sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Melhores Álbuns 2018

Segue a lista dos melhores álbuns do ano segundo o meu gosto pessoal, a maioria foi descoberto durante esse ano, outros são artistas que acompanho. Confira.

11- Jack White - Boarding House Reach (EUA) Rock, Blues Rock, Folk Rock
Boarding House Reach dividiu opiniões, particularmente adorei sua confusão, diferenciado utiliza-se de vários efeitos digitais para conceber estranhamento em suas faixas, ousado e inventivo passa longe da sonoridade do começo de sua carreira com o The White Stripes, experimental e moderno carrega o rock, o blues, mas também influências de hip hop. Um caos que mescla o retrô e o moderno de maneira peculiar e que só poderia sair da mente visionária de White. Confira.

10- The Sound Reasons - Walk With My Shadow (EUA) Garage rock, Power Pop
Delícia de álbum, são dez faixas rápidas com batidas e guitarras marcantes, um pouco de psicodelia e atmosfera sessentista, uma joia que merece ser descoberta. Difícil escolher apenas uma música, mas deixo aqui a segunda faixa "Love"

09- Pushy - Hard Wish (EUA) Hard Rock, Heavy Rock
Début da banda Pushy, o disco evoca com perfeição a atmosfera setentista, as músicas parecem clássicos consagrados, são oito faixas descontraídas, vibrantes e marcantes. Ótima estreia e mais uma banda que precisa ser descoberta, resgata o amado rock'n roll, mas mesmo assim consegue ter sua personalidade própria. Confira.

08- The Northern Rocket - Homemade (Espanha) Hard Rock
A estreia da banda espanhola Northern Rocket aconteceu no ano passado, mas só a conheci em 2018, por isso faço questão de colocá-la na lista, seu hard rock setentista e stoner com riffs potentes têm presença e merecem reconhecimento por acender a chama do rock'n roll. 

07- Cedric Burnside - Benton County Relic (EUA) Blues
Cedric Burnside é neto da lenda do blues do norte do Mississippi, R.L Burnside, então seu som tem raízes fortíssimas, mas também uma sensibilidade ímpar em colocar influências contemporâneas, ele imprime personalidade com sua bela voz que possui um tom suave mesmo tendo potência. É um álbum revigorante de blues! Confira.

06- Fantastic Negrito - Please Don't Be Dead (EUA) Rock, Blues
Fantastic Negrito tem uma baita história de vida e é um artista espetacular, sua música é rasgante e forte, nesse novo álbum mais uma vez se mostra consciente com uma reflexão muito além sobre a situação dos Estados Unidos, e ele o faz de maneira esplêndida fundindo gêneros, como blues, rock, funk, r&b. Confira.

05- Black Joe Lewis & The Honeybears - The Difference Between Me & You  (EUA) Rock, Blues, Funk, Soul
É um álbum apaixonante, vivo e bastante sexy, as melodias passeiam deliciosamente pelo blues, o rock e o funk e o vocal enérgico de Lewis é fascinante, outro artista que reaviva o blues e o rock com originalidade e intensidade. Confira.

04- Evil Knievel – Evil Knievel (Itália) Hard Rock, Garage Rock
Álbum de estreia da banda italiana Evil Knievel e já de primeira mandam uma sonzeira excepcional, são nove faixas explosivas com ares psicodélicos e muita atitude. Confira.

03- Dead Can Dance - Dionysus (Austrália) Alternativa, World Music, Tribal Fusion, Dark Wave

O duo composto por Lisa Gerrard e Brendan Perry formado em 1981 surge com o nono  álbum, um primoroso registro inspirados pelas tradições folk europeias, não só em termos musicais, mas também religiosos e espirituais, Dionysus, é uma jornada que leva à floresta e aos ritos que são praticados até hoje. O álbum consiste em dois atos e sete momentos que representam as diferentes facetas do mito de Dionísio e seu culto. Apesar de ser inspirado pela história de Dionísio, a arte da capa traz o desenho de uma máscara feita por huichóis que habitam na Sierra Madre Ocidental, no México. Confira.

02- Carach Angren - Dance And Laugh Amongst The Rotten (Holanda) Black Metal Sinfônico
Tem algo muito particular e original no estilo da banda, o horror e o obscuro é fascinante e seu modo teatral particularmente me agrada, a vibe se torna até divertida, é um álbum dinâmico, rápido e afiado, grandes arranjos musicais, além de seu tom progressivo, certamente dentro do cenário do Black Metal a banda se destaca e esse prazeroso álbum demonstra o movimento e a criatividade. Dennis Droomers com suas variáveis de gutural e vocalizações é um show a parte. O álbum é de 2017, mas mesmo assim tá valendo. Confira.

01- Kovacs - Cheap Smell (Holanda) Soul, Jazz
Segundo álbum da holandesa Kovacs, Cheap Smell é um deleite, canções emocionais, melodias fortes, voz penetrante, um registro pessoal em que ela canta sobre sexo, relacionamentos amorosos, perdas e vícios. Uma grande cantora e um grande álbum. Confira.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Em Chamas/Burning (Beoning)

