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sexta-feira, 17 de novembro de 2017

O Solitário Jim (Lonesome Jim)

"O Solitário Jim" (2005) dirigido pelo versátil ator Steve Buscemi, que também se sai maravilhosamente como diretor (Animal Factory - 2000), nos entrega um filme independente baseado no livro de James C. Strouse. A história é super singela, realista e disserta sobre frustrações, relações familiares, solidão e amor. 
Depois da frustrada tentativa de morar sozinho em Nova York, Jim (Casey Affleck) retorna à cidade natal, em Indiana, onde é forçado a voltar para a casa dos pais e dar de cara com a realidade que um dia o fez ir embora da cidade. Sua vida melhora um pouco quando conhece a enfermeira Anika (Liv Tyler) e seu filho. Jim, então, aprende lentamente como continuar seu caminho sem deixar todos para trás.
Jim retorna à casa de seus pais depois de se frustrar na cidade grande, sua postura niilista não ajuda na relação com os pais, tudo é muito estranho e forçado, ninguém é feliz naquela casa, mesmo a mãe o recebendo de braços abertos a situação é constrangedora, ele tem 29 anos e não conseguiu nada na vida, assim como seu irmão Tim (Kevin Corrigan) que também mora lá e sofre em se ver trabalhando na fábrica dos pais, ele tem duas filhas e treina um time de basquete de crianças que nunca pontua. O tom do filme é amargo, porém possui vários alívios cômicos, todos eles bem naturais e comuns. Jim é angustiado, nada o deixa animado, ele ama a sua família, mas não deseja estar perto deles, os seus sentimentos em relação a eles são contraditórios.
Vagando pela cidade de bar em bar, Jim conhece Anika, uma linda enfermeira que devagar vai trazendo cor a sua vida, ela também possui as suas tristezas e de pouquinho a pouquinho se apega a figura enigmática de Jim, que carrega em si a mesma aflição e desespero de grandes escritores, cujos livros são sobre gente triste com sonhos patéticos, como Virginia Woolf, Richard Yates, Burroughs, Sylvia Plath, Samuel Beckett, Dorothy Parker, Breece D'J Pancake e Hemingway. Ele tem essa alma inquieta e melancólica que busca e não compreende a tristeza que o consome, sente a insatisfação que a vida gera e as hipocrisias que a rodeia lhe dão ainda menos ânimo para seguir em frente, mas o fato dele não ter nada o faz persistir, na conversa que tem com o irmão sobre isso deixa claro que no lugar dele já teria se matado. A consequência desse diálogo se torna quase trágica.

O filme tem um tom pesaroso, o protagonista sempre está cabisbaixo refletindo sua vida, as suas frustrações, as dores que ele sente o espectador também sente, os dramas vividos por ele são tão humanos, tão comuns a qualquer pessoa, a difícil relação com a família, os sonhos quebrados, admitir que não há muito para si e enxergar o que já se tem. Jim está perdido e não tem perspectiva nenhuma, a volta à casa dos pais o faz se sentir ainda mais desolado, foi sua última alternativa simplesmente por não ter mais dinheiro. Mas, refletindo sobre tudo Jim sabe que foi muita inocência crer que os sonhos se realizam só porque se sonha e que ao aceitar as decepções as dores diminuem.

"O Solitário Jim" é um filme simples que abrange relacionamentos e mostra que nem sempre é preciso fugir para ter o que deseja, às vezes o que precisamos está perto e nem percebemos, damos as costas. Jim compreende que também precisa dar e não apenas receber amor, e é através de Anika e seu filho Ben que sente-se preenchido e por fim abre um sorriso sincero. Vale ressaltar a linda trilha sonora que acompanha Jim e suas descobertas existenciais.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

The King and the Clown (Wang-ui Namja)

