um casal de crianças que, no auge de seus 12 anos, se apaixonam, fazem um pacto de amor e decidem fugir para viver na floresta. Sam promete utilizar sua experiência como escoteiro Khaki para cuidar de sua donzela na aventura pelo desconhecido. No entanto, com o sumiço da dupla, os pais da menina e o chefe escoteiro do acampamento de Sam, iniciam uma busca para procurá-los na floresta. O que nenhum deles sabe é que há uma ameaça de forte tempestade na costa da ilha, que pode dar um fim trágico à aventura.
O inocente e corajoso casal se conheceu em uma apresentação teatral da igreja de New Penzace. Durante um ano eles trocaram diversas cartas, confidenciando segredos e desabafando os constantes problemas de suas personalidades disfuncionais. Diante de tamanha falta de compreensão existencial, os dois resolvem fugir, mesmo que seja por alguns dias. Sam conduz Suzy por uma antiga trilha Chickcham, cujo destino é uma pequena praia escondida na ilha. Enquanto isso, os adultos arrancam seus cabelos de preocupação, tentando, além de tudo, resolver seus próprios dilemas pessoais, e para piorar as coisas, uma terrível tempestade se aproxima do local, sendo descrita pelo narrador sem nome (interpretado por Bob Balaban). O fato é que o Capitão Sharp (Bruce Willis), responsável pela busca dos jovens se mostra comovido pela história do garoto Sam, e decide ficar com ele no final.
Os excêntricos protagonistas são duas crianças vivendo fases difíceis, enquanto Sam lida com a solidão, Suzy tenta viver com uma família que não dá a mínima pra ela. Os livros são grandes aliados da garota, apaixonada por histórias com heroínas e poderes mágicos. O seu binóculo, objeto do qual não se separa, segundo ela, é o que lhe dá poder.
"Moonrise Kingdom" é cinema com personalidade, apesar do filme ter teor adolescente, ele é direcionado ao público adulto, nos mostrando as fases, como o primeiro amor e a liberdade de vivê-lo. São personagens que não conseguem se encaixar diante a sociedade, a fuga da realidade da qual não pertencem parece o único caminho. Sam rejeitado pelos pais e Suzy por descobrir que sua mãe tem um caso com o policial, e por sempre ser chamada de garota problemática. Eles não querem ser ignorados novamente, juntos se completam e descobrem uma paixão indescritível. Interessante observar que os adultos são mais infantis do que os protagonistas. A conquista da liberdade, as loucuras por amor, os questionamentos sobre a moral, o casamento. São crianças com gostos extremamente requintados e visões maduras de mundo. Destaque para os irmãos de Suzy, que com aparentemente 5 anos são viciados em ouvir cartilhas sonoras de composições de música erudita.
Nada mais cruel que a transição de ser criança para as descobertas da adolescência, o desarranjo em não saber se é ainda criança ou se já se tornou adulto. A aceitação de ser quem é, com todos os problemas e as diferenças é um obstáculo gigantesco, a vontade é de sumir para algum lugar com alguém que nos entenda e que compartilhe todas as descobertas desse novo mundo. "Moonrise Kingdom" representa este estado de espírito.
É um filme que nos faz lembrar da magia do primeiro amor, o verdadeiro, daquele do qual somos capazes de nos aventurar sem o menor medo do que os outros irão pensar. Esteticamente lindo, mostra que as crianças as vezes são muito mais maduras do que a maioria dos adultos por aí.
terça-feira, 23 de outubro de 2012
Preciosa - Uma História de Esperança (Precious)
Baseado no livro "Push", de Sapphire (Ramona Lofton), com roteiro de Geoffrey S. Fletcher fixa a ambientação da história em 1987, no Harlem, de ruas imundas e prédios grafitados, onde vive Claireece Precious Jones (Gabourey Sidibe). O filme independente de Lee Daniels conta o drama vivido por uma adolescente de 16 anos. Negra, pobre e gorda que sofre discriminação, violência doméstica e incesto. Preciosa é a protagonista dessa história, seu sofrimento faz com que crie um mundo de sonhos que é acionado toda vez que ela sofre abusos, possui um comportamento apático, distante e nervoso. Sua mãe é muito agressiva, violenta, preguiçosa, arrogante e aproveitadora, está sendo desprezada pelo marido, o que a faz descontar toda a raiva na filha. Desde os três anos de idade Preciosa sofre abuso sexual de seu pai, dessa relação incestuosa ela acabou tendo uma filha com Síndrome de Down, criada por sua avó, e mais tarde viria um menino, Abdul. Com o nascimento do segundo filho sua vida toma outro rumo.
A força dos amigos que aprenderam a amá-la, mostra-lhe outra realidade diferente da que foi criada, incentivando-a aos estudos e estimulando sua independência. Preciosa passa a acreditar num futuro melhor com dignidade e esperança. Sua mãe, Mary (Mo'Nique) está desempregada, é uma mulher intolerante que se aproveita de programas de assistência governamental à criança mongoloide, pela qual, na verdade, não se responsabiliza. Quando a diretora da escola descobre que Preciosa está grávida, impede-a de frequentar as aulas, aconselhando-a procurar uma organização que oferece cursos alternativos. É passando para esses cursos que ela vai conhecer algumas pessoas que se sensibilizam com a sua desventura ao ouvi-la clamar: "O amor não fez nada por mim! O amor me bate, me estupra, me chama de animal, me faz sentir uma inútil, enfim, me deixa doente". Mas é aí que ela descobre que nunca soube o que é o amor, e é dentro daquele ambiente, a escola alternativa, que conhece o verdadeiro significado do amor e percebe que não era obrigada a aguentar o que passava em sua casa. A professora amavelmente a estimula a aprender a ler e a escrever em um pequeno diário. A assistente social interpretada por Mariah Carey, leva Preciosa a refletir sobre os males que lhe causam, mesmo que involuntariamente, a sua situação em casa. Quando ela se interna num hospital para dar a luz a Abdul, conhece o enfermeiro John McFadden (Lenny Kravitz), que lhe demonstra também muita ternura.