"Em Chamas" (2018) dirigido por Lee Chang-dong (Poesia - 2010) é um thriller dramático metafórico que perturba e encanta, uma linda e profunda obra baseada num conto de Murakami. A narrativa é permeada pelo espírito literário de Faulkner, que inclusive tem um conto chamado "Barn Burning" e o personagem Jong-soo reflete essa presença. É um filme marcante, original e que trabalha a metáfora brilhantemente. 
Durante um dia normal de trabalho como entregador, Jong-soo (Yoo Ah-In) reencontra Hae-mi (Jeon Jong-seo), uma antiga amiga que vivia no mesmo bairro que ele. A jovem está com uma viagem marcada para o exterior e pede para Jong-soo cuidar de seu gato de estimação enquanto está longe. Hae-mi volta para casa na companhia de Ben (Steven Yeun), um jovem misterioso que conheceu na África. No entanto, o forasteiro tem um hobby peculiar, que está prestes a ser revelado aos amigos.
Jong-soo é um rapaz que está sem rumo, se formou em escrita criativa, mas trabalha como entregador, está de volta para cuidar da vaca em sua antiga casa porque seu pai foi preso, ele está numa situação de decadência e aos poucos o conhecemos melhor e criamos empatia, num dia comum Hae-mi, uma antiga amiga o reconhece e vai puxar assunto, pelo que parece ele não se lembra de muita coisa e os dois passam o dia juntos, ela diz que viajará para África para conhecer o "grande faminto" e pede para que Jong-soo alimente seu gato, então ela parte em busca de respostas para o significado da vida. Ela é uma incógnita e na maior parte do tempo nos perguntamos se as histórias que conta aconteceram ou não. Jong-soo vai todos os dias ao apartamento alimentar o gato que nunca aparece e se masturba olhando o horizonte. Quando Hae-mi retorna com Ben, um jovem rico e misterioso o mundo de Jong-soo começa a mudar. O estranho triângulo se forma e Jong-soo fica curioso e com ciúmes, pois não sabe que tipo de relação Hae-mi tem com Ben, e ele próprio nutre um fascínio peculiar pelo rapaz, já que não entende o como ficou tão rico sendo tão jovem, até o compara com Gatsby, personagem do clássico de Oscar Wilde. Entre jantares e conversas o suspense vai se formando e um emaranhado de questionamentos surgem, metáforas são postas como pistas, mas nada é definitivo.
Impressionante como o filme prende a atenção e somos absorvidos por suas imagens, os personagens crescem e por mais que seja uma narrativa longa o seu desenvolvimento é inteligente e extremamente original. 

Ben destoa da vida dos dois amigos, o abismo social é grande e Jong-soo não entende ou tem ciúme de sua aproximação, ele observa e desconfia, há um misto de sentimentos entre os três personagens, em alguns momentos Ben olha para Hae-mi como se a presença dela entre seus amigos ricos fosse meramente entretenimento, como expondo um animal, Jong-soo permanece calado e vai construindo suas percepções. Quando eles se juntam em sua casa e fumam maconha e daí surge a cena mais lírica do filme protagonizada por Hae-mi dançando em direção ao pôr do sol, os dois então conversam e Ben termina revelando seu hobby, de colocar fogo em estufas, um momento que deixa o espectador perplexo e que incute ainda mais questionamentos. Depois disso Jong-soo fica irritado com Hae-mi e a chama de prostituta por ter tirado a roupa enquanto dançava e aí nunca mais a encontra, ela simplesmente desaparece, isso faz com que fique cada vez mais obcecado com Ben e o persiga para conseguir encontrar pistas, já que ele todos os dias conferia as estufas e nenhuma foi realmente queimada, o que conclui que as falas de Ben se referia a outra coisa. 

As interpretações são maravilhosas, Yoo Ah-In como Jong-soo, um jovem desinteressante, entediado e sem perspectivas que se vê de repente envolvido por Hae-mi, vivida por Jeon Jong-seo, uma moça sonhadora e que se mostra uma incógnita por nunca sabermos se realmente fala a verdade, e Ben vivido notavelmente por Steven Yeun - o Glenn do The Walking Dead - que se mostra superior e brinca com os dois de forma provocativa.
"Em Chamas" é um filme intrigante e fascinante todo enredado em metáforas e ambiguidades, as respostas não são importantes e sim as percepções que suscita a cada espectador, uma obra rica narrativamente e belíssima visualmente. Certamente um dos melhores do ano!

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

O Grande Bazar

"O Grande Bazar" (2006) dirigido por Licínio Azevedo (Comboio de Sal e Açúcar - 2016) exibe com muita pureza a realidade de um garoto pobre no Moçambique. Aos olhos acostumados com estéticas rebuscadas pode soar um tanto incômodo, mas a beleza está justamente na simplicidade de sua composição e história. 
O filme centra-se na figura de Paíto, um moçambicano de 12 anos que, após ter sido roubado por um bando de rapazes, decide não voltar para casa enquanto não recuperar o que perdeu. Paíto passa a viver num mercado da capital moçambicana onde conhece Xano, um pequeno ladrão com o qual forja amizade e partilha aventuras. Vendedores, clientes, ladrões e a vida insólita do bazar constituem o pano de fundo. Pelos olhos do jovem Paíto percebemos bem de perto o que significa (sobre)viver numa cidade no sul de África. O filme aprecia com vagar ambientes e cenas comovedoras, transmitindo um olhar sem disfarce sobre o cotidiano.
O recorte social é sincero e em qualquer parte do mundo em que a miséria impera a criatividade em se ganhar dinheiro surge, claro que há a parte que prefere roubar, mas nosso pequeno protagonista faz parte daquela que se vira como dá, cria um jeito aqui e ali, ele vende na porta de sua casa uma espécie de biscoito feito de farinha de trigo, sua mãe pede que ele vá comprar mais, só que chegando lá a farinha acabou e precisa esperar, vendo o pessoal indo comprar cigarro se anima e compra com o dinheiro da farinha um maço e vende os cigarros separadamente a fim de dobrar a quantia que tinha, mas é pego desprevenido por uma gangue local que a maioria teme, sem saber o que fazer e com medo de voltar para casa pega o trem e desce na capital, mais precisamente no grande mercado, lá conhece Xano, um garoto praticamente abandonado que comete pequenos delitos, que no caso Paíto não gosta, mas acabam se ajudando e formando um laço de amizade, além dele conhece um fotógrafo que possui em seu dedo mindinho uma unha com um buraco do qual faz o seu foco e também um vendedor de sapatos que sempre divide sua comida com ele. Com leveza e bom humor seguimos esses meninos pelo grande bazar a tentar ganhar algumas moedas, seja ajudando os turistas ou criando novos meios que agucem a clientela, Paíto é observador, muito simpático e detém grande criatividade, ao ver o preço do alho ao invés de receber uma moeda pelo serviço prestado pede uma cabeça de alho e assim vende os dentes separadamente na feira. São jeitinhos que ele encontra para poder voltar pra casa com a farinha, mas toda vez acontece algo ruim ou é roubado. Nisso a amizade ganha formas ao mesmo tempo em que não concordam, realmente os meninos encantam pela espontaneidade em frente a câmera, eles estão vivendo suas próprias vidas, a câmera passeia pelos cantos do bazar e retrata um pouco dessa realidade pobre e dessas pessoas que criativamente se viram para ganhar dinheiro.