"The King and the Clown" (2005) dirigido por Lee Jun-ik (Blades of Blood - 2010), um dos maiores sucessos de bilheteria na Coreia do Sul, é um filme elegante, sutil, porém ousado, e claro, belíssimo. Disserta sobre arte, amizade, amor, lealdade, loucura, poder e corrupção mesclando drama, comédia, ação, política e tragédia shakespeariana.
Baseado em fatos reais, a história se passa em plena dinastia Chosun – século 16, onde um grupo de artistas de rua, uma espécie de "trovadores", conseguem seu sustento entretendo as pessoas. Entre eles há um jovem, Gong Gil (Jun-ki Lee), cujos traços físicos e personalidade são extremamente femininos e por isso é vítima da luxúria de homens com poder. E por esse motivo seu grande amigo e protetor Jang Sang (Kam Woo-Sung), foge com ele para Seul. Ali conhecem mais três palhaços de rua e começam a satirizar o rei, até que um ministro vê e os leva presos ao palácio, sob pena de morte. Entretanto lhes é dado uma oportunidade: se com a sátira que faziam, conseguem fazer o rei sorrir, seriam libertados. Eles conseguem, mas o rei ordena que eles fiquem no palácio, para entretê-lo e cada vez mais o rei vai prestando atenção em Gong Gil.
Gong Gil e Jang-Sang  se conhecem desde crianças, são inseparáveis, existe nesta relação uma afetividade e lealdade ímpar, os dois seguem fazendo números artísticos pelas aldeias, até que resolvem satirizar o rei Yeonsan (Jin-yeong Jeong). Eles criticam a exploração e a corrupção da corte e ao chegar aos ouvidos do rei são sentenciados à morte, mas por sorte aceitam o desafio proposto, apresentar o show ao próprio rei, satirizá-lo e conseguir que ele ria disso. Gong Gil, Jang Sang e mais os três palhaços fazem o que podem, mas só cometem deslizes de tão nervosos, quem salva a pele de todos é o excêntrico Gong Gil, que faz uma piada safada com seu colega e arranca risadas do rei maluco. Livres da morte, mas presos no palácio aos desejos do rei, Gong Gil acaba agradando e se aproximando do rei graças as suas feições femininas e histórias engraçadas. Ele é requisitado todas as noites pelo rei, o que ocasiona ciúmes em Jang Sang, que com o passar dos dias deseja sair de lá. Mas Gong Gil também sente algum afeto pelo rei, um triângulo amoroso se ergue, mas de modo sensível e velado.

A trupe encena todos os podres que acontecem no palácio, assuntos tensos do qual o rei nem sabe, mas que preocupam a corte, são revelações que podem abrir os olhos do rei mimado, então Jang Sang receoso com a situação planeja fugir, só que Gong Gil resiste por sentir pena do rei e agora ter uma vida longe da miséria e violência, isso tudo abala Jang Sang. 
O filme traça a questão política da época magistralmente e traz o teatro como meio de evidenciar toda a mentira vivida dentro do reino e a calamidade em que o povo vivia, as encenações são primorosas, impossível não se encantar com os números. As atuações são sensíveis e gloriosas, a dupla Jun-ki Lee, que vive o andrógino Gong Gil e Kam Woo-sung como o amável Jang Sang passam todo o sentimento de amizade e lealdade com sutilezas e poesia. Destaque também para a forte atuação de Jin-yeong Jeong como o obcecado e louco rei Yeonsan.

"The King and the Clown" é visualmente deslumbrante, o figurino colorido e a ambientação fascinam, além de toda a teatralidade incorporada à história, a arte denunciando as falcatruas, revelando através do falso, a realidade. Uma obra bonita que mistura vários elementos, diverte, emociona, faz refletir e evidencia sentimentos puros com sensibilidade e originalidade. Filmaço!

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

O Pequeno Italiano (Italyanets)