A mãe de Preciosa é má, ignorante, detestável, nojenta. Desde sempre deixou que seu marido abusasse dela e assim adquiriu asco da pobre coitada que não tinha nenhum estímulo de vida. É uma tortura assistir a violência física e moral que Preciosa recebe. Ela sempre sonha em ter um namorado branco, ser famosa, ser magra e loira, ou seja, padrões adotados pela maldita mídia que insere isso na cabeça das meninas, se elas não tiverem essas características estará à margem da sociedade. Isso é claramente um abuso. Outra coisa que o filme mostra é a importância dos estudos, aprender, conhecer, pois só assim nos damos conta de que o mundo é grande e as pessoas são diferentes. No caminho iremos encontrar pessoas que tem problemas maiores ou menores que os nossos, mas procurar sair deles é a solução, e foi o que Preciosa fez, admitiu que a mãe era uma psicopata infeliz e foi viver com pessoas das quais tinham carinho por ela, conseguiu sua filha de volta e saiu pra vida com dois filhos pra criar, porém com muita vontade de crescer independente da opinião alheia.
"Preciosa" não apela para melodramas mostrando uma coitada com milhares de problemas, ao contrário, ele nos envolve numa história encantadora, a personagem não se lamenta, ela sonha quando algo ruim acontece, vemos uma linguagem universal que abrange qualquer público, e que certamente todos tirarão algo de bom pra si.
segunda-feira, 22 de outubro de 2012
Dúvida (Doubt)
Um filme excepcional sustentado por um elenco magnânimo, um roteiro inteligente e que nos conduz a uma dúvida constante.
Na década de 1960, a mudança de ares nas sociedades norte-americanas e mundial já davam sinais de crescimento. Os ventos da modernidade se tornavam cada vez mais poderosos, incomodando o conservadorismo da irmã Aloysius (Meryl Streep), numa das metáforas mais belas do filme. Nesse contexto, uma escola religiosa é palco do enfrentamento entre o progressista padre Flynn (Philip Seymour Hoffman) e da conservadora irmã diretora da escola, que suspeita que o sacerdote mantenha relações impróprias com o primeiro estudante negro do instituto, Donald Miller (Joseph Foster). No meio do turbilhão de acontecimentos, está a jovem e inocente irmã James (Amy Adams) que, sem perceber, alimenta as suspeitas de sua superiora.
É um filme intenso e o clima criado é sempre de imensa dúvida. Ele é construído de forma para gerar suspeitas, o sim e o não é mostrado desde o início até o fim. O padre Flynn é um ser humano antes de mais nada, tem sentimentos e um passado velado, sua maneira de tratar as crianças, principalmente Donald é de pura sensibilidade, faz com que ele se sinta mais confortável, já que ser negro em meio a tantos preconceitos da época era muito difícil, mas essa era apenas uma de suas dificuldades, ao desenrolar descobrimos as suas verdadeiras angústias, o menino é gay, e seu pai o maltrata, e ele encontra no padre um apoio. O garoto em certo momento diz que tem vontade de assumir a batina,quando mais velho. Seria uma maneira de se inserir na sociedade por causa de não conseguir lidar com seus sentimentos, e por não ter alguém que o entendesse?
A irmã interpretada pela maravilhosa Meryl Streep, que por sinal é uma chata e provavelmente infeliz, questiona o padre de forma grosseira e o perturba o tempo todo. Ela faz de tudo, fica obcecada por querer encontrar provas de que ele estaria se aproveitando do menino. Mas é claro que nada é esclarecido, ela inventa, mente e consegue tirar o padre Flynn do colégio, porém a sua consciência a atormenta, ela não encontrou a verdade, apenas dúvidas. Será que padre Flynn é uma pessoa cheia de compaixão e inocente das acusações, ou estaria ele no sacerdócio se fazendo de acolhedor para seduzir crianças? Esta dúvida permanecerá na cabeça da irmã.
O filme aborda o período em que o movimento negro ganhava força, por volta de 1968, com Martin Luther King se tornando ícone. É o início de uma certa modernidade que a irmã Aloysius repreende drasticamente, ela é pragmática e inflexível.
O interessante é o que filme é feito de altos e baixos, ele segue um ritmo próprio, de suspense, mistério, em que os diálogos é que nos fazem ter percepções diferenciadas. No final é mostrada a complexidade da personagem de Meryl Streep, é retratado o orgulho, as incertezas, e seu rosto sempre duro se desmancha em lágrimas de desespero por algo que nunca saberá. A jovem irmã James carrega uma dúvida mais velada, seu rosto exprime apenas ingenuidade.
"Dúvida" tem um roteiro primoroso e inteligente em todo o seu desenvolvimento, além de atuações impecáveis. A complexidade de sentimentos em que dúvidas e certezas se misturam nos causa momentos de grande tensão.
quinta-feira, 18 de outubro de 2012
O Homem Urso (Grizzly Man)
"O Homem Urso" (2005) é um documentário do diretor Werner Herzog, ele nos mostra a história de Timothy Treadwell, que conviveu com ursos pardos durante 13 verões em um parque no Alasca. No início dá a impressão que Timothy é daqueles ecologistas doidões que se exibem ao mostrar algum animal. Mas no decorrer nos emocionamos com a personalidade desse cara, e até em alguns momentos o julgamos louco de verdade. O que faz uma pessoa se abster de viver na sociedade e se meter a viver com ursos, e até preferir ser comido por eles? Quando somos introduzidos à vida de Timothy percebemos todas as nuances, bipolaridades e angústias. Timmy tentou ser ator, mas acabou se frustrando, então resolveu por conta própria e sem nenhum preparo acadêmico, estudar e cuidar dos ursos. Por treze anos ele se instalou na península do Alasca durante o verão, às vezes acompanhado, e nos últimos anos, com uma câmera na mão, com a qual registrou aquilo que chamava de pesquisa. Timmy achava que os ursos precisavam de ajuda, de um protetor, mas o que vemos durante o documentário é um marasmo só, ninguém os perturbava. Em dado momento é entrevistado um homem conceituado que nos revela o instinto do urso pardo, e o quanto Timothy estava equivocado em querer ajudá-los. O urso pardo é considerado um dos animais mais perigosos do mundo.