É um filme curto, uma média-metragem na verdade, e retrata os desafios cotidianos e a capacidade das pessoas ultrapassarem desafios para a própria sobrevivência, se por um lado há uma gangue denominada "ninjas" que roubam alimentos, dinheiro, ameaçam e até batem nos pequenos, por outro lado Paíto mantém sua ética e ingenuidade, para ele o certo é voltar para casa apenas quando conseguir dinheiro e comprar a farinha pedida pela mãe. Esses dias perambulando pelo mercado e enfrentando todo tipo de adversidade termina por ser um degrau a mais para sua maturidade e na amizade construída obter seu reconhecimento. Lindo o que o amigo faz por ele ao fim.

Paíto é o retrato sincero da luta pela sobrevivência, de se manter forte perante tantas coisas tristes e traiçoeiras, seu sorriso em conseguir seu próprio negócio fecha o filme com esperança, é um tanto bem-humorado, por exemplo os objetos que se vendem na feira, guarda-chuva com poucos furos ou panela de pressão sem tampa, e é justamente dessa forma leve que o diretor constrói e demonstra a vulnerabilidade e a desigualdade social na sociedade moçambicana. 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

A Costureira de Sonhos (Sir)

"A Costureira de Sonhos" (2018) dirigido por Rohena Gera é um filme indiano agridoce que retrata os entraves da cultura para uma mulher que corre atrás de seus desejos e sonha em se tornar pelo menos um pouco livre, o roteiro é leve, inteligente e não cai em clichês, tudo acontece de forma progressiva e assim nos dá tempo para conhecer cada personagem e entendê-los, um olhar feminino sobre a Índia contemporânea e as fortes e corajosas mulheres que se arriscam na cidade grande mesmo tendo dificuldades por conta da origem e posição social. Encanta pela beleza das cores, dos sentimentos que se misturam e, principalmente, pela fascinante interpretação de Tillotama Shome.
Ratna (Tillotama Shome) trabalha como empregada doméstica para Ashwin (Vivek Gomber), um homem rico que parece ter tudo, porém vive desesperançoso e perdido pela vida. Enquanto isso, Ratna, que parece ter nada, vive a vida determinada a alcançar seus sonhos. 
Acompanhamos tudo sob o olhar de Ratna, uma jovem viúva que trabalha de doméstica em Mumbai, sua vida é restrita devido as leis para as viúvas, mas mesmo assim sai de sua aldeia para ganhar dinheiro e ajudar sua irmã a se formar na faculdade, no início a vemos arrumando as suas malas e voltando às pressas para a casa do patrão, o casamento não ocorreu, pois ele não conseguiu perdoar a traição da sua companheira, desolado e sem perspectiva Ashwin passa seus dias lamentando o ocorrido com amigos, e Ratna por sua vez, o tratando como um rei, ela lhe serve com muito esmero e se preocupa com seu estado emocional, é dedicada e não se deixa abater por seu trabalho excessivo, até porque tem a vontade a impulsionando, primeiro em tirar sua irmã da aldeia dando a oportunidade de estudar e segundo para se tornar design de moda. Os empecilhos são inúmeros, a sua posição social é o maior e parece que por conta disso nunca vai sair do lugar, o sistema de castas na Índia é triste e realmente as pessoas não se misturam, Ratna segue trabalhando lá depois do ocorrido com o casamento e devagar a relação tímida vai ganhando contornos de amizade, um diálogo aqui, um gesto afetuoso ali, Ashwin percebe o como Ratna é espirituosa e o esforço que faz para realizar seus desejos, além de confortá-lo espontaneamente com belas palavras quando ninguém o fez, assim ele vai a notando e de certa forma uma relação se constrói, um carinho e um sentimento de amor cresce, pode ser que Ashwin abalado tenha se apegado a figura protetora de Ratna e também por admirá-la, o que não deixa de ser amor.