"O Pequeno Italiano" dirigido por Andrey Kravchuk (Viking - 2016) é um conto emocionante sobre crianças abandonadas que habitam um orfanato na Rússia, e que por falta de recursos vendem elas a casais estrangeiros. É um retrato realista sobre a situação econômica e social do país pós-comunismo.
Vanya Solntsev (Kolya Spiridonov) é um garoto de 6 anos, que vive em um orfanato na Rússia. Como em breve será adotado por um casal de italianos ele ganhou o apelido de "pequeno italiano" entre os colegas de orfanato. Um dia Vanya vê uma jovem mulher chegar ao orfanato, buscando reaver o filho. Ele passa a sonhar que sua mãe também pode tentar buscá-lo algum dia e, desta forma, decide procurar por ela.
O filme esbarra no melodrama ao tratar do tema, mas é impossível não se emocionar, principalmente por saber que as crianças que atuam são órfãs de verdade. É uma história que comove por saber que essa realidade está longe de acabar. Vanya decididamente tem a chance de recomeçar a sua vida ao ser escolhido pelo casal de italianos, todos sentem inveja dele, mas depois que a mãe de seu amigo reaparece para ter seu filho de volta, começa a articular meios para saber quem é sua mãe e o que de fato aconteceu para que ele fosse parar no orfanato. Ele não quer que sua mãe caso apareça tenha o mesmo destino da mãe de seu amigo. Obstinadamente aprende a ler com a ajuda de uma menina mais velha, que se prostitui para dar dinheiro aos meninos mais velhos, daí então Vanya descobre sua origem e parte em busca de algo que não sabe se vai encontrar. Essa jornada não será nada fácil, pois os coordenadores do orfanato perseguem ele, dado que o negócio com os italianos corre risco de não acontecer, a adoção feita por estrangeiros é uma transação lucrativa para os coordenadores do orfanato, portanto farão de tudo para encontrar Vanya e garantir o dinheiro. 
A trajetória de Vanya é difícil e dolorosa, um menino sozinho se aventurando nas ruas de um local desconhecido, ao longo desse caminho encontra vários tipos de pessoas, aquelas que se preocupam, dão auxílio, outras que desprezam e acham que é um vândalo, e até outras crianças de rua que roubam o pouco que tem. Vanya é uma criança inocente, mas esperto e tem noção do perigo. A atuação de Kolya Spiridonov é linda e é impossível não sentir empatia pelo personagem, seu desejo de encontrar a mãe por vezes nos dá a sensação de que é uma opção errada, se ele perder a oportunidade da adoção sua vida será errante, como a dos meninos mais velhos que habitam o orfanato, mas no decorrer embarcamos junto a seu sonho, e nada mais belo do que seu sorriso ao final do longa.

"O Pequeno Italiano" é singelo, realista e mesmo tendo aspecto sombrio tem um tom esperançoso, a expressividade e dramaticidade das crianças impressiona, a sensibilidade e a segurança ao retratar a história faz toda a diferença para fugir de clichês que envolvem o tema. Algumas cenas ficam marcadas, principalmente quando pergunta sobre a rua Frunze, seu jeitinho de caminhar, seu rosto tão expressivo, é de uma delicadeza encantadora.
"O Pequeno Italiano" tem aura melancólica, o ambiente frio e cinzento ajuda nessa sensação, mas a confiança de Vanya gera esperança.

Vanya é pequeno só no tamanho, sua personalidade é de uma grandeza gigantesca, sua coragem em não ceder ao mais fácil, a difícil jornada por seu sonho necessita de muita força, a inocência se mescla com uma maturidade precoce, as condições de sua vida não o faz desistir, ele é um herói.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Feliz Natal (Joyeux Noël)

Para celebrar o natal o filme "Joyeux Noel" (2005) de Christian Carion é perfeito, foca exatamente na mensagem da paz.
Quando estoura a guerra, na calmaria do verão de 1914, milhões de homens são pegos de surpresa e levados a agir. Chega o natal, com sua neve e vários presentes da família e do exército. Mas a surpresa não viria de dentro dos generosos embrulhos que se encontram nas trincheiras francesas, escocesas e alemãs. Naquela noite, um evento momentâneo mudaria o destino de quatro personagens: um padre anglicano, um tenente francês, um excepcional tenor alemão, seu amor e sua companheira, uma soprano. Durante a noite de natal, acontece o inesperado: soldados saem de suas trincheiras e deixam para trás seus rifles para apertar as mãos do inimigo.
A trégua de 1914 na noite de natal entre combatentes de países aliados no início da primeira guerra mundial, é baseado em fatos reais, este relato mostra que apesar do horror e da violência , o ser humano tem a necessidade de afeto, de sentir aquilo que nos torna humanos, o clima de natal intensifica essa sensação, o que faz deste episódio de paz um dos mais simbólicos. Essa confraternização também só aconteceu devido a aspectos culturais parecidos, franceses, escoceses e alemães tinham muito em comum. Os oficiais, o alemão Horstmayer (Daniel Bruhl), o escocês Gordon (Alex Ferns) e o francês Audebert (Guillaume Canet) mostram compaixão e união. Trocam confidências, todos são jovens, recém-casados que não escondem o medo da guerra. Entre os personagens há um padre escocês recrutado, Nikolas Sprink (Benno Fürmann), um tenor alemão que se alistou no exército e sua mulher, uma soprano dinamarquesa (Diane Kruger), que consegue autorização para visitá-lo. O que os une é a música, quando o tenor alemão começa a entoar a bela e tradicional canção, "Noite Feliz", os escoceses ouvem e acompanham com gaita de foles, e por fim os franceses aparecem curiosos, aliás a trilha sonora deste filme é suntuosa, quase divina, arrepia-se ao ouvi-la.
Concordando com um cessar-fogo uma missa é celebrada pelo padre escocês, e no outro dia, enterram seus mortos além de conversarem, beberem e jogar futebol. Durante um bombardeio de artilharia, ambos os lados entrincheirados se refugiam juntos para evitar mais mortes. Depois disso, o sacerdote é enviado de volta e repreendido pelo bispo, mesmo alegando seu ato ser de humanidade na condução de um ritual religioso. Os alemães envolvidos são levados para outro front e Audebert, o tenente da infantaria francesa, é enviado para Verdun sendo advertido por sua ação que poderia ter representado traição num tempo de guerra.
Muitos filmes retratam exageradamente a imagem natalina, caracterizam demais essa época, "Joyeux Noel", apesar de conter todos os requisitos, árvores de natal, cores e etc, está mais interessado em sentimentos e essa coisa que chamamos de humanidade.

