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terça-feira, 13 de novembro de 2018

Ward nº6 (Palata N°6)

"Ward nº 6" (2009) dirigido por Aleksandr Gornovsky e Karen Shakhnazarov (Tigre Branco -2012), baseado em um conto de Chekhov, "Enfermaria nº6", conta a história de um psiquiatra que se torna paciente do asilo que antes comandava. Adaptado para a Rússia dos dias atuais, o filme é uma mistura de ansiedade e mistério, mostrando como é fácil nos tornarmos o que mais tememos. A adaptação moderna de um conto de Chekhov para a Rússia contemporânea em que um médico psiquiatra se torna paciente é sem dúvidas interessante e angustiante, as conversas entre Gromov e Ragin são regadas a ansiedade e seus pontos de vista levantam questões importantes. O começo do filme em que conta-se a história do local é algo maravilhoso, assim como a união da ficção e realidade na utilização de pacientes reais. 
É um filme que serve para a reflexão sobre um tema atemporal, a corrupção institucional e o como os indivíduos categorizados loucos são marginalizados e sofrem nas mãos daqueles que obtêm algum poder, a crise existencial pulsa e diálogos filosóficos coroam a obra. Filmado em um hospital psiquiátrico em funcionamento, o local, um antigo mosteiro, mistura ficção e realidade, onde instaura-se de forma documental uma investigação acerca do médico que se tornou paciente. Além da bela e terrível apresentação sobre o lugar, alguns pacientes são entrevistados e respondem perguntas sobre fé e sonhos, em seguinte acompanhamos um jovem médico, Khobotov (Evgeniy Stychkin), que assumiu o lugar de Ragin (Vladimir Ilin), aos poucos somos introduzidos à história e as entrevistas que tentam extrair de todos no local, pacientes, funcionários e médicos, o que teria levado o homem àquele estado? Claro, tudo fica mais interessante quando Ragin estabelece vínculo com Gromov (Aleksey Vertkov), um homem inteligente, mas que sofre da síndrome de perseguição, quando Ragin o descobre começa a trocar ideias o tempo todo e isso leva os outros médicos a perguntar sobre sua sanidade.
O fato é que para Ragin ninguém é interessante, não consegue estabelecer uma conversa a não ser com seu amigo Mikhail, só que com Gromov as discussões inspiradas levam Ragin ao abismo, ele é um homem sossegado sem grandes aflições, nunca experimentou o sofrimento e por isso o despreza, seu pessimismo é tanto que nada do que venha a fazer tem valor, já que no final a única coisa que o espera é a morte, ele diz que a felicidade está dentro e independe do ambiente, mas fecha os olhos para o mundo dos outros, suas ideias começam a chacoalhar à medida que Gromov o desperta e numa cena brilhante pergunta ao médico que razões ele tem para pregar sobre o significado da vida, já que ignora o sofrimento e nunca viveu de fato. A partir daí tudo que acreditava desmorona e nada é capaz de impedir sua derrocada, enquanto isso os médicos conspiram por visualizar Ragin cada vez mais deprimido e bêbado.

Gromov propõe em seus diálogos pontos de vista que até então o médico não havia pensado, já que estava mergulhado em suas próprias ideias niilistas e apenas sentado em sua cadeira sem viver de fato a vida. Quando se passa pelo sofrimento e a ação se faz necessária algo muda e as percepções da vida se tornam diferentes. Depois dessa conversa Ragin não foi mais o mesmo e se entregou à bebida o levando a um estado apoplético. 

A atmosfera de angústia, desespero e ansiedade predomina a maior parte do tempo, discorre com maestria sobre o como os transtornos mentais surgem em sua maioria a partir da hipersensibilidade das pessoas em razão de sofrimentos, rejeições, traumas, etc. É um exemplar importante para afastar o preconceito contra os doentes mentais e ter mais compaixão e, principalmente, retratar essas instituições que os aprisionam e os sedam o tempo todo, algo extremamente desumano que só faz eliminar a personalidade do doente.
"Ward nº6" traz grandes questionamentos e faz uma ótima adaptação do conto para a Rússia contemporânea, mas que de algum modo se faz universal, até porque as dores e os sofrimentos humanos são semelhantes.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

O Guerreiro Silencioso (Valhalla Rising)

"Valhalla Rising" de Nicolas Winding Refn (Drive - 2011) é um filme primoroso em todos os aspectos. Épico, hipnotizante e brutal.
A história se passa no século X. One Eye (Mads Mikkelsen) é um guerreiro mudo com forças sobrenaturais feito prisioneiro por Bardo (Alexander Morton), o cruel chefe de uma tribo. Tratado como um animal selvagem e mantido em condições deploráveis, ele é obrigado a participar em lutas mortais para diversão da população. Um dia, ajudado por Are (Maarten Stevenson), a criança que todos os dias lhe leva comida e água, mata os seus captores e escapa, levando Are consigo. Em fuga, os dois encontram Eirik (Ewan Stewart), o líder de um grupo de cruzados cristãos com destino a Jerusalém, que os acolhe. Durante a longa viagem pelos mares, em direção à Terra Santa, o navio onde seguem perde-se na neblina acabando por atracar num lugar sinistro. Ali, One Eye vai descobrir o mistério das suas origens e encontrar a redenção.
Dividido em seis capítulos, feito uma epopeia: Vingança, Guerreiro Silencioso, Homens de Deus, Terra Sagrada, Inferno e Sacrifício, é um longa para se apreciar cada detalhe, diferente dos épicos onde as batalhas são os grandes destaques, neste elas são rápidas e cruéis, o ar de mistério que envolve o protagonista causa fascínio ao espectador, o não saber nada sobre ele nos faz viajar em hipóteses, como por exemplo, pelas semelhanças, talvez seja Odin. É tudo rodeado por mistério, dúvida e medo do desconhecido, a mudança dos tempos é retratada de forma crua, gélida e silenciosa.
Mads Mikkelsen como One Eye carrega uma força, um poder assombroso sem dizer uma única palavra. É um guerreiro intrépido e invencível, sua aparência produz um efeito congelante e por muitas vezes vemos o como ele vê o mundo, sempre em tom vermelho, o que faz pensar no tanto de ódio que existe em si. Uma atuação impecável e muito diferente.
Não há muita ação, as cenas seguem lentamente e é preciso estar atento aos sinais, é um filme contemplativo, porém todas as vezes que a violência é inserida é de maneira brutal, selvagem. Destaque para a sequência em que os personagens se perdem rumo à terra santa, lugar que pensam ser deles por direito pelo fato de seguirem a cruz, a viagem parece interminável, as incertezas e o medo os engolem sob a forma de uma forte neblina, e quando finalmente chegam mais uma vez o desconhecido se faz presente. São atacados por uma tribo e pouco a pouco os personagens sucumbem.

"Valhalla Rising" é uma obra de arte, um deslumbre visual, onde há quadros perfeitos em que a natureza e o homem se encontram juntamente com um destino incerto. 
Extremamente interpretativo, ele permite vários tipos de leitura, inclusive uma metáfora sobre o cristianismo. Nada é explicado e mastigado para quem o assiste. É preciso estar acostumado a este tipo de cinema e gostar do tema. O embate entre pagãos e cristãos, os conflitos entre as diversas etnias, a mitologia nórdica e todo o mistério que envolve a idade das trevas. 
Deslumbrante em sua estética e interessante por sua abordagem,"Valhalla Rising" é para um nicho específico de espectadores. É para ser assistido mais de uma vez e se deparar com mais e mais simbolismos. 