A simplicidade comanda a trama, somos absorvidos completamente pela rotina de Ratna, que está sempre cozinhando, limpando e servindo o "Sir", ouvimos o tempo todo ela o chamando assim e até para fazer o curso de costura necessita da autorização, ela aceita ser aprendiz de um alfaiate, mas acaba sendo explorada pelo comerciante e o aprendizado não acontece, decepcionada faz seu trabalho na casa mais calada e Ashwin percebe, nesse momento já há uma sintonia bonita entre eles, mas não é forçada ou prevista. Outro ponto da trama é a amizade de Ratna com outra doméstica, elas se apoiam e ali vemos uma interação mais tranquila, pois estão entre iguais, o que separa Ashwin e Ratna é uma imensa barreira social e que devido ao sistema nunca será transposta. Há momentos bem ternos e emocionantes, percebe-se a dificuldade no semblante deles e o mais bonito é que o egoísmo é deixado de lado. 

"A Costureira de Sonhos" é singelo e capta a nossa atenção, o aprofundamento nos personagens, na cultura e nas diferenças entre os modos de vida nas vilas e cidade grande, todo o funcionamento do machismo em relação à mulher, desde o casamento como negócio até as restrições quando se torna viúva com seus direitos tolhidos e sendo praticamento invisível. Muito importante retratar que por mais empecilhos a mulher pode ir atrás de seus sonhos nessa sociedade, Ratna foi em busca disso e jamais se abateu por estar ali servindo, ela sabe de suas necessidades e compreende sua posição, ganhar seu dinheiro e estar no curso de costura é uma grande porta se abrindo. Como Ashwin diz em determinado momento, Ratna é audaciosa, e é por essa e outras características que sua personagem encanta e acaba criando uma consciência social no espectador.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Hagazussa - A Heathen's Curse (Hagazussa)

"Hagazussa" (2017) dirigido pelo estreante Lukas Feigelfeld é um filme austríaco primoroso de atmosfera sombria, uma experiência intrigante e hipnótica, sua lentidão e diálogos escassos geram dúvidas, perturbam e nos faz imergir no ambiente, um trabalho excepcional de arte que invoca a idade média com toda a sua obscuridade e superstições.
A lenda da jovem órfã Albrun e sua luta para preservar sua sanidade em um período no qual existe uma linha muito tênue entre magia, fé e loucura; e a população de zonas rurais é assombrada por crenças pagãs de bruxas e espíritos da natureza. O inverno frio estende-se pelos Alpes do século XV. Uma jovem pastora vive com a sua mãe (Claudia Martini) numa cabana no meio dos bosques. Quando, certo dia, a mãe adoece misteriosamente e morre, Albrun fica sozinha e profundamente traumatizada. 20 anos passa e, já depois de se tornar ela própria mãe, Albrun (Aleksandra Cwen) começa a pressentir uma presença negra na floresta. Numa espécie de delírio psicótico, as fronteiras entre a realidade e o pesadelo começam a fundir-se, à medida que ela é novamente confrontada com a morte de sua mãe e o mal que existe dentro de si mesma.
O filme tem um poder de absorção maravilhoso, a cada cena e a cada acontecimento mergulhamos mais e mais, certamente uma obra de terror não convencional, sua atmosfera é o principal e também não é somente um filme de bruxa, tudo é muito ambíguo. Albrun vive com a mãe em meio a floresta, sozinhas lidam com os vizinhos que as atacam e os mistérios que as cercam por serem denominadas bruxas, o local frio e vazio rodeado pelos alpes faz toda a diferença para certas coisas serem tomadas como reais, como superstições, espíritos da natureza e bruxaria. Um dia sem mais nem menos a mãe de Albrun adoece e ela precisa cuidar dela, a relação é estranha e quando de fato está para morrer há uma cena que retrata um abuso, a menina teve sua primeira menstruação e a mãe sente o cheiro do sangue e num acesso de prazer e fúria sai e cai na floresta, há muitos simbolismos e é preciso estar atento a cada detalhe da trama, realmente não é um filme que diz sobre paganismo ou satanismo de forma óbvia, suas camadas são complexas, a fragilidade da linha que separa fé e magia é imensa e as crenças dominam a vida das pessoas. Depois da morte da mãe se passam vinte anos e Albrun está com um bebê para cuidar e sozinha lida com as intempéries da natureza, mas ao contrário da mãe quer se socializar, mesmo que a olhem diferente por não seguir as regras, como ir à igreja e casar, até que começa a manter uma relação de amizade com uma mulher que por curiosidade sobre sua vida se aproxima, Albrun é quieta e passa seus dias cuidando das cabras e da criança, essa mulher vai até sua casa e diz que o padre quer vê-la. Albrun vai e depois dele dizer coisas sobre seu modo de vida e o como isso é danoso e enlouquecedor lhe dá o crânio de sua mãe marcado por desenhos de rosas ao redor.

Quando essa mulher vai visitá-la e percebe alguns símbolos, como o bode e o crânio tem a certeza de que é pagã, mais tarde ela comete um ato desprezível em que Albrun se converterá na mais pura dor e raiva. Quando algo é dito por inúmeras vezes se torna uma verdade, a população diz que quem está fora das regras consequentemente está adorando outras coisas, agindo com espíritos da natureza e, por isso, não merece estar entre eles. Albrun dentro desse contexto resolve libertar esse mal e a forma com que o filme expressa isso é de uma beleza e de um capricho que enche os olhos apesar de todo o desconforto e da aura carregada e obscura. 