Herzog tem adoração em tentar desvendar a mente das pessoas, e ele sabia que tinha um ótimo material nas mãos (as fitas gravadas pelo próprio Timothy), assim ele nos coloca a frente desse personagem, que por vezes é mostrado como um louco, e outras corajoso. Mas é fascinante ver o amor que tinha pelos animais, era como se fosse um tipo de salvação, um mundo que descobriu e resolveu mergulhar sem medo. Aliás, medo era uma coisa que ele não tinha, convivia de maneira respeitosa com os ursos, sabia o que cada ruído significava, o modo de andar e de se comportar. E com certeza o próprio Timmy se sentia um urso.
Por mais que Treadwell se julgasse amigo dos ursos e achasse que estava ganhando a confiança dos animais, percebe-se que isso era fruto de sua imaginação e que, em vários momentos, ele esteve bem próximo do perigo. Ele acabou descobrindo isso mais tarde. Sendo devorado por um de seus "amigos" em outubro de 2003. Essa foi a primeira agressão do tipo registrada no Parque Nacional e Reserva Katmai. Herzog coloca de maneira sutil suas impressões no documentário, sem revelar sua verdadeira opinião. A cena final é extremamente impactante, Herzog narra o instinto do urso, que talvez tenha comido Timothy, é mostrado o urso mergulhando, e o que parece ser adorável, na verdade é feroz, o foco nos olhos do animal revela que não há compaixão, mas apenas instinto.
Algumas cenas são até engraçadas, o jeito com que Timothy trata as raposas, que essas sim são amigáveis e dóceis, uma beleza da natureza. Sua voz sempre suave ao falar com os ursos, nos apresentando-os pelos nomes: Sargento Brown, Mickey, Saturno, Mr. Chocolate, e ele não se cansava de dizer o quanto os amava. Ao mesmo tempo sentimos carinho, pena e raiva desse ser humano que quis ultrapassar as leis da natureza. Cada vez mais solitário, percebemos que ele queria estar ali, não havia outro lugar no mundo em que preferisse estar.
É um retrato intenso de alguém que decidiu viver com os animais ao invés de continuar vivendo seus dias na sociedade.
Importante dizer que Timothy foi encontrado morto junto à namorada Amie Huguenard, ambos devorados pelos animais. Amie é uma incógnita nas imagens de vídeo que o próprio Treadwell fez, raramente ela aparece, nem conseguimos ver seu rosto. É dito que Amie tinha medo dos ursos, mas mesmo assim acompanhou Timmy várias vezes. Da última, ela estava, e ao ver seu namorado sendo comido, não correu seguindo o pedido dele, ela ficou até o fim. No meio do documentário Herzog ouve a fita que foi encontrada no local, os gritos, a dor, tudo está registrado, e Herzog visualmente impactado disse para a ex-namorada de Timothy que destruísse aquela fita. Um momento realmente impressionante!
Até que ponto o isolamento é saudável, e principalmente, quais os limites entre o Homem e a Natureza? Essas questões permeiam todo o filme. Cada um deverá interpretar Timothy de uma maneira. Difícil definir a sua personalidade, ela era recheada de incoerências e paradoxos.
terça-feira, 16 de outubro de 2012
Sr. Ninguém (Mr. Nobody)
Falar sobre o filme "Sr. Ninguém", em razão de sua não linearidade constante é uma tarefa difícil, pois não é contar uma história e interpretar o que se viu, mas sim as várias possibilidades da história da vida de alguém conforme suas várias alternativas de escolha no decorrer desta vida. O longa "Sr. Ninguém" é calcado em diversas teorias, principalmente na conhecida pelo público que assistiu "Efeito Borboleta", título do filme e da teoria a que se refere, a qual faz parte da teoria do caos, assunto complexo que explica os inúmeros fatos aleatórios da natureza e do Homem como fonte de determinada ação comum aos nossos olhos e que tudo está conectado gerando a famosa frase que "o bater de asas de uma borboleta pode causar um tufão do outro lado do mundo".
Nemo Nobody (Jared Leto) é o último ser humano mortal e prestes a morrer por velhice em uma ala de hospital monitorada pela mídia que lança ao público a questão se o mortal deve ou não morrer naturalmente pelo envelhecimento, ao mesmo tempo é analisado por um médico que deseja descobrir quem é o sujeito idoso a sua frente com lembranças totalmente desconexas, que vamos notando serem aparentemente de três vidas possíveis, de acordo com certas escolhas da infância, do decorrer da adolescência e que aí já está praticamente definida na idade adulta.
Em uma destas vidas Nemo escolheu ficar com a mãe após a separação dos pais e conhece Anna (Juno Temple), filha do homem que a mãe se envolveu, nasce nos dois uma paixão arrebatadora, porém as coisas não dão certo, os adultos se separam e temos de esperar a idade adulta dos dois para saber se a história teve ou não um final feliz, como o filme não é linear é necessário aguardar a mente do Sr. Ninguém voltar a essa possibilidade de sua vida. Na outra alternativa, se Nemo escolhesse viver com o pai, este estaria muito doente com a separação e outros fatos ficando incapacitado e tendo de ser cuidado pelo filho, um Nemo mais rebelde, possivelmente pelo sofrimento de não poder viver a adolescência por completo para cuidar do pai, conhece a problemática Elise (Clare Stone na adolescência e Sarah Polley quando adulta) a qual ama outro garoto, mas com a insistência de Nemo fica com ele e quando crescem, já casados, continua sendo uma pessoa perturbada, depressiva e cheia de ataques esquizofrênicos. A terceira possibilidade da vida de Nemo é mais monótona e com explicações menos detalhadas, ele simplesmente viu em um baile que Elise não o queria e escolheu Jean (Audrey Giacomini e a atriz francesa nascida no Vietnam Linh Dan Pham quando adulta), se casam e têm uma vida em que Nemo está com a mente confusa, como se aquela vida se chocasse com as outras quando ele a escolheu, sendo a mais sem sentido para ele.
A Anna adulta, interpretada por Diane Kruger volta a dar a química do casal mirim Toby Regbo como Nemo e Juno Temple e mais uma vez demonstra que aquela era a alternativa mais feliz da vida do Sr. Ninguém.