É um fato inusitado e que de início é difícil de acreditar, mas ao desenrolar vai se tornando crível e imensamente lindo.
O sentimento de união é muito aflorado nessa época, porém logo é encoberto por outros ao passar a mágica aura natalina. A harmonia e a gentileza deveriam ser cultivadas o ano todo para que tudo pudesse fluir melhor, e que quando chegasse o natal nada soasse falso e passageiro.
"Joyeux Noel" nos presenteia com lindas cenas, a maioria regada a músicas, a cena mais incrível, talvez seja quando o tenor pega sua árvore de natal e caminha até o centro do combate, enquanto é observado sob a mira de armas.
Tem uma carga excepcional de sentimentos envoltos neste longa, mas isso não o faz ser melodramático, ou careta em transformar tudo em alegria e paz. É um belo exemplar de toda a magia que envolve o natal e sentimentos que são inerentes ao ser humano. Com certeza o melhor filme sobre essa época, vale muito a pena conferir, principalmente no dia de natal!

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Caché

 "Caché" (2005) dirigido por Michael Haneke é um filme lento e que não faz questão de nos dar respostas, ele segue uma linha de suspense e tensão, o efeito é pós filme, impossível não se incomodar com as atitudes dos personagens que refletem muito sobre o nosso cotidiano.
Um dia Georges (Daniel Auteuil) e sua esposa Anne (Juliette Binoche) recebem uma fita de vídeo com imagens de sua casa, que fora filmada por uma câmera instalada na rua. Depois disso começam a receber desenhos sinistros. Assustado, o casal tenta descobrir o autor daquelas misteriosas ameaças que perturbam a paz de sua família. Logo percebem que quem os persegue conhece mais sobre o seu passado do que eles poderiam esperar. Georges é um apresentador de TV de muito prestígio, um intelectual, pai de família e com uma vida cômoda, ele é o típico homem que não pensa um segundo sequer nos outros, tudo está muito arrumado em sua maravilhosa forma de viver, até que as fitas misteriosas começam a desarranjar essa calmaria que o rodeia.
De início a mulher de Georges pensa ser um fã louco, ou alguma brincadeira infantil, mas à medida que as fitas vão chegando juntamente com desenhos estranhos a situação vai ficando cada vez mais tensa entre o casal. Georges começa a suspeitar de uma pessoa que fez parte de seu passado, mas em nenhum momento ele conta para sua esposa, no que faz ela sofrer e não entender o que de fato acontece. Georges vai atrás do homem que supostamente está enviando as fitas e os obscuros desenhos, a partir desse momento conhecemos um pouco do passado desses personagens e suas culpas, e a maneira como cada um lida com o próximo. Ao chegar na casa de Majid (Maurice Bénichou) que fica contente em vê-lo, Georges o acusa e de forma violenta o questiona sobre as fitas, é impressionante o quão triste Majid fica, é visivelmente um homem pobre e que guarda em si mágoas, pois como a história nos mostra ele era filho de um criado da casa dos pais de Georges e quando seu pai morreu, a família queria adotá-lo, mas Georges era uma criança mimada que já nutria preconceitos e muita inveja, e fez com que levassem Majid embora. Essa angústia que Majid carrega é por ter perdido a oportunidade de ter sido um alguém melhor perante a sociedade. Assim como Georges o é atualmente, um homem bem-sucedido. 