Um épico atípico e assombrosamente silencioso. É também uma amostra da versatilidade do talento de Mads Mikkelsen, ameaçador e destemido One Eye sem sombra de dúvidas é um de seus personagens mais intrigantes. E claro, mérito do diretor Nicolas Winding Refn, que sempre traz filmes diferenciados ao grande público. 
"Valhalla Rising" tem elementos incríveis, mexe com o psicológico, principalmente pelas incertezas e o medo do desconhecido. Uma obra para ser vista com cuidado e com vontade!

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Agorafobia (Phobidilia)

"Eu tive tudo no meu reino, tudo que uma pessoa precisa para ser feliz: boa comida, sexo, 24 horas de entretenimento, 250 canais de todo o mundo, era intocável. Então como tudo deu errado? Até hoje, quando tento entender minha história estranha, não chego a uma conclusão. Mas eu sei de uma coisa, de alguma forma o mundo perfeito que eu criei, começou a desmoronar." 

"Agorafobia" dirigido pelos israelenses Doron Paz e Yoav Paz reflete sobre solidão e fobia social em tempos de comodidades tecnológicas.
Depois de sofrer um colapso nervoso, um jovem decide abandonar a caótica vida urbana e nunca mais sair de seu apartamento. Ele logo descobre que no mundo atual tudo de que ele precisa pode ser facilmente conseguido: sexo pela internet, entrega de comida, entretenimento na televisão. Anos depois, essa existência idílica sofre um baque quando ele é informado que o apartamento está prestes a ser vendido.
O ator Ofer Shechter (Kalevet - 2010) permaneceu três semanas confinado no estúdio antes do filme ser rodado para dar realidade ao seu personagem. O mundo criado para si vai desmoronando aos poucos ao saber que precisa deixar o apartamento, mas ele arquiteta meios de driblar isso. O filme não explica os motivos de sua fobia, apenas a retrata, há muito desespero, agonia e alucinações, ele mesmo diz que quando se está por muito tempo sozinho nada mais parece real. Sua única companhia é Albert, o gato, e seu lazer é o jardim, que lhe dá o prazer de ver o pôr do sol.
O longa expõe muito fielmente o mundo moderno, o quanto estamos reféns das tecnologias e do conforto que nos proporciona, o que não é ruim de forma alguma, mas o que não pode é se tornar escravo. Facilmente podemos cair nessa armadilha, pois a rotina é estressante e o convívio com as pessoas está cada vez mais difícil, há meios para tudo via tecnologia, o protagonista faz compras e paga contas, faz sexo virtual e trabalha em casa. Cria-se um mundo e isso acaba bastando.
Ele também passa bastante tempo em frente a televisão vendo coisas banais, e é aí que entra Daniela (Efrat Boimold), que trabalha no telemarketing de uma emissora, um dia liga pra casa dele e oferece o aparelho que mede audiência, de um jeito invasivo ela entra na vida desse cara que não quer mais estar em meio a pessoas e fazer parte do todo. A relação deles vagarosamente vai tomando forma e mostra que para se sentir vivo é necessário ter pessoas ao lado.
A solidão é saudável, mas é necessário saber entrar e sair dela, a ilusão que toda essa tecnologia oferece e essa avalanche de tudo que nos ataca, leva-nos a vários distúrbios emocionais trazendo assim a insatisfação contínua.

"Agorafobia" é um filme que aborda um tema doloroso, real e que precisa ser debatido, os personagens são bem construídos e mesmo que seja desesperador e pareça um caminho sem saída, há esperança para esse transtorno do qual o personagem sofre, principalmente se houver o amor. 

quarta-feira, 20 de maio de 2015

3 Idiotas (3 Idiots)

"3 Idiotas" (2009) dirigido por Rajkumar Hirani está entre os melhores filmes indianos sem dúvidas. Como é de se esperar de uma produção Bollywoodiana a duração tem quase 3 horas e a mistura de gêneros se faz presente, há boas doses de comédia, drama, e claro as partes musicais que se encaixam perfeitamente e que são impossíveis de tirar da cabeça. O roteiro é elaborado e não deixa nada sobrando e olha que a história dá muitas voltas, também não deixa a desejar quanto à crítica sobre a competição entre os seres humanos e às instituições de ensino e seus métodos.
Aamir Khan é a grande estrela, e mais uma vez nos dá o prazer de ver um personagem construtivo. No recente "PK" (2014), ele reflete sobre as mais diversas religiões de maneira ampla e pura. Em "3 Idiotas", Farhan (R. Madhavan) e Raju (Sharman Joshi), embarcam numa jornada em busca de seu amigo desaparecido, Rancho (Aamir Khan). Durante a viagem, eles se deparam com uma antiga aposta, um casamento que precisam arruinar e um velório que foge do controle. Em meio a tais peripécias, outra viagem se inicia, uma jornada através do tempo e da história do amigo desaparecido, Rancho, que com seu jeito único mudou completamente a vida dos dois; o amigo que os inspirou a pensar com criatividade e independência, mesmo quando o resto do mundo os chamava de idiotas, mas onde estaria o idiota original agora? Quem seria ele? Por que ele partiu? Para onde ele foi?
Uma coisa deve ser dita, não se engane pelo título, é uma crítica inteligente e por muitas vezes emociona nos fazendo pensar sobre a nossa vida e nossas prioridades. O enredo mescla um road movie com flashbacks explicando-nos quem é Rancho e o porquê estão atrás dele. Rancho é diferente, inteligente, gosta muito de aprender e é questionador, principalmente aos métodos de ensino da faculdade. Os três amigos, os idiotas da história cursam engenharia e o rígido professor não dá tréguas, tem um discurso certeiro sobre competição e o como a faculdade em que estão é a melhor. A história vai seguindo mostrando detalhes do período da faculdade e também a busca por esse amigo tão querido que sumiu após se formar. O fato é que a narrativa prende o espectador e surpreende por ter tantas cartas na manga.

O cinema indiano se difere dos outros, é vivo, e isso se dá pela importância das cores utilizadas e das músicas inseridas que fazem parte do contexto. Você chora e ri de um minuto a outro. Essa característica tão marcante permite que o espectador experimente diversas sensações no decorrer do filme.
O diretor e professor Viru Sahastrabudhhe (Boman Irani), apelidado de ViruS é caricato, mas representa bem o perfil de professor que repudia qualquer pensamento que fuja de seus métodos rígidos e limitados. Ele amedronta e causa danos nos alunos devido ao seu caráter. Ele vive dizendo que a vida é uma corrida e trata-os como máquinas complicando o fácil e dificultando o aprendizado. Outro personagem recorrente é Chatur (Omi Vaidya), o típico aluno que passa de ano decorando e que nada aprende, ele é irritante e é óbvio que não gosta de Rancho que vai contra a tudo isso. E se Rancho não é bem visto, a situação dele piora quando se envolve com Pia (Kareena Kapoor), a filha de Viru.
A amizade retratada é encantadora, os três sempre se ajudam independente de qualquer coisa, a crítica é imensamente válida e com certeza é um filme que deve ser visto pelos educadores e os alunos, pois disserta sobre os métodos de ensino, como o decoreba que não acrescenta nada e apenas garante um diploma e o desperdício do potencial de cada indivíduo, além da pressão da escolha da profissão sem pensar no que gosta.

A trilha sonora é maravilhosa e agrega bastante à trama, especialmente a que diz: "Está tudo bem". 
"3 Idiotas" reflete vários assuntos, como a importância da amizade, a não desistência de seus sonhos apesar das dificuldades, valores que precisam ser resgatados, como a gentileza, lealdade e amor pelo próximo, o não deixar-se influenciar pelas opiniões e não permitir que regras impostas determinem o que você vai ser. 
É um filme leve, empolgante e crítico na medida exata, é mais um belíssimo exemplar do cinema indiano. Recomendadíssimo!