O final do longa vai para a ficção científica mostrando as teorias inseridas em um campo mais puxado para o lado da fantasia, que todos os adeptos do gênero sonham: como Nemo já sabia tudo o que podia ocorrer, voltou lá atrás, no início, na separação dos pais (como uma viagem no tempo, por isso pode se interpretar como um lado mais fantasioso das teorias presentes), pôde ter escolhido ficar com a mãe, para conhecer o amor verdadeiro, Anna, ou ter ficado no paradoxo do Gato de Schröndinger, que ele ficaria girando eternamente nestas possibilidades de sua vida, nem vivo nem morto como a teoria do gato, dependendo de eventos aleatórios precedentes, afastados de sua capacidade de cogitação.
Um filme interessante, complexo, para se ver com muita atenção, sem desviar "mesmo" a atenção, e assim se compreender e aprender a mensagem passada: as escolhas que a cada momento da vida fazemos são o motivo de resultados lá na frente, no futuro que desejamos ter, mas às vezes ou não lutamos ou os fatos ocorridos ao nosso redor não nos deixaram ter esse futuro tão sonhado, e quando isso ocorrer? Escolha novamente, quem sabe não volte no caminho que o leve a chegar lá!
segunda-feira, 15 de outubro de 2012
Genesis - Nacho Cerdá - Trilogia da Morte
Depois de ter assistido "Aftermath" surgiu a curiosidade sobre o diretor Nacho Cerdá, previamente senti apenas repulsa pelo curta dito acima, mas vendo a trilogia composta por "Awakening" (Despertar), "Aftermath" (Morrer) e "Genesis" (Renascer) pode-se concluir que é uma obra e tanto. Nacho utiliza da violência das imagens, mas não é à toa, a mensagem é clara e objetiva. A sua maneira de narrar as histórias são cruas, sem artifícios, não é hipócrita, ele fala sobre a degradação humana, a solidão, a morte, e é exatamente por isso que desagrada a maioria. Mesmo longe dos holofotes, ele tem admiradores de sua arte e muitos prêmios em seu currículo. Terror poético é o mais próximo de uma definição para seus trabalhos. Ele nos desperta para a realidade, mostrando sentimentos adormecidos como a violência e o como lidamos com ela. Os três curtas são marcados pelo suspense e a solidão que aponta a alma humana, e é por isso que o silêncio é tão bem trabalhado, a não ser pelas maravilhosas trilhas que compõem o clima melancólico e por vezes surreal.
"Awakening" (1990) é o primeiro curta e é simplista, nada especial aparentemente, ele mostra um estudante que acaba dormindo durante a aula. E quando acorda, o tempo e todos ao seu redor estão parados. É incrível a capacidade de provocação, não se espera que aconteça nada, porém o desfecho é super eficiente e manda a mensagem. Assista aqui!
"Aftermath" (1994), o segundo e, talvez, o mais polêmico se refere a morte e não poupa o espectador com imagens fortes. É um curta super bem feito, o visual impressiona e a interpretação é angustiante. Ele conta o fascínio de um legista ao manejar os corpos de vítimas que foram assassinadas. Retratando o quão pífia é a mente do ser humano, e também como somos frágeis em relação a vida. Ao final somos apenas um monte de carne em decomposição que fica à mercê de sei lá o quê. É claro que é perturbador, pois tudo que nos tira da nossa zona de conforto e faz pensar acaba provocando de certa forma. Assista: Parte 1, Parte 2.
"Genesis" (1998), o terceiro curta e o motivo desta postagem é uma obra impecável, sublime em termos técnicos e o que ele nos propõe a pensar.
A história conta sobre um escultor que perde sua mulher de forma trágica, desde então não consegue suportar a solidão que o culmina. Assim decide esculpir sua mulher nos mínimos detalhes, em toda a sua perfeição. Ele trabalha de forma minuciosa, esculpindo milimetricamente, e isso de alguma forma o preenche, ele coloca todo o seu amor e toda a sua alma em sua arte. Tornando-se divino. Apenas restando os retoques, ele percebe algo estranho, chegando perto descobre fios de sangue a sair da estátua. E com o tempo essas fissuras aumentam, tornando-se quase viva. Em contrapartida, o escultor faz o processo inverso, ele vai se tornando rígido. Cada fissura que se abre, ele vai sendo tomado por um aspecto enrijecido o fazendo estátua. E sua mulher esculpida com a perfeição se faz humana, renascendo.
A fotografia é imensamente bela e poética, assim como a trilha sonora e o clima, tudo é muito assustador, mas de uma beleza sem limites. Simplesmente paralisa-se diante do que está vendo. Não há uma linha de diálogo, tudo é exposto em forma de gestos e olhares profundos, expressões corporais, delicadeza, intensidade. Os closes nos presenteia com imagens extremamente sensoriais. Os simbolismos se dão nos pequenos detalhes. É preciso assistir mais de uma vez para poder captar o valor da obra. É uma metáfora do artista que se consome para dar vida a sua criação. O ator Pep Tosar é de uma sensibilidade impressionante, seus olhos dizem muito. Inclusive ele também atuou em "Aftermath" (o legista doentio). "Genesis" é um curta premiadíssimo. Vale a pena compartilhar conteúdos deste nível. O curta mescla grandeza poética com certo medo e terror interno. Fica-se atônito ao assisti-lo. Veja aqui!
Nacho Cerdá além desses curtas também dirigiu o filme "Os Abandonados" de 2006, que conta a história de uma mulher adotada por uma família norte-americana e que decide viajar para a Rússia com o objetivo de encontrar informações sobre seus pais biológicos. Chegando em uma área isolada do país, ela recebe a notícia de que sua família desapareceu há 40 anos, deixando apenas uma casa velha e abandonada como herança. No lar, encontra a estranha figura de seu irmão gêmeo e percebe os horrores que aquele lugar guarda.
sexta-feira, 12 de outubro de 2012
Aftermath
O curta espanhol de 30 min dirigido por Nacho Cerdá superou todos os adjetivos nojentos e doentios que se possa imaginar. Deixando bem claro, o vídeo é para quem tem estômago forte e curte horror. O propósito é chocar. "Aftermath" é uma expressão que significa algo como "o que há depois de..." O estado do corpo depois da morte, sua desolação e o nada.