Conforme o desenrolar percebemos que a pior pobreza é a que vem de dentro, Georges é um sujeito que não tem consciência e honestidade, ele não se importa já que se julga melhor que os outros, há tantas cenas em que ele despreza os demais, seja por preconceito ou simplesmente por atrapalhá-lo. A cena mais tocante é quando o filho de Majid vai procurá-lo, ali percebe-se toda a podridão e o egoísmo de um ser humano que faz questão de esconder os acontecimentos e passar por cima das pessoas, ele por fora representa uma coisa, mas por dentro é outra. É sempre a imagem que predomina. 
Quantas e quantas pessoas não se escondem por debaixo de suas máscaras que dão conforto e rendem uma vida bacana, porém quando certas verdades vêm a tona, não importa, com certeza farão qualquer coisa para ter de volta a tranquilidade de seu cotidiano. 

"Caché" é uma experiência abrangente e o seu final nos deixa em silêncio, a sensação é de desconforto e uma torrente de pensamentos surgem acerca desta história que nos é contada de maneira fria. Não tem como ficar indiferente. O cinema de Haneke é real e por isso perturba, mas é extremamente necessário.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Às Margens do Rio Sagrado (Water)

Dirigido por Deepa Mehta (Os Filhos da Meia-Noite - 2013), "Water" é considerado um dos filmes mais bonitos dos últimos anos. Conhecido pelo título "Às Margens do Rio Sagrado", "Rio da Lua", ou ainda "Água: Gotas de Liberdade". Ele conta a história da pequena Chuyia que aos oito anos não é apenas casada, mas também já viúva, cujo marido nem chegou a conhecer. De acordo com a tradição, ela é enviada para uma casa onde as viúvas são obrigadas a ficar isoladas da sociedade até o final de suas vidas, sem que possam alguma vez voltar a casar. Lá, conhece Kalyani, uma bela e jovem mulher de quem se torna amiga. Kalyani ousa desafiar as rígidas regras apaixonando-se por um jovem com estudos. O filme abre com um trecho hindu, segundo as leis de Manu: "A viúva deve sofrer até a morte preservada e casta. Esposa virtuosa que permanece pura após a morte de seu marido vai para o paraíso. Uma mulher infiel a seu marido irá permanecer no útero de um chacal."
Por conta do assunto ser considerado tabu na Índia, a diretora Deepa Mehta enfrentou oposição de grupos hindus fundamentalistas. Precisou encerrar as filmagens em Varanasi, devido à pressão do líder do governo em Uttar Pradesh. Quatro anos depois a produção foi retomada no Sri Lanka. É um assunto que comove, pois a tradição baseada em escritos com mais de 2 mil anos ainda persiste e muitas mulheres são submetidas a viverem em condições miseráveis. "Às Margens do Rio Sagrado" é forte, porém delicado. Faz parte de uma trilogia, iniciada em 1996 com "Fogo" e continuada com "Terra" de 1998.
A história se passa no ano de 1938, antes da data de independência da Índia, que ocorreu em 1947. A imagem inicial já revela a beleza e a inocência. Chuyia por meio de seu pai descobre estar viúva, sem ao menos se lembrar que um dia casou. Esse costume de casar meninas com homens mais velhos ainda permanece, é uma questão social, mas também econômica. Após Chuyia ser informada da morte, acontece um ritual, onde a imagem feminina é extirpada, os cabelos são raspados, as pulseiras retiradas, sai as cores e entra um sari branco, que é sinônimo de luto e a marca da viúva na sociedade. Levada a uma casa onde ficam apenas viúvas com o intuito de abnegação para se manterem puras, a menina ainda não entende e espera que sua mãe a busque, mas conforme os dias passam se dá conta de seu terrível destino. Ao redor há mulheres com vidas miseráveis e no meio delas encontra Kalyani, que mantém seus cabelos compridos, pois é obrigada a se prostituir para manter a subsistência da casa que é bem precária.