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Nada Pessoal (Nothing Personal)

"Nada Pessoal" (2009) dirigido por Urszula Antoniak é um filme minimalista, silencioso, e que desperta uma imensa vontade de se sentir só, de fugir para lugares inóspitos e ter a presença somente da natureza para ter noção do que realmente significa estar vivo.
Anne (Lotte Verbeek) é uma jovem mulher que, aparentemente devido ao fim de seu casamento, decide abandonar a Holanda, enveredando então numa viagem solitária pela Irlanda. É durante essa viagem que encontra uma casa, onde habita um homem chamado Martin (Stephen Rea), também ele bastante só. Anne acaba por trabalhar para Martin, a princípio a troco de comida, com a exigência de nunca trocar impressões pessoais de qualquer gênero. No decorrer desta aparente bizarra convivência, estas duas personagens solitárias vão-se lentamente aproximando, até que as suas almas se tocam e a solidão se torna conjunta. O filme é dividido em cinco partes, "Solidão", "O fim de uma relação", "Casamento", "Início de uma relação" e "Sozinha".
Anne devastada interiormente, cansada das relações pessoais decide se afastar de tudo, a vemos caminhando por lugares maravilhosos, dos quais intensificam o sentimento de estar só e refletir sobre o como vivemos nossa vida e o como acontecemos nela, Anne quando interrogada por alguém sempre dá respostas certeiras e duras, a cena logo no início em que procura alimento no lixo e uma família pergunta se precisa de ajuda, exemplifica. Seguindo o caminho, passa fome, frio, dorme em sua barraca improvisada e reflete. Um dia encontra uma casa, nela há um homem sozinho e triste, ela então começa a trabalhar em troca de comida e com o passar dos dias Martin lhe arruma mais tarefas e a relação vai se construindo, uma troca de solidões, nada revelam sobre si mesmos, Anne demonstra que qualquer pergunta de cunho pessoal irá embora, portanto Martin respeita. A mudança que acontece é vagarosa e não há nada mais bonito do que essas sutilezas retratadas, seja num breve sorriso ou numa troca de olhares. A naturalidade é a marca deste longa que prima por retratar um lado pouco explorado do ser humano, e dificilmente se encontrará um filme que explore tão bem a solidão.
A fotografia é convidativa e nos joga dentro desta relação que acontece tão lindamente sem rótulos e obrigações. Um filme que promove reflexões acerca de nós mesmos e o como lidamos com as relações que se formam durante a vida. Certa vez li que o melhor de uma relação é sentir-se confortável com o silêncio do outro, e para mim não há verdade maior. Muito se perde quando conhecemos demasiadamente uma pessoa, pois o que nos instiga é exatamente o mistério, por vezes as palavras apenas destroem a beleza do não saber. Anne não diz sobre si, mas Martin chega muito próximo dela, aos poucos, a descobrindo, e vice-versa.

"Nada Pessoal" é um filme que nos brinda com uma história reflexiva, ela nos puxa e vivemos juntos o isolamento dos personagens, e claro, a estonteante fotografia realça ainda mais o clima de imersão em si mesmo. É suave e profundo!

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

As Viagens do Vento (Los Viajes del Viento)

Ignacio Carrillo, um trovador que durante anos percorreu povos e regiões, levando a música com seu acordeão, toma a decisão de fazer uma última viagem, através de toda a região norte da Colômbia, para devolver o instrumento a seu mestre ancião, e assim nunca mais voltar a tocar. No caminho, encontra Fermín, um jovem cuja ilusão na vida é seguir seus passos e ser como ele. Cansado da solidão, Ignacio aceita ser acompanhado, e juntos empreendem o percurso desde Majagual, Sucre, até Taroa, além do deserto da Guajira, encontrando-se com a enorme diversidade da cultura do Caribe e vivendo todos os tipos de aventuras e encontros. Ignacio tratará de ensinar a Fermín um caminho diferente do seu, que tanta solidão e tristeza lhe trouxe, mas para isso terá que enfrentar o chamado de seu próprio destino que tem preparadas diferentes sortes para ele.
"As Viagens do Vento" transcende um mito, uma promessa a ser cumprida por um sujeito que tem um acordeão com chifres colados em cada uma das extremidades do fole, e que faz jus a seu apelido: acordeão do diabo. A jornada começa após a morte da mulher de Ignácio, a história é sobretudo, bela e muito pitoresca, e repleta de aventuras. Eles viajam juntos vastos territórios, inúmeros personagens se encontram, e cada situação enfrentada é apenas com o objetivo de regressarem ao proprietário do acordeão que foi amaldiçoado. As diversas áreas da Colômbia parecem esquecidas e perdidas. Andar para essas duas pessoas parece ser uma necessidade interna de encarar a si mesmos, um resgate de suas tradições.
Não há como não se deslumbrar diante as inúmeras apresentações de acordeão, disputas, brigas, experiências únicas, tal como a cena do garoto provando seu dom ao tocar o tambor, para poder ser batizado com sangue de lagarto. Outra sensacional é do duelo em que Ignácio toca, enquanto dois homens brigam com um facão. As travessias de paisagem, os tipos de pessoas diferentes que encontram conforme andam, o popular, a tradição, tudo é exposto em uma fórmula de libertação e de recomeço. São imagens majestosas que dizem por si só.
É minucioso, detalhista, e é muito gratificante poder contemplar cinema de qualidade. A magnitude das imagens, a procura de si mesmo sem saber o que vai encontrar. Como aconteceu com Fermín, ele seguia Ignacio porque queria ser como ele, mas nem tudo é tão simples assim. Um garoto perdido, andando à procura de seu ser. Esse é um caminho solitário, e é preciso que assim seja. Como no fim de sua jornada, que na verdade, estava apenas começando. Ignacio chegou a seu destino, não exatamente como previa, mas o destino tinha preparado algo para quando chegasse. Já Fermín estava apenas iniciando sua jornada.

A fotografia é impecável, a natureza resplandecendo sobre o homem, o ruído do vento demonstrando solidão, recolhimento, recomeço, enquanto Ignácio estava desencantado, Fermín tinha a vicissitude e o idealismo. É lindo ver a cultura, os ritos e tradições por cada lugar que passam, as músicas, as festas, tudo muito cativante. Um filme com identidade. E cada espectador o absorve de um jeito.
"As Viagens do Vento" é um longa maravilhoso que instiga nossa curiosidade ao mostrar uma Colômbia belíssima.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Lobo (Volchok)