Necrofilia explícita num filme sem nenhum diálogo. O diretor Nacho Cerdá produziu uma trilogia que abrange o nascimento (The Awakening, 1990), a morte (Aftermath, 1994), e o renascimento (Genesis, 1998). O filme também foi vencedor do prêmio de Melhor Curta-Metragem no Fant-Asia Film Festival. Este controverso curta mostra atividades secretas de um funcionário de necrotério. Ele retira os órgãos das pessoas mortas, provavelmente para transplantes, pois não ha um estudo ou uma perícia sobre o cadáver, que são visivelmente vítimas de acidentes ou assassinatos. O espetáculo é repulsivo e mórbido. O homem se masturba para o corpo aberto sobre a mesa e, em seguida sobe em cima do cadáver e pratica sexo. O olhar do personagem é frio e medonho, o close em seu rosto, nas suas ações detalhadas, todo o ritual da necrópsia é insano. A ideia é mostrar que após a morte somos apenas pedaços de carne em decomposição. O silêncio absoluto perturba e nos leva a reflexão. O fascínio que o legista revela com o seu olhar de psicopata é de dar arrepios.
A maquiagem é hiper realista, a fotografia escura e a trilha sonora só aumenta o clima sinistro. Imaginar o que acontece dentro de um necrotério não é muito agradável, por isso o curta conseguiu ganhar adjetivos, como perturbador, doentio, chocante, repulsivo, nojento, mórbido, entre tantos outros, mas dentro de seu propósito conseguiu realizar muito bem e com ótima qualidade.
Quero enfatizar mais uma vez o olhar do legista, que se intensifica por ele usar a máscara cirúrgica o tempo todo. A insanidade humana não tem limites realmente, é difícil e pesado observá-la. E pensar que a vida é tão frágil e que bambeia entre a poesia e a morbidez. Cerdá promove reflexão em alguns e asco em outros por promover uma sinceridade pouco vista.
Se deseja assistir o curta fique ciente que a história não é leve e contém cenas fortes, mas isso é de cada um, então fique à vontade para assistir algo que mesmo sendo doentio pode gerar reflexões sobre a nossa existência.
quinta-feira, 11 de outubro de 2012
The Sunset Limited
Um professor ateu, White (Tommy Lee Jones), decide suicidar-se lançando-se à linha do metrô Sunset Limited, mas é impedido por um desconhecido, Black (Samuel L. Jackson), um ex-presidiário cristão, que o leva para a sua casa e tenta fazê-lo desistir de pôr um ponto final à vida. É aí que começa um diálogo entre os dois homens com posturas e crenças opostas, um esgrimir de argumentos perante um conflito ideológico. Será que desta discussão sobre religião, vida e morte nascerá alguma luz?
O roteiro é de Cormac McCarthy e dirigido por Tommy Lee Jones. O filme conserva o escrito original, concebido para o teatro. O mesmo acontece com o espaço cênico. A história toda se passa na sala do apartamento de Black. A discussão gira em torno de crenças, Black tenta desencorajar White de se matar, e energicamente pergunta a ele se já leu a bíblia, White diz que lê compulsivamente, mas não a bíblia, que aliás é um livro como qualquer outro na visão dele.
A trama consiste nos dois homens simplesmente conversando, contando um pouco de suas histórias de vida, no que acreditam, e falando sobre fé e religião. O personagem de Samuel L. Jackson não permite que o sujeito saia de sua casa, com medo de que o problemático homem tente de novo o suicídio. Na verdade isso é tudo que o atormentado personagem de Tommy Lee Jones realmente quer, e o reformado Black terá um tarefa árdua pela frente para conscientizá-lo, ao mesmo tempo em que autoafirma sua crença. Um jogo de argumentos, onde a solução é aberta e nos possibilita a reflexão.
White ouve Black, discute, mas chega um momento em que ele explode e tenta fazer seu colega entender o porquê ele deseja tanto morrer. Qual é o sentido ou propósito da vida? Para White nada mais significava, as respostas eram apenas uma: o fim. Tudo caminha para o fim. Em sua mente o sofrimento é a essência humana, a felicidade é algo ilusório que nos confunde e nos tira a percepção da realidade. Quanto mais conhecemos do mundo, menos queremos viver nele. "O mundo é basicamente um campo de trabalhos forçados em que todos os dias os trabalhadores se submetem a uma espécie de loteria para serem executados", essa é uma das frases que White diz.
São questões sobre a condição humana. Para que serve a religião? Acreditar em Deus ou em algo dito maior que possui forças dimensionais? É uma espécie de tábua de salvação. Todo ser humano precisa acreditar em alguma coisa, caso contrário, ele se torna efêmero. Black em um diálogo diz: "Me julgo um questionador, não afirmo nada, ser ateu é procurar respostas que afirmem a sua descrença, ser questionador é procurar amplamente. Ser crente ou descrente são opostos que se complementam, ambos creem em algo, em seu íntimo o ateu está tendo fé nas suas afirmações."
A vida é uma repetição, de vez em quando acontece algo com que possamos nos divertir e esquecer um pouco a rotina, mas a vida ao todo é um fluxo de nada, e para White o seu destino era o Sunset Limited, ele queria essa solução. Black de fato ficou impressionado com as palavras de White, foram palavras duras de ouvir, ainda mais para alguém que deseja salvar as pessoas.
É um filme que traz mais perguntas do que respostas, declaradamente existencialista, são duas visões, duas maneiras de ver a vida em um roteiro inteligente e atuações intensas.
terça-feira, 9 de outubro de 2012
Mil Anos de Orações (A Thousand Years of Good Prayers)
O Sr. Shi (Henry O) desembarca no aeroporto dos EUA ao encontro de sua filha Yilan (Faye Yu), que vive a muito tempo no país. Logo vemos que a relação dos dois é distante, mal se olham e nem se cumprimentam, de início pensamos que o problema está na filha, mas no decorrer descobrimos o que os afasta. Vivendo em um subúrbio dos EUA, a filha recebe o pai em sua casa. Ele comunista assumido e bastante conservador, carrega consigo o lenço vermelho: a lembrança do exército comunista. Com dificuldade de entender porque a filha sai de manhã sem tempo para sentar-se e tomar um café, porque fica acordada até tarde da noite, ou porque come tão pouco, o senhor se depara com uma vida que nunca teve, que nunca viu. Aos poucos, decora a casa com objetos que remetem a China comunista, como se tentasse trazer a filha de volta para seu mundo. Sempre anotando as palavras com que se depara, o estranhamento da cultura, de pessoas que sempre estão apressadas, que não gostam de dar explicações. Sente que ali sua filha não é feliz e até pergunta para ela em dado momento, ele julga que por ser quieta não seja feliz.