A aceitação do desconhecido vem da superstição que todo o ambiente proporciona, a escura floresta, a ampla natureza, a solidão, as dificuldades em se prover, as pessoas que a tem como louca e bruxa, a repressão da igreja, uma vida castigada, e a idade média como ambientação só ajudou a criar esse panorama com mais veracidade, a ida dela para o lado do mal foi uma consequência de toda essa superstição e modo de vida que a rodeava, não tinha outro pensamento e escapatória. A intensidade dos vinte minutos finais em que alucinação, loucura e dor se misturam são incríveis e a trilha sonora tem grande importância para ditar nossas reações, provocando-nos e esmagando-nos. Muitas perguntas surgem, mas há muita liberdade de interpretação, é uma obra instigante que proporciona sentimentos diferentes em cada um que assiste.

O título, "Hagazussa", vem de uma antiga palavra alemã que derivou a palavra bruxa, que descreve uma entidade feminina que vive na fronteira entre civilização e natureza, dividido em quatro capítulos – Sombras, Cornos, Sangue, Fogo, muito tem sido comparado com "A Bruxa" - 2015, mas os elementos são outros, como se sustentar em sua atmosfera deixando de lado diálogos, retrata com perfeição o desconhecido, a solidão, a repressão religiosa, o preconceito contra aqueles que não seguem as mesmas regras; a loucura, a dor e o inferno que isso tudo pode ocasionar.
Um belo, hipnótico e provocante filme de horror! 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Eutanásia (Armomurhaaja)

"Eutanásia" (2017) dirigido por Teemu Nikki (Lovemilla - 2015) é um filme finlandês não só perturbador pelo que aborda, a eutanásia em animais, mas também pelas ações dos seus personagens e, principalmente, pelo seu tom com um humor obscuro e incômodo. Aos mais sensíveis, assim como eu em relação ao assunto gera desconforto, mas não deixa de ser interessante e seu andamento vai modificando a maneira com que enxergamos o protagonista, reflexões acerca de justiça, carma, violência, solidão e a relação de humanos e animais surgem em doses bem amargas.
O ganha-pão de Veijo (Matti Onnismaa) é um bocado peculiar: em uma região pobre e insalubre, seu trabalho é executar animais de rua indesejáveis ou bichos de estimação cujos donos não conseguem custear mais os devidos cuidados. Contudo, o sigilo de sua rotina e de seus quase religiosos rituais de eutanásia são ameaçados quando ele conhece uma jovem enfermeira e um mecânico com inclinações neonazistas. Petri Kettu tem um problema com seu cachorro e tenta matá-lo, porém, não consegue e contrata Veijo para fazer o serviço. O único problema é que Veijo não mata cães saudáveis.
Antes de Veijo aceitar o trabalho precisa ter a certeza que o animal está sofrendo de alguma doença, ele faz tipo um raio-x no dono e o interpreta no mesmo momento em que entra em sua oficina, ele possui uma conexão intrigante com os animais e consegue entender como foi a estadia até ali com o seu dono, Veijo julga e então parte para a ação, claro que é triste ver essa situação, porém os humanos são egoístas e o filme faz questão de exemplificar de um jeito cru e simples. A história tem um peso, um drama duro e o tom um tanto singular de humor faz com que isso se amplifique e um certo negativismo impere diante do ser humano. 
Veijo é atormentado por seu passado e prefere agir conforme as suas próprias regras dentro de uma sociedade corrupta e desumana, é difícil ficar do seu lado, mas conforme o desenrolar percebemos que ele é o único que realmente pensa. Outro personagem que se sobressai nessa trama é Petri - interpretação potente de Jari Virman - ele é desprezível, insano, covarde e ignorante, está para ser aceito em um grupo neonazista e para isso precisa provar que possui realmente ódio dentro de si e cometer atos violentos, cansado de sua cadela por ela ser vira-lata decide por um fim nela, mas não consegue e a leva para Veijo, que identifica que está saudável, mas ainda sim fica com ela porque Petri certamente não é o dono ideal para uma cadela tão amável e companheira. 

Veijo sente aversão às pessoas e acredita no carma e que o sofrimento precisa ser bem administrado, quando alguém aparece para sacrificar seu animal ele fala exatamente o que a pessoa não quer ouvir nesse momento, traça o perfil e o como foi a vida daquele animal. Ele também se desentende com a veterinária que só está afim de dinheiro e nada faz para os que precisam. Muitas pessoas adotam e compram animais imaginando que eles os divertirão quando quiserem, que ficarão quietinhos quando quiserem, que preencherão algum tipo de deficiência emocional, esquecem-se de respeitar as necessidades da espécie e, principalmente, de não ignorá-los quando precisarem, é triste essa relação de tê-los como brinquedos e preenchedores de vazio. Veijo entende isso e não suporta o ser humano, toda vez que alguém vai apelar para ele de algum modo incute o sofrimento para que compreendam que para toda ação existem consequências. 

Outra personagem que ganha forma é a enfermeira Lotta (Hannamaija Nikander), que cuida do pai de Veijo, que para ele está cumprindo seu carma por algo ruim que fez no passado e então prefere vê-lo na cama do hospital num sofrimento agudo, Lotta se interessa por Veijo, sua forma de encarar as coisas e por estar ligado à morte a deixa confortável para que um fetiche seu venha à tona. A construção desse relacionamento é estranho, ela é mais uma pessoa solitária e perturbada que busca nesse fetiche uma maneira de se sentir viva. 
"Eutanásia" é brutal, mas também tem seu lado cômico, retrata atitudes repugnantes e relações doentias, o senso de moral do protagonista é questionável e a sensação que fica é de dor e desesperança. Particularmente o filme me atingiu, suas qualidades são inegáveis, mas foi certamente uma experiência conturbada.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Ciganos da Ciambra (A Ciambra)