Realizado pelo russo Vasili Sigarev (Zhit - 2012), "Lobo" (2009), conta a história de uma mãe e da sua filha, que não têm nomes e estão numa incessante corrida. A mãe tenta fugir da filha na tentativa de começar uma nova vida e a filha corre atrás da mãe por não saber viver sem ela.
A personagem de Yana Troyanova é uma jovem mãe irresponsável, egoísta e selvagem, não existe espaço para a filha (Polina Pluchek), ela deseja apenas satisfazer suas necessidades. Vemos tudo através dos olhos da menina que busca atenção de sua desleixada mãe, que é tratada como um trapo por aqueles com quem se envolve, e de um jeito ou de outro desconta na garotinha. Sem dúvidas, essa inconstância é uma experiência dolorosa para uma criança que necessita de proteção e cuidados.
As cenas impactam, o desprezo choca, como pode uma mãe abandonar um filho, deixá-lo a mercê do nada, do destino? É da natureza humana, porque um animal não faz uma coisa dessas, eles protegem e alimentam seus filhotes até que estejam prontos e não sejam mais indefesos, já o ser humano nutre sentimentos que destroem tanto a si próprio, como aqueles que o amam. A mãe do filme não esbanja qualquer afeto pela menina, ela foge, não a quer por perto, e essa criança toda vez que a vê busca atenção.
Em dado momento a garotinha começa a frequentar o cemitério e faz amizade com um menino que acabara de ser enterrado, ela lhe conta histórias, mente sobre sua vida, leva doces, enfim... Sua avó morre e a mãe acaba culpando-a porque ela estava conversando com os mortos, depois desse episódio a coitadinha fica completamente perdida, a mãe bebe, se droga e vai internada, a situação fica tensa, pois quem ampara a menina é uma tia distante. O tempo passa e a mãe retorna como se não tivesse acontecido nada, ainda humilha a garota que agora já tem 14 anos. É o mesmo de sempre. Ela está desiludida sobre sua mãe, mas ainda corre atrás como se houvesse alguma esperança. A cena final é triste e amarga, o drama apela para o nosso psicológico.
Interessante é que a menina não é uma criança chorosa ou doce, ela é agressiva com os amantes da mãe, é sombria e carrega um semblante sério, um olhar ameaçador. É como se ela exigisse esse amor do qual não recebe. Em vários momentos inocentemente e confusa tenta acariciar a mãe, assim como os amantes, mas sempre é jogada de lado. Já grande a garota se torna retraída e quase sem voz, impossível manter um diálogo com aquela mãe que está a sua frente, não há o que dizer. É uma mulher vazia que jamais saberá o significado e a essência da palavra amor.

É deprimente, pesado, mas retrata uma história que acontece muito, a relação de mãe e filha, a rejeição de uma e o amor de outra. Se a mãe desaparecesse, talvez a dor dessa criança fosse menor, ela seguiria sua vida com uma certeza, agora nessa situação que vive, em que ora a mãe está por perto, ora está longe, cria um sofrimento imensurável e constante. É uma ferida que nunca se fecha.
"Lobo" é um filme duro, seco, e cujo final assusta. É triste saber que não há consciência em se colocar um filho no mundo e ainda mais fazê-lo sofrer depois. 

"Acordei com a certeza de que tudo tinha acontecido daquela forma. Então, fui ao cemitério. Eu queria encontrar algo. Não sabia o quê... Talvez, a mim mesma."

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Lo

"Lo" (2009) é um filme independente e experimental de Travis Betz, que mescla terror, drama, comédia, musical e teatro. Aparentemente pode parecer Trash, mas conforme o desenrolar percebemos o quanto o roteiro é caprichado. Os atores dão aspecto amador ao longa, mas isso não danifica de forma alguma, aliás dá um charme especial. É interessante, curioso e foge de todos os estilos que conhecemos.
A história se passa em um único ambiente, onde Justin (Ward Roberts) sentado envolto de um pentagrama segue o ritual de um livro de magia para invocar o demônio aleijado Lo (Jeremias Birkett). Justin quer recuperar sua namorada April (Sarah Lassez), que foi sequestrada por um outro demônio. Após a aparição espetacular de Lo, Justin lhe ordena que vasculhe o inferno atrás de sua amada, o demônio fica irritado, pois tal desejo é impossível. Dadas algumas discussões entre eles, Lo aceita, e então passa a querer saber mais sobre April. Os pensamentos de Justin são projetados e vemos o estranhíssimo primeiro encontro e outras cenas do casal. Os modos de April são diferentes de qualquer outra mulher e Justin se apaixona.
É necessário dizer que o filme tem o tom completamente teatral, são diálogos e situações exageradas e gestos caricatos. O filme todo gira na conversa entre Justin e Lo, outros momentos são projetados, como se fosse um flashback. De repente, o demônio que levou April embora para o inferno aparece. Há muito humor nesta parte, inclusive um musical que nos explica várias coisas.
Como é de se esperar o demônio faz seus joguinhos confundindo a mente de Justin, fazendo-o que se confronte com seus próprios pensamentos, alegando que April não é o que ele pensa. O personagem Lo é sensacional, desde a sua aparição, os diálogos e olhares dirigidos a Justin. Não se espera nada do início, mas tudo muda quando Lo aparece de forma sinistra, é surpreendente o rumo que a história toma.
Este filme é uma ótima pedida para quem está cansado de filmes de terror convencionais que sempre trazem a mesma proposta e elementos. O clima de "Lo" por si só já é bizarro, e o humor é um ótimo ingrediente, pois é inteligente ao mesmo tempo que simples. É a prova de que não é necessário nada muito elaborado. Pode ser considerado Trash, mas inegavelmente é bem pensado em sua execução.

As poses e frases de efeito de Lo são geniais e contém um humor negro de primeira. Tem que ser muito doido para recomendar um filme assim, mas é bom para que as pessoas conheçam e tenham vontade de vê-lo.
Travis Betz teve originalidade em compor um longa de características tão bizarras, mas que atraem quem se atreve a assisti-lo. É diabolicamente teatral!

quinta-feira, 19 de junho de 2014

A Porta (Die Tür)

"A Porta" (2009) de Anno Saul é um filme que traz o tema viagem no tempo, este ao contrário dos hollywoodianos que têm a mesma premissa, pontua bem o drama do personagem Mads Mikkelsen, que está em evidência graças a seu ótimo trabalho na série "Hannibal" e também no filme "A Caça". Não dá para negar que Mads Mikkelsen carrega o filme nas costas, pois o roteiro lá pelo final dá uma bela caída, transformando no que era pra ser uma proposta séria em algo exagerado.
A história é sobre um bem-sucedido pintor, David, que perdeu o controle de sua vida após ter sido, através de uma decisão fatal, o responsável pela morte de sua filha de 7 anos. Depois de cinco anos, ele descobre uma porta que lhe dará a oportunidade de começar tudo novamente. Entretanto, o que inicialmente aparenta ser uma ótima chance para um novo início, logo se revela um verdadeiro cenário de horror, pois nem tudo no passado é realmente o que parece.
Após perder sua filha por puro descuido, ele enfrenta o inferno em vida, não consegue seguir em frente por causa da culpa que carrega e da qual jamais conseguirá se livrar. Prestes a tentar o suicídio, David descobre uma porta que lhe dará a chance de recomeçar. Ao transpassá-la volta cinco anos atrás e vê que pode contornar o passado, desse modo consegue salvar sua filha do acidente, mas esta é uma realidade paralela, portanto, terá de lidar com seu eu de cinco anos atrás. Em um encontro com seu duplo acaba o matando, e daí passa a viver aquela realidade. O que David não sabe é que existem outros que também encontraram a porta.
Adaptado da novela de Akif Pirinçci, "A Porta" claramente lembra o filme "Efeito Borboleta", o longa consegue manter a tensão no espectador e produzir a sensação de que se pode consertar o passado, o alívio em voltar e poder resolver as coisas com mais maturidade. No que mais tarde vemos que isso é pura ilusão e completamente destrutivo. Para tudo existe uma consequência, para cada ato, cada decisão, não há perfeição em ser, tudo é um aprendizado para o amadurecimento. Assim é a vida. O filme caminha por essa linha, pontuando o drama do personagem em perder a filha e a oportunidade em consertar e vivenciar o passado com a maturidade adquirida por aquela tragédia.