A primeira parte do filme cativa, as tentativas frustradas de agradar Yilan, os passeios de Shi na praça, e seu relacionamento com a iraniana que sempre encontra, talvez a parte mais interessante, o choque cultural, o inglês doído dos dois, às vezes ele fala em chinês e ela responde em farsi, ou apenas acenam a cabeça, sem dúvida são as melhores cenas. Mas o foco do filme é na relação de pai e filha, na dificuldade de aproximação depois de tantos anos, de tantos percalços. Shi se sente culpado por não ter sido presente, Yilan sofre porque deixou o marido por causa de um russo. E ela ainda guarda mágoas achando que seu pai traía a sua mãe, em uma discussão ela joga tudo na cara dele. Isso é o que ela pensa, mas é um grande engano. No desfecho, o Sr. Shi sem nem perceber que a filha estava ouvindo declara que quando era cientista estava muito empolgado com o lançamento do primeiro foguete chinês, e a mulher que julgavam ser sua amante trabalhava junto com ele e conversavam muito, os líderes acharam que eles estavam apaixonados e queriam que casassem, mas o Sr. Shi revelou que nunca faria isso, ele amava sua mulher. Aí ele acaba sendo rebaixado e se transformou em um funcionário qualquer. Um momento que poderia mudar a relação deles, mas Yilan acabou saindo de casa no meio do desabafo solitário do pai.
O filme retrata uma certa sabedoria, mesmo com o erro do pai ao não dialogar com a filha, e ela com ele, nos mostra que há sempre tempo de perdoar os outros e também de perdoar a si mesmo, uma relação não é construída de uma hora para outra, ainda mais quando está cheia de enganos e impressões erradas, o importante é saber ouvir. O título do filme tem origem de um provérbio chinês: "São necessários três mil anos de orações para repousar a cabeça no travesseiro com alguém que amamos". O diretor Wayne Wang nos dá um filme silencioso, uma viagem ao nosso interior, mas também com vários aspectos políticos, isso se traduz na postura do Sr. Shi, na negação de certas atitudes da filha e em suas lembranças.
"Mil Anos de Orações" é um filme terno, introspectivo, de ritmo lento, mas muito cuidadoso em mostrar ângulos diferentes das pessoas, lados dos quais escondem por algum motivo, mas que em algum momento é preciso revelar, talvez para se redimir, ou somente para continuar a viver com mais leveza. É necessário ter paciência para que as coisas se ajustem, quem sabe seja necessário realmente mil anos de orações, talvez essa seja a única maneira de ver as coisas como elas são e de encontrar o ponto exato.
segunda-feira, 8 de outubro de 2012
Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (Khane-ye Doust Kodjast?)
A peculiaridade do cinema iraniano é algo muito fascinante, são coisas simples que se tornam verdadeiras poesias. Objetos comuns tomam grandes proporções, assim nos revelando uma história que nos faça refletir. Mas nem sempre é colocado de forma explícita, metáforas são inseridas no contexto, porém isso não significa que o filme se torne cansativo ou difícil. Abbas Kiarostami é um diretor renomado, a narrativa ou a falta dela em seus filmes sempre são lineares e respeitam o desenvolvimento de seus personagens, não há grandes reviravoltas ou grandes acontecimentos, é apenas uma história que está sendo contada, e as coisas simplesmente acontecem.
"Onde Fica a Casa do Meu Amigo?" é um exemplo da sutileza do trabalho de Kiarostami. O garoto Ahmad é estudante na vila pobre de Koker (ao norte de Teerã). Sem querer, ele pega o caderno do colega de sala e o leva para casa. Ao se preparar para fazer o dever, percebe o erro e lembra-se de que tal colega já estava em débito com o professor e não poderia mais deixar de entregar a tarefa. Culpado por poder prejudicar o amigo, Ahmad sai sozinho à procura da casa do dono do caderno, sem fazer ideia de onde ele mora. Se num filme convencional ele passaria por uma série de perigos, surpresas e aprenderia uma bela lição de moral, aqui Ahmad não faz nada, a não ser bater de porta em porta procurando a morada do colega. No caminho encontra outras crianças, faz amizade com um velho, sobe e desce os tortuosos caminhos da região. O desespero no rosto de Ahmad é visível do começo ao fim do longa, e isso se dá por causa da rigidez do professor que repete incansavelmente que a tarefa tem que ser feita no caderno, e o quanto é necessário cuidar para que não percam, caso contrário, o aluno é punido e até expulso da escola. É um sistema de ensino precário, a relação professor/aluno não existe, é puro autoritarismo.
O filme deixa claro o quanto os adultos não ouvem as crianças, como quando Ahmad percebe que pegou o caderno por engano e preocupado fala com a mãe, mas esta só se dá ao trabalho de gritar com ele e mandar que faça a lição, que cuide do bebê, e isso e aquilo. Ahmad sai correndo decidido a encontrar a casa de seu amigo, ele só sabe que o colega mora na vila vizinha, aos poucos vai encontrando pessoas pelo caminho que não ajudam em nada, o primeiro é um velhinho que carrega palha, mas cujo rosto não vemos, em seguida, uma toalha cai da varanda de uma das casas, uma voz de mulher adulta pede para que o menino a jogue de volta, sem nem ouvir o que Ahmad tem para dizer.