"Ciganos da Ciambra" (2017) dirigido por Jonas Carpignano (Mediterranea - 2015) é um filme real e justamente por isso árduo, é o retrato da passagem da adolescência para a vida adulta de Pio, um garoto que vive numa comunidade cigana em Ciambra, na Calábria, sua família assim como tantas outras destituídas do espírito livre de outrora precisam sobreviver cometendo variados golpes e pequenos furtos, o pequeno Pio se espelha no irmão e sua família depende exclusivamente desses delitos, o retrato é extremamente atual, a crise social e política na Itália com os imigrantes, a invisibilidade dos grupos étnicos e a separação entre eles mesmos, como com os africanos. Marcante, observamos pessoas comuns driblando os obstáculos dentro de um mundo limitado e que ninguém parece querer enxergar.
Em uma pequena comunidade romana na Calábria, Pio Amato (Pio Amato), de 14 anos, está desesperado para crescer e se tornar um homem. Assim como seu irmão Cosimo (Damiano Amato), ele bebe, fuma e é um dos poucos a se infiltrar facilmente entre as facções da região, os italianos locais, os refugiados africanos e seus companheiros ciganos. Certo dia, seu irmão desaparece, fazendo com que Pio assuma seu lugar. Com uma função tão importante nas mãos, ele deve encarar uma escolha muito complicada.
Como feito em "Mediterranea" - filme anterior do diretor sobre a trilha percorrida por refugiados de Burkina Faso até a Itália - mescla ficção e realidade, os atores amadores se destacam tamanha potência em cena, Pio, o protagonista, é uma revelação, sua intensidade emociona e não desgrudamos o olhar dele, a ideia deste longa aconteceu quando o diretor teve o carro e equipamentos roubados durante uma outra produção e teve quer ir em Ciambra para negociar, assim conheceu a família Amato e resolveu retratar o ambiente.
Impressionante a força da figura de Pio, um menino que vive a perambular articulando meios de ganhar dinheiro para sua família, inicialmente ajuda seu irmão com roubos de carros, de cabos, etc. Depois que ele vai preso toma a frente e começa a furtar celulares, malas no trem e negociar os carros, as crianças se misturam no mundo dos adultos, fumam e entendem os problemas que enfrentam. A única relação de afeto que observamos é entre Pio e Ayiva (Koudous Seihon), um imigrante africano que sempre está à disposição para ajudá-lo e abraçá-lo, o elo fica mais forte depois que o irmão vai preso e Ayiva o auxilia na venda dos produtos roubados dentro da comunidade africana, então aí que Pio vai deixando o preconceito de lado e vê os seres humanos alegres e prestativos que ali habitam, Pio cria uma ligação com Ayiva, é a ele que sempre pede ajuda, mas quando o irmão sai da prisão e Pio acaba cometendo um grande erro, as coisas se tornam tensas e esse garoto precisa decidir entre ser aceito na sua própria comunidade, uma espécie de rito de passagem para se tornar homem, ou ficar do lado de Ayiva, seu  grande amigo, mas que não faz parte de sua comunidade. 

O menino que carregava sempre um semblante duro e intimidador percebe-se criança precisando de carinho, sua inocência se vai de vez e a entrada para o terrível mundo adulto acontece. Suas lágrimas escorrem diante da decisão que tomou e como dói assistir esse momento. Um filme que marca por seus personagens que estão interpretando a si mesmos, um trabalho excepcional que extraiu deles naturalidade e espontaneidade, a câmera capta a dor e a alegria em suas faces de forma singela, Pio e Koudous Seihon são os destaques, a amizade entre eles e a questão da escolha que precisa tomar para ser aceito novamente em sua família depois de um equívoco. Os olhos de Ayiva no instante em que Pio chora em seus braços é dilacerante.

Os ciganos sempre brigaram com o resto do mundo por irem contra as regras sociais e, por isso, estereotipados como ladrões, pelas circunstâncias a liberdade lhes foi tirada, há tantas barreiras e fronteiras no mundo de agora, e os africanos refugiados são relegados e seus destinos incertos, eles lutam por uma vida mais digna e sem violência. 
"Ciganos da Ciambra" retrata uma realidade desoladora e violenta, a linha que divide o certo e errado quando se está vivendo à margem na miséria extrema é bem tênue e não cabe julgamentos. 

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Culpa/The Guilty (Den Skyldige)

"Culpa" (2018) dirigido pelo estreante Gustav Mölle é um suspense policial dinamarquês de forte tensão, os nervos ficam à flor da pele e perdemos o fôlego juntamente com o protagonista, que é filmado com a câmera grudada em seu rosto por quase todo o filme, um excepcional trabalho de Jakob Cedergren.
O policial Asger Holm (Jakob Cedergren) está acostumado a trabalhar nas ruas de Copenhague, mas devido a um conflito ético no trabalho, é confinado à mesa de emergências. Encarregado de receber ligações e transmitir às delegacias responsáveis, ele é surpreendido pela chamada de uma mulher desesperada, tentando comunicar o seu sequestro sem chamar a atenção do sequestrador. Infelizmente, ela precisa desligar antes de ser descoberta, de modo que Asger dispõe de poucas informações para encontrá-la. Começa a corrida contra o relógio para descobrir onde ela está, para mobilizar os policiais mais próximos e salvar a vítima antes que uma tragédia aconteça.
Asger não gosta de apenas atender os telefonemas, mas devido seu comportamento foi colocado nesta posição, todos o olham com desconfiança e já de início percebemos ser impulsivo, ele tem uma certa ânsia em agir e quando recebe a ligação de uma mulher que finge estar falando com a filha, logo se dá conta que é um sequestro e articula meios para que sua vida seja poupada, ele passa a informação, mas não tem paciência com os protocolos e cada vez mais imerge no caso burlando regras e tomando a frente com decisões arriscadas. Tudo indica que ela está sendo sequestrada pelo ex-marido, as crianças estão sozinhas em casa, ele está levando a mulher para algum lugar em uma van e assim vamos construindo as imagens segundo o ponto de vista de Asger. Os planos são extremamente fechados, a maior parte do tempo a câmera está no rosto de Asger, nos colocando bem próximos de seus sentimentos e sua personalidade no trabalho, fixado neste caso não consegue atender mais ninguém e somente quer fazer justiça e libertar essa mulher, só que conforme o tempo passa vai tomando decisões equivocadas e autoritárias, ele passa por cima dos colegas e de todo o procedimento para tentar ao final se tornar um herói. As reviravoltas marcam a história, sentimentos como desespero, angústia, senso de justiça e culpa dão várias nuances e elevam o gênero suspense dando muito para o espectador refletir, outro ponto que faz o filme ser incrível é o como consegue nos levar junto de seu personagem, pois tudo que temos são os diálogos dos telefonemas.