É inevitável, o tema seduz o espectador, o desenrolar nos faz pensar e refletir sobre como reagiríamos se nos fosse dada tal oportunidade. Mas infelizmente o desfecho do filme deu uma exagerada em reviravoltas, existem cenas que seriam desnecessárias. A força com que o filme começou se desfez e a resolução final foi abrupta. A indicação é pelo fato de que mesmo com alguns furos, ele foge dos parâmetros que conhecemos, a fantasia é um complemento para um assunto existencial.
A questão é que nos preocupamos muito com o que fizemos e o como fomos, não nos importamos em ser. Parece que o presente é sempre difícil e constantemente precisamos fugir e lembrar do passado com a ideia de que se tivéssemos reagido de tal forma, o agora seria diferente. Mas lembre-se, vive-se uma vez só e o que foi feito está feito. Não existe nenhum portal, a não ser o da nossa consciência. Parafraseando Milan Kundera sobre o mito do eterno retorno no livro "A Insustentável Leveza do Ser". "Nós só podemos viver uma só vez, e sem repetições, portanto, nunca poderemos comparar uma situação com outra."

Mads Mikkelsen é um ator muito versátil, a cada filme que assisto com ele percebo o quão talentoso é. Deixo como dica alguns filmes: "Depois do Casamento", "Praga", "Coco Chanel & Stravinsky", "O Guerreiro Silencioso", "O Amante da Rainha", entre outros. Deem uma olhada em sua filmografia.
"A Porta" é o tipo de filme que dá vontade de sentar e ficar conversando sobre as possibilidades que ele abrange, abre-se um leque de ideias. Por essas e outras questões vale a pena assisti-lo.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

O Homem ao Lado (El Hombre de al Lado)

"O Homem ao Lado" (2009) é mais uma bela amostra do quão o cinema argentino é incrível. Roteiro inteligente, humor na medida exata, personagens reais e um tema muito atual. Dirigido por Mariano Cohn e Gastón Duprat (Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto - 2011) a história é sobre a desavença entre dois vizinhos por causa de uma janela.
Leonardo (Rafael Spregelburd) é um designer egoísta, arrogante e intelectualizado que ficou rico por ter desenhado uma cadeira não convencional. Sua esposa Anne é ainda pior, chata ao extremo, a típica perua que pensa sempre ser a dona da razão, professora de Yoga, dá aulas no último andar de sua casa. Lola, a filha deste casal todo certinho e modelo de uma sociedade imaginária, vive em seu quarto escutando e dançando sem ritmo uma música esquisita, ela com certeza não sabe nem o que significa a palavra afeto, sua vida é tão sem graça que parece nem ao menos existir. É necessário descrever a casa em que essa família mora, ela também é uma personagem neste filme. Super moderna, cheia de vidros, rampas e totalmente clean, foi projetada por um famoso arquiteto suíço, Le Corbusier, e fica localizada em La Plata, na Argentina.
Leonardo é o esteriótipo do ser humano que por causa de sua classe social se julga o conhecedor, ele vive numa bolha de felicidade ilusória, onde tudo parece estar no lugar. O mundo dele começa a balançar quando o vizinho abre um buraco a fim de construir uma janela, cuja dá de frente para sua casa. Victor (Daniel Araóz), um sujeito que a primeira vista parece ser agressivo por seu porte e expressão, vai se revelando numa pessoa de coração bom, que apenas deseja se inserir no mundo em que Leonardo faz parte. É a partir daí que a história se desenrola, são construídos diálogos inteligentes e sagazes. Victor argumenta que só precisa de um pouco da luz do sol, coisa que Leonardo tem de sobra, este rebate que construir uma janela ali é contra a lei, invasão de privacidade. Victor tem vivacidade, e até se diverte com Leonardo, em vários momentos afirma que vai parar a obra, oferece presentes, como um pote de conserva de porco, caçado por ele mesmo, inclusive dá a receita nos créditos finais do filme. Também dá uma escultura feita de armas e balas toda pintada em vermelho, que diz representar uma vagina. Nesta parte é engraçado pensar no conceito arte, porque se a mesma escultura fosse feita por um artista de renome, certeza que teria valor e todos fingiriam entender o que ela representa.

A mulher de Leonardo é irredutível na questão sobre a janela, ela reflete bem a mulher fútil que pouco se importa com o outro, afinal está bem aconchegada em seu mundinho, a não ser pela janela que Victor teima em construir. Vemos logo no início vários turistas e estudantes tirando fotos da única casa projetada por Le Corbusier na América Latina. Este também é um tipo de invasão, mas diferente da janela todos estão admirando a casa, enquanto Leonardo e sua família estão lá dentro sentindo uma sensação de poder em relação aos outros. Victor a abrir o buraco na parede quebra esse poder que Leonardo sente. Pela janela daria para ver a fraqueza de Leonardo, o desastre que é a sua relação com a filha, a infelicidade e o tédio que o rodeia. Por muitas vezes ele falava que estava trabalhando só para não atender os chamados de seu vizinho, mas Victor rebatia e dizia para ele a verdade e que sabia que não estava fazendo absolutamente nada. Leonardo vende a imagem do homem rico, designer criativo e muito inteligente, capaz de apreciar coisas que seriam insuportáveis à outras pessoas. O que dizer da cena em que ele e seu amigo estão na sala escutando uma música cheia de ruídos estranhos, aí o amigo dele vira e diz: "Gosto desta batida fora do ritmo", até descobrir que elas vinham das marteladas do vizinho. É sensacional!
Dá para discutir muitos e muitos aspectos sobre a sociedade e seus valores a cada cena. O humor negro está sempre presente e principalmente o sarcasmo nas falas de Victor. A arrogância de Leonardo é tanta que ele não passa seus conhecimentos e os métodos para os estudantes de design, a cena em que acontece a entrevista exalta bem isso, ele se nega a dar um conselho para os iniciantes, outra que também reflete sua mesquinhez é quando os estudantes vão mostrar seus projetos, e a única coisa que ele faz é maltratar e usar palavras desincentivadoras. Victor é um sujeito rude, simples, porém muito simpático, e é por causa dele que a filha de Leonardo consegue esboçar um sorriso, numa dança com os dedos que ele exibe a ela através da janela.

Victor é um ser humano de verdade que age conforme sua natureza, já Leonardo vive sob a  luz que emana da classe denominada artística, dá-se um valor do qual não tem. Aos poucos Victor  adentra no mundo de Leonardo e crê que se tornou amigo dele, há uma certa ingenuidade neste homem que julgamos no início um brutamontes.
O filme não poderia ter melhor desfecho, revela o quanto o ser humano pode ser egoísta em função de suas vontades, e colocar o seu ponto de vista como certo e ignorar o do outro. Leonardo tem todos os defeitos do mundo, mas se esconde numa plasticidade elegante que encanta a todos ao seu redor.
O filme questiona valores que a sociedade anula em função de aparência e elegância. Ter status tornou-se a meta, esquece-se dos sentimentos em relação ao outro, o espaço que qualquer um merece e precisa ter. Se pudéssemos ver através de uma fresta a vida de pessoas ditas perfeitas, encontraríamos apenas sujeira. Manter a imagem ilusória da felicidade tem as suas consequências. É incrível a que nível de estupidez chega o ser humano e que por tão pouco seja capaz de atos inescrupulosos.