Ele também encontra um outro colega da turma, que tampouco sabe onde Nematzadeh mora, mas que acabamos por saber o porquê que ele reclama na sala de aula das dores nas costas: ele ajuda o pai no trabalho, carregando pesadas latas de leite. Por fim, Ahmad procura ajuda ao velho vendedor de portas que não lhe ouve, mas que ao saber se tratar de um tal de Nematzadeh, decide guiá-lo. Lá infelizmente descobre que não era o seu amigo de sala. A busca com o velho marceneiro em seus passos lentos e seguro de si representa a experiência, e o garoto com passos rápidos, perdido, querendo vencer o tempo porque está anoitecendo, representa a impetuosidade juvenil. Esse retrato demonstra o quanto demora atingir a serenidade e uma certa sabedoria diante a vida e aos fatos. Derrotado por não ter encontrado a casa do amigo, ele sofre, recusa a comida que a mãe lhe serve, está pensativo, triste e isolado em seu universo de frustração. Mas ao invés de ir dormir, vai fazer a sua tarefa. Abre os dois cadernos e atravessa a noite fazendo os exercícios em duplicidade. Na manhã seguinte na sala de aula, o colega Nematzadeh já se sente perdido por não ter feito os exercícios quando o professor começa a revista nos cadernos dos seus alunos. O professor está para revistar o caderno de Nematzadeh, mas aí Ahmad chega atrasado. Ele se senta junto ao colega e, discretamente, lhe entrega o caderno. É quando o professor se aproxima e faz a revista. Ao abrir o caderno de Nematzadeh vê que todos os exercícios haviam sido feitos e que, na última página, Ahmad havia colado uma flor, que ele colhera no caminho para Koker, símbolo de sua viagem para encontrar o amigo no dia anterior.
O aprendizado nem sempre vem da família ou de uma educação formal, que geralmente aterroriza mais do que educa. "Onde Fica a Casa do Meu Amigo?" serve para refletirmos que a melhor forma de aprender de verdade é saindo do seu mundo, desbravar novos lugares, mesmo que seja o bairro ao lado, como o caso de Ahmad. Alguns adultos "ensinam" de maneira errônea a criança, às vezes rigorosamente ou mimando demais. O universo da criança que está em desenvolvimento é de curiosidade e de muitas perguntas, e se não forem respondidas adequadamente, isso desencadeará algo que no futuro poderá prejudicar a personalidade. O mais importante é sair das convenções sociais que são impostas logo que nascemos, a experiência individual deve ser encarada como aprendizagem de vida, pois esta é a única que nos faz sentir vivos e livres.
O filme deixa claro o quanto os adultos não ouvem as crianças, como quando Ahmad percebe que pegou o caderno por engano e preocupado fala com a mãe, mas esta só se dá ao trabalho de gritar com ele e mandar que faça a lição, que cuide do bebê, e isso e aquilo. Ahmad sai correndo decidido a encontrar a casa de seu amigo, ele só sabe que o colega mora na vila vizinha, aos poucos vai encontrando pessoas pelo caminho que não ajudam em nada, o primeiro é um velhinho que carrega palha, mas cujo rosto não vemos, em seguida, uma toalha cai da varanda de uma das casas, uma voz de mulher adulta pede para que o menino a jogue de volta, sem nem ouvir o que Ahmad tem para dizer.
Ele também encontra um outro colega da turma, que tampouco sabe onde Nematzadeh mora, mas que acabamos por saber o porquê que ele reclama na sala de aula das dores nas costas: ele ajuda o pai no trabalho, carregando pesadas latas de leite. Por fim, Ahmad procura ajuda ao velho vendedor de portas que não lhe ouve, mas que ao saber se tratar de um tal de Nematzadeh, decide guiá-lo. Lá infelizmente descobre que não era o seu amigo de sala. A busca com o velho marceneiro em seus passos lentos e seguro de si representa a experiência, e o garoto com passos rápidos, perdido, querendo vencer o tempo porque está anoitecendo, representa a impetuosidade juvenil. Esse retrato demonstra o quanto demora atingir a serenidade e uma certa sabedoria diante a vida e aos fatos. Derrotado por não ter encontrado a casa do amigo, ele sofre, recusa a comida que a mãe lhe serve, está pensativo, triste e isolado em seu universo de frustração. Mas ao invés de ir dormir, vai fazer a sua tarefa. Abre os dois cadernos e atravessa a noite fazendo os exercícios em duplicidade. Na manhã seguinte na sala de aula, o colega Nematzadeh já se sente perdido por não ter feito os exercícios quando o professor começa a revista nos cadernos dos seus alunos. O professor está para revistar o caderno de Nematzadeh, mas aí Ahmad chega atrasado. Ele se senta junto ao colega e, discretamente, lhe entrega o caderno. É quando o professor se aproxima e faz a revista. Ao abrir o caderno de Nematzadeh vê que todos os exercícios haviam sido feitos e que, na última página, Ahmad havia colado uma flor, que ele colhera no caminho para Koker, símbolo de sua viagem para encontrar o amigo no dia anterior.
O aprendizado nem sempre vem da família ou de uma educação formal, que geralmente aterroriza mais do que educa. "Onde Fica a Casa do Meu Amigo?" serve para refletirmos que a melhor forma de aprender de verdade é saindo do seu mundo, desbravar novos lugares, mesmo que seja o bairro ao lado, como o caso de Ahmad. Alguns adultos "ensinam" de maneira errônea a criança, às vezes rigorosamente ou mimando demais. O universo da criança que está em desenvolvimento é de curiosidade e de muitas perguntas, e se não forem respondidas adequadamente, isso desencadeará algo que no futuro poderá prejudicar a personalidade. O mais importante é sair das convenções sociais que são impostas logo que nascemos, a experiência individual deve ser encarada como aprendizagem de vida, pois esta é a única que nos faz sentir vivos e livres.
sexta-feira, 5 de outubro de 2012
Lugares Comuns (Lugares Comunes)
"Lucidez é um dom e um castigo; lúcido vem de lúcifer, o arcanjo rebelde, o demônio. Mas também a estrela d'alva, a mais brilhante, a última a se apagar. Lúcifer quer dizer aquele que faz a luz, a luz que permite a visão interior, o bem e o mal, juntos o prazer e a dor. Lucidez é dor, e o único prazer que se pode conhecer, o único que vagamente se parecerá com a alegria, será o prazer da consciência da própria lucidez."