Jakob Cedergren (Submarino - 2010, Faro - 2013) carrega o filme nas costas, é realmente brilhante, um personagem complexo, um homem que quer fazer a coisa certa, mas que por impulso acaba estragando tudo, cruza os limites éticos, não tem paciência com o sistema burocrático e lerdo da polícia. Sua teimosia em querer fazer do seu jeito e interferir sem saber exatamente o que se passa o prejudica, assim como o caso do qual está sendo julgado e é o motivo de estar atendendo os telefonemas na delegacia.

"Culpa" é um filme que mescla o drama e o suspense com impressionante rigor, surpreende por sua narrativa e seus desdobramentos, o clima claustrofóbico e tenso predomina e ainda trabalha bastante nossa imaginação, além de fazer refletir sobre as camadas e os dilemas que envolvem o sentimento de culpa e o de fazer justiça.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

3 Faces (Se Rokh)

"3 Faces" (2018) dirigido por Jafar Panahi (Táxi Teerã - 2015) é mais uma produção de resistência, Panahi como em "Taxi Teerã" registra a maior parte das imagens dentro do seu carro, a realidade e a ficção se confundem e mostra de maneira investigativa e emocional todo o conservadorismo do local. Proibido de filmar e sair do Irã desde 2010 injustamente por questões políticas, ele vai desafiando os obstáculos e contrabandeando seus filmes para a Europa com ajuda de amigos, ele denuncia sem ser explícito, levanta questões importantes sem necessariamente apontar e, por isso, merece todo o reconhecimento, é um cineasta sensível e lúcido, uma importante figura do cinema mundial. 
Uma famosa atriz iraniana (Behnaz Jafari) recebe um vídeo perturbador de uma garota implorando por ajuda para escapar de sua família conservadora. Ela então pede a seu amigo, o diretor Jafar Panahi, para descobrir se o vídeo é real ou uma manipulação. Juntos, eles seguem o caminho para a aldeia da menina nas remotas montanhas do norte, onde as tradições ancestrais continuam a ditar a vida local.
Jafar interpreta ele mesmo, simples e natural viaja com sua amiga, a atriz Behnaz Jafari, que também interpreta a si mesma, desnorteada pelo vídeo amador que recebeu de uma menina, Marziyeh, de uma aldeia nas montanhas, busca no diretor respostas, se foi editado ou se é verdadeiro. O filme começa exatamente mostrando o vídeo gravado pelo celular, onde a garota anda pelas cavernas da região dizendo sobre seu desejo de ser atriz, de estudar no conservatório em Teerã e o como a família a oprime, então diz que tentou falar com Behnaz inúmeras vezes sem obter nenhuma resposta e novamente pede o seu apoio, ao fim coloca uma corda no pescoço e o celular cai. O desespero de Behnaz a acompanha durante todo o difícil trajeto que faz com Panahi, que está sempre sereno e desconversando sobre seus supostos futuros filmes. O jogo entre o que é real e ficção é tão bem conduzido, não fica claro se Panahi armou tudo, o fato é que a câmera registra a aldeia e as pessoas que ali habitam de modo leve e até cômico, situações que poderiam soar desagradáveis por um outro ângulo acabam sendo simplórias. É um registro cru e naturalista, belo e emocional!

Nessa aldeia os pensamentos são restritos e patriarcalistas, as mulheres servem apenas para serviços domésticos, procriação e sempre se espera um bebê do sexo masculino, poucas são as meninas que estudam e possuem sonhos, Marziyeh não é bem vista por ser revoltada, não querer ficar ali, servir ao marido e apenas procriar, ela deseja ser atriz e passou no prestigiado conservatório em Teerã, porém sua família não aceita, principalmente seu irmão, que é ignorante, machista e grita o tempo todo sobre seu comportamento desrespeitoso. 
São colocados em tela três gerações, Marziyeh é o futuro, a quebra de regras, de que por mais afastada que a aldeia seja e de que as leis são feitas e mudadas pelos próprios homens do lugar, as ideias chegam, através das novelas e séries, que aliás todos assistem, inclusive quando Behnaz aparece todos a reconhecem e a tratam bem, ela é a segunda geração, a atriz que conseguiu a fama e viver seus próprios desejos, o que no caso a atriz da qual Marziyeh se refugia nem é mostrada, a da primeira geração - protagonista de filmes do período pré-revolução Islâmica - que sofreu por ser a pioneira ao querer seguir o ramo artístico, na aldeia ela é rejeitada e vista como louca. Se Behnaz está onde está é porque essa mulher teve resistência e lutou. 