"O Homem ao Lado" caminha a passos lentos, mas contém um suspense do qual ficamos presos o tempo todo. Com belíssimas atuações, diálogos riquíssimos, fotografia que prima por ângulos estratégicos e uma direção apurada que dá legitimidade à obra, o longa é um exemplar digno do cinema argentino que é expert em mesclar inteligência e humor.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Boneca Inflável (Kûki Ningyô)

"Boneca Inflável" (2009) dirigido por Hirokazu Koreeda (O Que Eu Mais Desejo - 2011) é baseado no mangá homônimo de Yoshiie Goda. A história é sobre Nozomi (Donna Bae), uma boneca inflável comum comprada por um homem solitário para substituir o lugar de seu antigo amor. A narrativa é interessante e original. Acompanhamos os passos de Hideo (Itsuji Tao), seu cotidiano banal e sem graça que se resume a trabalhar e chegar em casa para saciar seus desejos com a boneca interpretada de forma muito doce pela atriz Donna Bae.
Hideo, na verdade se sente só e busca mais do que satisfazer seus impulsos sexuais, ele trata Nozomi como se fosse real, lhe dá banho, penteia seus cabelos, compra roupas e conversa sobre como foi seu dia no trabalho. Um dia, acontece o inesperado e a boneca ganha consciência e um coração, deslumbrada com tudo ao redor decide sair e explorar, dessa maneira percebe que a maioria dos seres humanos são sozinhos e vazios. Nozomi é ingênua e para ela tudo tem brilho, primeiro descobre a fala, depois o significado das coisas, cai nas aflições humanas, e por fim o amor. Muitos podem achar a história maluca, a premissa passa essa ideia, porém conforme o filme se desenrola percebemos metáforas profundas sobre a maneira que vivemos e nos comportamos na sociedade.
Nozomi consegue um emprego em uma videolocadora e consequentemente se apaixona pelo atendente Junichi, em meio a esse universo dos filmes, que não deixa de ser uma homenagem à sétima arte, Nozomi percebe o vazio que habita nas pessoas, e então acha que existem outros como ela. A insatisfação, a solidão e a rapidez com que tudo flui é o principal agravante para a vida se tornar triste, já não há tempo ou paciência para olhar ao lado e quem sabe encontrar um alguém interessante, cada um existe e se isola em seu próprio mundinho. A maior desculpa hoje em dia é o "não tenho tempo", mas não se permita acreditar neste pensamento, quando o interesse existe, há sempre tempo.
O filme tem uma beleza peculiar e o que o ajuda é a maravilhosa interpretação de Donna Bae, sua transformação acontece como num conto de fadas, seus olhos diante ao mundo sempre estão arregalados e curiosos. Os efeitos especiais são simples e naturais, basicamente são jogos de câmera e maquiagem. É bom se apegar aos detalhes e nos diálogos que Nozomi estabelece com outros personagens, eles vão crescendo aos poucos e ganhando forma.

Nozomi ao final das contas se torna mais humana do que a maioria das pessoas, e inclusive percebe que ter um coração não é nada fácil. Numa das cenas ela encontra o lugar de onde veio e conversa com seu criador. Uma outra cena lindíssima é quando se encontra com um idoso solitário que passa todos os dias sentado no banco do parque. A conversa entre eles é magnífica e chega a ser filosófica. O velho diz: "Diga, conhece um inseto chamado efêmera? A efêmera morre um ou dois dias após dar à luz. Seu corpo é vazio. Ao invés de estômago ou intestino é apenas preenchido por ovos. É uma criatura que nasce apenas visando a procriação. Humanos não são muito diferentes."
Nozomi entende que pode haver outros como ela, bonecas que se transformaram, diariamente vê uma trabalhadora com uma meia que se assemelha a "cicatriz" que tampa todos os dias, e até lhe dá a maquiagem que usa, a mulher acha que esse gesto é por causa de sua aparência, pois está obcecada com a possível demissão no trabalho por uma moça mais nova.
Essa interação com outros personagens dá abertura para vários questionamentos, como solidão, individualismo, compulsão, e valores que se tornaram verdades absolutas e que as pessoas incansavelmente buscam, o padrão de beleza, por exemplo, ou o ato de consumir sem necessidade.

"Boneca Inflável" é um ótimo filme, traz uma importante mensagem de forma lírica e fantasiosa, é triste e doce ao mesmo tempo. As cenas iniciais principalmente tem uma aura de inocência, Nozomi ao se transformar e sentir a vontade de sair, começa a imitar os gestos das pessoas, como andar sempre apressada. Ela observa e absorve um pouco de cada um, aprende e se insere nos moldes da sociedade. Tudo isso para descobrir que todos assim como ela, são esvaziados. O sentido de humanidade está perdendo-se, uma vez que os vínculos estão se tornando mais frouxos e efêmeros.
É filme para se pensar nos valores que ditam as regras da sociedade, valores que só servem para nos deixar insatisfeitos e solitários. De vez em quando é preciso se inflar de vida para que as possibilidades apareçam e enxerguemos as belezas cotidianas.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

A Papisa Joana (Die Päpstin)

Baseado no best-seller escrito pela americana Donna Woolfolk Cross sobre a lendária história da única mulher que teria sido Papisa, entre os anos 885 e 858 DC.
Johanna von Ingelheim (Johanna Wokalek), nascida na pobreza numa época de trevas, onde ser mulher era quase uma maldição, usou de todos os esquemas para poder dar azo à sua sede de conhecimento: ensinada pelo irmão Matthew a ler com apenas seis anos, cedo acaba por ser escolhida pela escola religiosa na Catedral de Dorstadt, onde se torna a única menina estudante. Mais tarde conhece o afeto em Gerold (David Wenham), que a acolheu como filha em sua casa, mas cuja relação, com os anos se transforma em amor. Depois de ser obrigada a casar, acaba por fugir e, disfarçada de homem, entra para o mosteiro de Fulda, onde durante vários anos, esconde a sua verdadeira identidade, tornando-se Johannes Anglicus. Através dos seus grandes conhecimentos de medicina tradicional, conquista o respeito e confiança de todos e, assim seguindo caminho para Roma acaba por salvar a vida do papa (John Goodman), de quem se torna íntima e confidente. Guardando o terrível segredo sobre a sua verdadeira identidade, termina por ascender a pontífice máximo da igreja católica, mas o reencontro com Gerold ditará o seu trágico destino.
Se é fato ou lenda, pouco importa, o incrível do filme é mostrar a religião e o seu poder perante as pessoas, as intolerâncias e o machismo. E por mais que séculos se passem continuam a gerar burburinhos. No século IX não era tão incomum uma mulher se vestir de homem para poder adquirir conhecimento, ou apenas para aprender a ler e a escrever, já que as primeiras universidades eram administradas pelas igrejas, e estas barravam as mulheres. A história coincide com um período de grande confusão na diocese de Roma e Joana teria ocupado o cargo entre o Papa Leão IV e o Papa Bento II. Desde pequena Joana era muito curiosa, aprendeu latim com seu irmão, grego e filosofia com seu tutor, e com a mãe os nomes das ervas, no que mais adiante a ajudaria em medicina, pois foi posta para traduzir os livros de Hipócrates. Muito inteligente e astuta conseguiu se passar por Johannes Anglicus e residiu algum tempo em um mosteiro, onde seria descoberta por um bispo, e este a ajudado fugir.

Se estabelecendo em Roma depois de uma grande peregrinação, não demorou para que sua fama na arte de curar ficasse tão conhecida, deste modo foi chamada para tratar do papa Leão IV, que rapidamente se afeiçoou a Johannes, sua sinceridade e humildade o cativou e o nomeou como um porta-voz. Muitos estavam de olho e queriam o título de papa, e assim que ele morreu foi feita nova eleição, cada membro deu um nome, inclusive o de Johannes. O povo o escolheu, e devido a sua grande aproximação ficou conhecido como Papa Populi. Algum tempo depois acaba engravidando de Gerold, e apesar de ser fácil esconder a barriga por causa de suas vestimentas, foi diante a inúmeras pessoas, numa procissão, que sente as dores do parto, e seu segredo é revelado. Há algumas divergências sobre a descoberta e seu fim. Algumas versões dizem que foi apedrejada, e outras que morreu durante o parto enquanto o povo não acreditava no que via e alguns cardeais gritavam milagre.
Muitas coisas são questionáveis dentro da religião católica, várias histórias da bíblia podem se passar por meras ficções. Várias passagens são tão absurdas quanto surreais, não seria tão espantoso que uma mulher disfarçada de homem num período turbulento em Roma conseguisse conquistar o papado.