Fernando (Federico Luppi) é um professor de letras aposentado à força. Sem condições financeiras de viver sem trabalhar, ele tenta mudar de ramo e reinventar-se, deixando o ensino de literatura pela administração de uma fazenda, apoiado pela esposa, por quem nutre comovente devoção. Ao longo de sua mudança de vida, ele reafirma não sem ressentimento suas posturas inabaláveis sobre a necessidade da utopia como ferramenta, a qual se apega para sobreviver ao pragmatismo feroz da contemporaneidade, marcado pelos valores materiais. Isso o coloca em choque com o filho, cuja carreira literária foi encerrada em nome de uma profissão rentável.
A realidade argentina carrega todo o peso da crise, da mesmice, da frustração, da falta de sentido. A ausência de pensamento do reitor ou a remuneração insuficiente para viajar até a Espanha confirma a névoa do neoliberalismo e do desmonte institucional que paira sob toda a América Latina. Fernando não é muito querido no meio acadêmico por conta de seu temperamento anárquico. Perguntado em que mundo o professor vive num jantar entre amigos, ele responde que antes de Fidel, Lenin ou Marx, ele ainda estava em 1789. A antessala da vitória burguesa é seu refúgio, o pós-revolução francesa, é o ciclo vicioso, gerador dos lugares comuns dos quais ele é vítima. Sua antessala é, portanto, o sítio. Espaço da possibilidade, da gênese, da tentativa da elaboração de respostas ao lugar comum virtuoso da filosofia e da poesia.
"Lugares Comuns" além de abordar a crise econômica do país, e a filosofia do ensino, inteligentemente fala da velhice, as maneiras de se lidar com ela, e o quanto é importante ter alguém com que possamos contar e amar, sim, é sobre o amor também e como ele sobrevive em meio a um mundo onde ninguém parece amar realmente. Fernando que se vê obrigado a se aposentar sente uma sensação de inutilidade, começa a repensar e acaba percebendo que precisa descansar, com a ideia de fabricar perfume de lavanda, vende o apartamento em que vivem e vão morar em uma chácara, onde o silêncio e a natureza respeita o desejo e o pensamento dos dois. A relação de Fernando com Lili é encantadora, nos deixa com uma sensação boa, pois eles são um casal unido que compartilha, se ajuda, se repeita e se aceita.
O roteiro é sensível e de imensa inteligência, nos mostra dor, morte, superação, mas principalmente, amor que cuida, liberta e conforta.
É um retrato intimista que tem como trilha sonora o cancioneiro popular, o que faz deixar o tão conhecido tango argentino de lado. Fernando e Liliana brilham em meio a tudo isso, mesmo que a situação seja difícil e a paciência seja a única alternativa, os dois resplandecem.
terça-feira, 2 de outubro de 2012
Caramelo (Sukkar Banat)
"Caramelo" é um filme delicioso de se assistir, assim como o título já denuncia. Caramelo vem da mistura de açúcar, limão e água, velha receita oriental usada para depilação. O foco narrativo gira em torno de um grupo de cinco amigas que trabalham em um salão de beleza, onde cada uma vive dilemas em suas vidas. Nenhuma se abre muito umas com as outras, mas isso não é necessário já que uma boa amiga sempre sabe o que a outra está sentindo e pensando apenas pelo olhar. O apoio que umas dão as outras nasce daí, da sensibilidade que cada uma tem para perceber o que a outra está sentindo.
Beirute é o cenário dessa história, a bela Layale (Nadine Labaki) tem sua vida travada por um romance proibido com um homem casado. Repleta de inseguranças e medos, sempre na espera pela buzina de seu amado, uma espera ilusória, achando que um dia ele se separe da mulher. Nisrine (Yasmine Elmasri) tem receio de contar as amigas de que não é mais virgem, e ainda mais ao seu futuro marido; Rima (Joanna Moukarzel) vive situações difíceis com sua sexualidade, é claramente lésbica. Jamale (Gisèle Aouad) que finge ainda menstruar para parecer jovem aos olhos de suas amigas. E a costureira Rose (Sihame Haddad), que tem medo de viver, e ao encontrar um homem que se interessa por ela, falta-lhe coragem para vivenciar esse amor, o peso se dá porque Rose cuida da irmã Lili (Aziza Semaan), que tem problemas e necessita de seus cuidados. Lili passa seus dias catando papéis pelas ruas julgando serem cartas de um namorado que há muito desapareceu.
O doce do caramelo na verdade mascara a dor, já que ele é usado para fazer depilação nas mulheres. Portanto, a todo momento o filme trata essa dualidade de uma forma muito sensível e com cenas inesquecíveis. Nadine Labaki, protagonista e também diretora nos mostra um trabalho simples e emocionante, cheio de sutilezas e marcado por uma sensualidade latente. Interessante observar o modo como a diretora trata o encontro de Rima com uma cliente, no qual a lavagem dos cabelos mostra intimidade e envolvimento afetivo. O corte de cabelo ao final, mostra a liberdade da mulher, cuja vida é tão restritiva em uma sociedade tradicional. Beirute é um lugar em que a diversidade religiosa predomina, apesar de seus vizinhos serem claramente muçulmanos, lá eles vivem harmoniosamente com o cristianismo, até tem uma cena em que mostra uma procissão. No salão de beleza essas mulheres se sentem livres. O filme tem um charme muito especial, a fotografia sempre revela a cor do caramelo, nos dando água na boca, as mulheres são de uma beleza única, principalmente Layale com seus olhos bastante expressivos, tudo contribui para que o longa se torne sensual sem ser claramente explícito, os assuntos abordados são tratados de maneira sutil, pois são demasiadamente sensíveis, ainda mais para uma cultura opressiva.
A produção é franco/libanesa por causa do conservadorismo no Oriente Médio para questões mais delicadas, como a homossexualidade feminina. São usados muitos simbolismos, o que torna a obra elegante e sutil. O filme tem uma textura agradável como o título adocicado já revela. Traz com leveza temas complexos que o universo feminino enfrenta seja em qualquer lugar do mundo.
Retratado com pitadas de humor, o enredo nos envolve naturalmente. Beirute é uma cidade de contrastes, onde as protagonistas se vestem de forma bem femininas dentro do salão, mas é possível notar as mulheres que se cobrem, e ainda cultuam o tal respeito ao corpo, em que qualquer exposição é designada como pecado.
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