"3 Faces" tem uma construção simples, mas rica em significados, é metalinguístico e humanista, Panahi observa a maior parte do tempo dentro de seu carro o rumo que a história vai tomando, as três mulheres é que discutem e arranjam as coisas. Por mais devagar que aconteça as mudanças, as transformações, não tem como barrá-las, por mais limitado e violento que seja o pensamento e o meio, a arte precisa seguir, pois através dela é que a maior parte dessas mudanças acontecem. 

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

A Balada de Buster Scruggs (The Ballad of Buster Scruggs)

"A Balada de Buster Scruggs" (2018) dirigido por Ethan Coen e Joel Coen (Inside Llewyn Davis - 2013, Ave, César! - 2016) é um filme marcante e que homenageia o clássico gênero faroeste com muito estilo, arrebatador e permeado por um humor negro somos absorvidos por seis contos fascinantes sobre o velho oeste.
Uma antologia em seis segmentos focada na fronteira americana. Acompanhando de foras da lei a colonizadores, até todo tipo de personalidade do velho oeste, essa série de histórias vai desde profundas reflexões até o mais completo absurdo. 
O filme é muito bem elaborado dando a cada história uma personalidade única com personagens fascinantes, além do belíssimo trabalho de fotografia e sua ótima trilha sonora, tudo encaixadinho e que reaviva o tão aclamado gênero faroeste. 
A narrativa baseia-se nas histórias de um livro do qual a câmera revela imergindo em suas páginas e imagens, a primeira história serve praticamente como uma introdução ao universo western, ao mesmo tempo em que também lembra que a identidade dos diretores está presente, o ousado cavaleiro quebra a quarta parede para nos mostrar de perto as suas destrezas em um tom bizarro carregado de humor negro embalado por canções originais típicas, a incrível interpretação de Tim Blake Nelson cativa e nos faz imergir e quando menos se espera termina, seu desfecho já denota que as características dos Coen vão adornar todos os contos por mais diferentes que sejam entre si e seus estilos sejam variados, há um tom tragicômico próprio deles, é uma boa pedida para quem é fã dos diretores e, claro, do gênero.
A segunda traz a história de um ladrão de bancos, vivido por James Franco, que ao tentar assaltar um banco acaba sendo pego de uma forma inesperada, ele se livra dessa, mas em compensação a má sorte anda ao seu lado, as reviravoltas são ótimas apesar de sua curta duração. O terceiro segmento tem um ar mais sombrio e um gosto amargo, dois artistas itinerantes, Liam Neeson como o chefe do negócio e Harry Melling interpretando um ingênuo homem deficiente que declama trechos da bíblia e da literatura inglesa, os trocados já não vêm diante de outras novidades artísticas e, por isso, um destino cruel se aproxima. Este não carrega nem uma ponta de humor sequer, talvez, surja apenas quando na apresentação as recitações não tenham fim, mas, do contrário, seu tom obscuro e completamente trágico esmaga nosso coração, o personagem de Liam Neeson é calado e vemos o medo que acompanha o rapaz. Por ter um ritmo mais lento e destacar outras emoções há uma quebra da ação, mas nada que prejudique, as histórias são ricas imageticamente e além de entreter traz reflexões acerca do ser humano, violência e morte. 

A quarta história retrata um velho viajante mineiro vivido pelo grandioso Tom Waits, andando pelas paragens intocadas do oeste americano em busca de ouro, eis que depois de muito labutar acaba encontrando, a paisagem salta aos olhos e seu tom de fábula cria um efeito genial, onde no fim mostra a efemeridade do homem em relação à natureza, o homem trabalha e trabalha ao ponto de quase enlouquecer e luta pelas suas conquistas para no fim nada adiantar, o que resta é uma trágica e cômica morte.
O quinto segmento é o mais longo e se inicia de forma até desinteressante, mas à medida que avança e as situações se apresentam termina por deixar o espectador em choque. De todas com certeza tem o melhor desfecho, ela acompanha uma comitiva pelo deserto com destino a Oregon, nela está Alice (Zoe Kazan), que viaja com seu irmão a negócios, só que depois que ele morre as incertezas a corroem, ela se aproxima de Billy Knapp (Bill Heck), um dos guias da caravana, que se apaixona, a pede em casamento e diz que acertará as dívidas que o irmão deixou e ainda lhe dará um lar, mas o perigo sempre está rondando e a falta de perspicácia da moça a faz tomar decisões um tanto trágicas. 

Para encerrar surge um conto de suspense em que a atmosfera de mistério invade uma carruagem que leva cinco pessoas diferentes entre si para um destino enigmático. Preconceitos e motivações são explorados em diálogos potentes, o trajeto vai ficando mais e mais sinistro à medida que os embates se tornam mais afiados, o cocheiro nunca para e os dois homens que acompanham os cinco passageiros revelam coisas que os perturbam. É interessante que nas seis histórias apesar de haver os elementos do clássico gênero também não deixa de subvertê-los dando aspectos e perspectivas novas.

"A Balada de Buster Scruggs" é um filme que homenageia o faroeste com suas histórias que passeiam por diferentes situações e estilos, um exemplar moderno rico em humor e beleza. Os Coen não decepcionam, sempre trazem roteiros inteligentes recheados com crueza e acidez, imaginação e metáforas sobre os dilemas existenciais.
Sem dúvidas se configura entre os melhores do ano! Disponível no catálogo da Netflix!