É um filme interessante e coloca em xeque várias questões que querendo ou não ainda continuam mesmo que mascaradas. O poder que a igreja detém sobre as pessoas e as obscuridades em torno.
"A Papisa Joana" segue em tons épicos com uma linda ambientação e um roteiro enxuto e competente. A personagem em todas as fases cativa, sendo assim se faz um longa curioso e muito questionador. 

A Papisa foi imortalizada, no século XI, numa das cartas do Tarot de Marselha, representando a sabedoria, o conhecimento, a intuição e a chave dos grandes mistérios.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Os Famosos e os Duendes da Morte

"Os Famosos e os Duendes da Morte" é um filme nacional de 2009, infelizmente não passeou pelo circuito comercial, apenas pelos festivais sendo bem elogiado, inclusive ganhou o prêmio máximo do festival do Rio de Janeiro na época. Baseado na obra homônima de Ismael Caneppele, que também assina o roteiro e interpreta o homem misterioso do filme, e dirigido por Esmir Filho, diretor de curtas, como o hit "Tapa na Pantera". O longa é no mínimo peculiar, por assim dizer.
A trama é ambientada numa pequena cidade do Rio Grande do Sul colonizada por alemães, lá vive um adolescente solitário, melancólico e fã de Bob Dylan, ele passa o tempo na Internet vendo os vídeos de uma garota misteriosa e um homem parecido com Dylan enquanto a vida ao seu redor vai passando. Seu maior sonho é assistir um show de Dylan. As coisas passam a fazer sentido quando descobre que as pessoas nos vídeos na verdade não estão tão distantes assim da cidade de onde vive. Nessa cidade existe uma ponte que assombra as pessoas da região, ela é um obstáculo corriqueiro na vida dos moradores. O garoto sem nome usa o apelido de Mr. Tambourine Man, mesmo nome da música de Dylan.
Retratar o universo adolescente, captar a essência dessa fase é muito difícil, muitos filmes tentam, mas de forma superficial, neste ao contrário podemos sentir todo o drama de autoconhecimento, do estar em um lugar que não lhe pertence, um estrangeiro em sua própria terra. É possível adentrar nos sonhos e pesadelos deste garoto, seu silêncio, seus olhares, seu vazio interior, tudo é exposto a nós. Ele tenta lidar com a morte do pai, o relacionamento oscilante com a mãe e as poucas amizades, a internet é a única presença em sua vida, dado momento ele escreve em seu blog: "Estar presente não é físico". Essa frase exemplifica bem o universo daquele garoto. O lugar em que vive é designado por ele mesmo como "um bando de colonos", e esse lugar vai ficando pequeno diante o seu desenvolvimento, então ele se encolhe, se torna um alguém solitário e alheio as festividades da cidade. O filme não tem o intuito de explicar, tudo é muito subjetivo. A figura misteriosa que se assemelha ao Dylan retorna à cidade depois de um acontecimento trágico, e isso traz ao garoto novas descobertas.

A fotografia é de encher os olhos e a trilha sonora composta por Nelo Johann é espetacular, deveras um filme nacional bem diferente e ousado. Os personagens são densos, especialmente o protagonista, que tem uma tendência suicida, porém o entendimento é difícil, a mim pareceu que Jingle-Jangle, a garota da internet, era irmã de seu único amigo, e que o homem misterioso pulou com ela da ponte, mas sobreviveu, e então depois de um tempo regressou a cidade trazendo lembranças das quais Mr. Tambourine Man pegou para si. Há momentos em que o filme se torna uma viagem, pois não dá pra saber se o que vemos é real, virtual, imaginação ou lembranças.

Gostei da naturalidade dos personagens, o sotaque e o aspecto regionalista, não é um filme fácil de digerir, como disse é repleto de subjetividades, mas interessantíssimo em todo seu contexto. Aborda o tema inadaptação na adolescência de uma forma completamente diferente da que estamos acostumados a ver no cinema brasileiro. 
Encontrar filmes como "Os Famosos e os Duendes da Morte" é um enorme respiro para quem gosta de cinema nacional. 

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Helen / As Faces de Helen

"Helen" ou "As Faces de Helen" é um filme denso que retrata a depressão exatamente como ela é: uma doença. Muitas pessoas não entendem e associam com a tristeza, mas a verdade é que está muito além de um sentimento. A depressão é um distúrbio psiquiátrico que necessita ser tratado, neste filme a doença é destrinchada e mostrada em seus vários estágios. Helen (Ashley Judd) é uma mulher bem-sucedida que tem um casamento feliz e um bom relacionamento com a filha. Porém, existe algo que ela tenta esconder: sua bipolaridade, que vem à tona em um surto devastador, mudando a forma de ver o mundo. Agora, cabe à sua família e amigos mostrar a ela que a vida continua bela. O quandro depressivo de Helen vai aumentando e junto vem os pensamentos suicidas desencadeado pelo uso de antidepressivos, o marido não sabendo mais como lidar com a situação dentro de casa decide interná-la, e aí acaba descobrindo que Helen já havia apresentado um episódio anterior no período pós-parto de sua enteada.
Helen é uma talentosa professora de música e aos poucos vai perdendo a vontade de viver, difícil compreender as causas, pois sua vida é praticamente perfeita, por isso a narrativa do filme faz questão de explicar que depressão é doença e é necessário tratamento. A sua família sofre junto e tenta ajudá-la, mas ninguém é capaz de lidar com sua dor, apenas uma jovem estudante que conhece muito bem o estado depressivo. Essa garota tem papel fundamental nesse período em que Helen está passando. Helen chega abandonar seu lar por pensar que é melhor o afastamento, daí por diante passa a viver com Mathilda, cuja vida é rodeada de sofrimento. Em dado momento o marido transtornado pergunta para Helen: "O que essa garota tem de mais para você escolher ficar com ela?", e então Helen diz: "Ela não me pergunta como me sinto, ela sabe". É preciso passar por isso para saber exatamente o quão dilacerante é estar neste estado incapacitante.
O filme segue num tom sério, as cenas são todas trabalhadas nas emoções. Ashley Judd está perfeita em todas suas nuances. O interessante é que o marido não a deixa mesmo que não entenda o que se passa com ela, quando Helen se afasta ele deixa claro que a ama e a quer por perto, e isso nunca irá mudar. Muito bonito também a relação que ele tem com sua enteada, sempre sincero expondo o que acontece, o que acaba enfurecendo ainda mais Helen.

De todos os filmes que abordam o tema depressão este é o que chega mais próximo da realidade, desmistifica várias coisas, além do tratamento de choque que é rodeado de tabus. É possível um recomeço, mas é necessário um clique para que desperte algo na consciência, no caso de Helen foi sua filha ter ido atrás dela, e também o desfecho trágico de Mathilda. Existem vários tipos de depressão, Helen pensava na morte constantemente, já sua amiga queria viver, se apegava a meros detalhes, mas quando viu que a realidade em que se encontrava não mudaria não conseguiu suportar. Essa parte retrata aquele dito que quem quer se matar não fica falando, vai lá e faz.
O filme tem um roteiro maravilhoso, atuações impecáveis e é extremamente válido para tirar dúvidas que acercam esta doença. Interessante também por retratar tanto o lado da família como da pessoa doente, imagine o como é difícil para quem convive entender o que passa na mente de alguém totalmente desestabilizado, necessita-se de muita paciência e amor.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Dorfpunks

Dirigido por Lars Jessen o filme é inspirado no livro homônimo do músico Rocko Schamoni, que conta sobre sua juventude e as influências do movimento punk que moldaram sua personalidade.
É o verão do ano de 1984. O jovem Malte Ahrens, conhecido como Roddy Dangerblood, mora com os pais em uma área montanhosa cercada de lagos e florestas na cidade de Schleswig-Holstein Schmalenstedt, no norte da Alemanha. Ele acabou de descobrir o punk, gênero musical que chegou com certo atraso à região. Além de ouvir punk e andar pelas florestas bebendo e conversando sobre música, envolve-se em confusões com outros garotos que vivem por ali, o que é visto com profunda desaprovação pelos seus pais. Mas quando ele conhece seu vizinho Schwaster, finalmente consegue encontrar sua própria definição de punk e, com isso, um pouco de liberdade.
Os jovens são descontrolados, revoltados, cujas ideias são revolucionárias demais para o modo de vida que vivem, eles bebem, se drogam, vivem em festas e principalmente se juntam para conversar e trocar pensamentos na floresta. E foi numa dessas conversas na floresta que surgiu a vontade de criarem uma banda punk. Designando quem tocaria o quê começaram a se inspirar nas letras e harmonias, porém a banda era muito ruim, não ensaiavam constantemente, e quando foram participar de um concurso acabaram sendo vaiados. Os meninos tinham personalidades distintas. O anarquismo, o stalinismo, a vontade de mudar o sistema e contestar as massas permeiam o filme, mesmo que de maneira superficial. O modo que faziam para que os outros percebessem as suas revoltas era por meio das roupas, atitudes agressivas e o desregramento da vida. Só que a música começou a bater forte em um dos meninos, Roddy se apaixonou pela arte de tocar, empolgado ele queria ensaiar e se tornar membro de uma banda de verdade, mas isso ia contra as regras de um dos garotos que abominava o capitalismo e o mercado consumidor. E os outros não estavam nem aí. Sozinho e desiludido encontra no vizinho antes nem percebido a chance de poder traduzir a sua própria maneira de ser punk. A cultura punk é pouco descrita, na verdade o filme trata da instabilidade juvenil, o existencialismo que os cerca numa cidade que pouco se aproveita. Mostra a vontade de mudar, de ter liberdade e viver. Ser punk é primeiro revolucionar-se por dentro e depois gritar para todos: eu sou assim mesmo, e daí? Cecil von Renner traz muito carisma ao seu personagem e pontua bem quando começa a mudança, a revolução que acontece em si mesmo. O filme é a memória de um tempo selvagem, da desilusão e da euforia da juventude, essa que tem diminuído com o passar dos anos. As pessoas não contestam, não questionam, apenas vivem em seus mundinhos confortáveis.

O punk simboliza a liberdade, o bater das asas ao dizer que algo não está certo, colocar o pensamento para fora, buscando o melhor e uma mudança drástica. A trilha sonora marca de maneira fantástica a história, principalmente quando Roddy se deslumbra com as dicas musicais do dono de um bar. 
A contestação é a alma dos punks, a liberdade individual, a manifestação contra a hipocrisia, os privilégios, a sociedade conformista e as desigualdades sociais. Para quem tem esse espírito "Dorfpunks" é uma ótima sugestão, mesmo que o filme trate o assunto de maneira leve.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

A Criada (La Nana)

O filme chileno "La Nana" (2009) do diretor Sebastián Silva traz a história de Raquel, que trabalha há 23 anos como criada na casa dos Valdês, uma família de classe média alta de Santiago. Ela não possui amigos e destina pouco tempo de seus dias atarefados para falar com a mãe que mora longe. Raquel acha mesmo que é da família e até os Valdês chegam a brincar com o fato. Mas por mais que a brincadeira pareça divertida, a verdade é que Raquel não é um membro desta família e quando tenta o ser sem pudores, os mundos díspares entram em choque. Pilar, a patroa, não tem coragem de despedir Raquel, ela parece ter medo de enxergar a perturbação mental evidente de sua criada e tenta sucessivamente arrumar empregadas com quem Raquel possa dividir o trabalho. Pilar teima em achar que o comportamento estranho da empregada é apenas o cansaço.
Raquel é quem dá as cartas para os filhos de Pilar, eles a obedecem e tem muito carinho por ela, a não ser a filha mais velha que acha que a empregada implica demais. Pilar contrata uma moça para dividir as tarefas, mas Raquel é antipática e faz de tudo para que a moça vá embora, e é dessa maneira que prossegue o filme, entre as tramóias de Raquel para que as ajudantes não persistam no emprego. Mas o fato é que Raquel realmente está doente e necessita de ajuda, e isso muda quando desmaia e precisa ficar de repouso, então a patroa contrata uma mulher para ficar no lugar de Raquel, e a partir daí acabamos por conhecer um pouco mais dessa mulher tão retraída e fechada em si mesma.
Catalina Saavedra como Raquel nos mostra o quanto uma empregada se torna dependente de seu patrão, depois de tantos anos dando seu empenho, compartilhando o dia a dia, é inevitável que esta se torne um membro da família. O que acontece com Raquel é que ela é uma pessoa sozinha, não tem nada além do trabalho, por isso sua situação psicológica não é das melhores, ela sente ciúmes dos filhos da patroa, sente medo de perdê-los. Ela nos irrita inicialmente, mas com o desenrolar nos aproximamos do ser humano, e de certa forma nos encantamos com sua inocência.
Muitas crianças crescem sob os cuidados de babás e as têm como mães, já que muitas mulheres trabalham e têm tarefas diferenciadas, de qualquer forma esta mulher se torna algo muito importante querendo ou não, ela está criando, educando, brincando, arrumando a casa, cozinhando. Como não valorizar esta pessoa? Muitos veem isso apenas como uma função, como uma criada, a sua profissão é essa, e portanto, é uma obrigação, mas esquecem do aspecto humano e da rotina diária que se cria.

No filme Raquel começa a se descobrir fora daquela família quando vai passar o natal na casa dos parentes de sua ajudante, esta que a conquistou aos poucos com sua personalidade cativante e espontânea, muito esperta ela encontrou o ponto de Raquel. Nessa viagem ela enxerga um mundo exterior além daquele que vive todos os dias, em que consiste em acordar e já começar a arrumar. Na verdade o que ela precisava era uma faxina interna, a mudança de Raquel não é brusca, acontece sutilmente. Ao final a vemos indo correr após o expediente, em que vagarosamente vai se soltando, percebemos que é o início de uma liberdade interna, mesmo que não mude nada dentro de seu cotidiano.
O filme tem um toque de humor, mesmo que as situações não sejam necessariamente feitas para rir, Raquel apenas com o olhar nos diz muito, há muita tensão nas cenas e seu resgate pela humanidade no fim é realmente muito bonito. É uma homenagem para as empregadas domésticas que geralmente nem são lembradas, mas que são necessárias no cotidiano de muitas famílias, aquelas que trabalham há anos em apenas uma casa, se dedicando e que acabam perdendo muito de suas vidas e até se esquecem de si mesmas.

Observar o ser humano que acha que pode se sentir superior e tratar as pessoas da maneira que quiser só porque tem dinheiro, chega a ser constrangedor e ridículo. No filme vemos a família tratando bem Raquel, mas há uma certa hipocrisia nisso tudo, pois a vontade verdadeira deles é despedi-la.
"A Criada" é um filme lento, com situações parecidas, mas completamente válido em todo seu contexto.