Dentro da questão social há um diálogo maravilhoso entre Narayan, que se apaixona pela linda Kalyani, e Shakuntala, que acaba por proteger Chuyia. Ela pergunta: Para quê retirar as viúvas da sociedade? Narayan responde: Para terem menos gastos, pois as famílias não querem arcar com mulheres que sinalizam mau agouro, e correr o perigo delas herdarem propriedades do marido, então se retiram para continuar puras, segundo a religião, mas acabam comendo mal, dormindo no chão, pedindo esmolas, entre outras coisas que estão nessa absurda tradição. A prostituição de moças vêm com intuito do bem-estar de outras, uma hierarquia que se cria. É a velha história de mascarar o sujo com a religião.
Narayan é um homem rico, estudado, idealista, dentro do sistema das castas é um brâmane, também é seguidor de Ghandi, que na época foi várias vezes preso por expor seus pensamentos e ensinamentos, no que mais tarde resultaria na independência da Índia. O pano de fundo histórico só faz enaltecer o conteúdo do filme. Narayan se apaixona por Kalyani, o que não é aceitável dentro desta sociedade, mas graças a Ghandi, muitos indianos adquiriram um pensamento mais libertário, e cujo o pai de Narayan era adepto. Indo contra as outras mulheres Kalyani vai embora e decide se casar com seu amado, mas o destino às vezes prega peças das quais são dolorosas demais, e Kalyani desiste. Já o destino de Chuyia está nas mãos de Shakuntala, caso não faça nada terá o mesmo destino miserável dela. É chocante ver a segregação, e a punição que uma mulher viúva tem que passar, o mais inacreditável é que isso ainda existe, devido as crenças milenares.
"Às Margens do Rio Sagrado" tem um roteiro excelente, grandioso, assim como a fotografia suntuosa e delicada. É uma história enriquecedora com aspecto humanista. Os velhos hábitos estão sendo quebrados aos poucos, a lei das castas foi abolida em 1950, mas a segregação ainda acontece na mente das pessoas, assim também acontece no que se refere as mulheres que se tornam um peso, após seus maridos falecerem. Para se quebrar uma cultura vai tempo, e só aqueles que desafiam podem conseguir essa tal liberdade. É preciso se desvencilhar dessas tradições machistas e desumanas.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Paradise Now

"Paradise Now" (2005) é um filme palestino que retrata um pouco do conflito que há na região de Israel, a guerra santa vem acontecendo há centenas de anos e ainda hoje causa muitas mortes. Os muçulmanos enfrentam judeus sob a forma de terrorismo e é aí que entra os homens-bomba. Aqui no ocidente temos uma visão um pouco distorcida sobre os ideais dessas pessoas, não conseguimos entender como um ser humano se sacrifica em prol de uma religião ou política. Os enxergamos como loucos, fanáticos, violentos, ignorantes, e a mídia contribui extremamente para que tenhamos essa ideia, mas o que acontece realmente não sabemos, pois vivemos numa cultura adversa e completamente distante. Esse filme nos faz chegar perto desses caras, vemos tudo pelos olhos deles, sem a distorção que provavelmente um filme americano faria, os colocando do lado do ódio. Em "Paradise Now" observamos a realidade vivida e os motivos que levam homens a se entregarem em nome de um ideal.
Dois jovens amigos palestinos, Khaled e Said, são recrutados para cometerem um atentado suicida em Tel Aviv. Após a última noite com as famílias, sem se despedirem, são levados à fronteira com as bombas atadas à volta do corpo. No entanto, a operação não ocorre como esperado e eles se perdem um do outro. Separados, são confrontados com o seu destino e as suas próprias convicções. Said e Khaled são amigos desde pequenos e trabalham juntos, a vinda de um dos líderes do terrorismo muçulmano convocando os dois para uma missão de repente os assusta, mas apesar de serem pegos de surpresa, era exatamente o que queriam, ir os dois juntos. Enfim, o destino estava chamando por eles.
O filme tem cenas excepcionais e tensas, como quando Said se perde do amigo ao se deparar com os inimigos na fronteira, ele anda pela cidade com a bomba acoplada ao corpo, o outro volta à base e a retira, os líderes acham que Said é um traidor por não ter voltado, e então Khaled vai em busca de seu amigo. Said fica confuso e nós esperamos que tudo exploda a qualquer momento, pois ele está desesperado com a situação. Ele tenta entrar em Israel e a cena em que ele desiste de entrar num ônibus por visualizar crianças e pessoas inocentes é impressionante.

Os terroristas fazem uma interpretação muito fria do Alcorão, eles costumam citar trechos aos seus seguidores e os fazem recitá-los antes da ação, é como se fosse uma música que os acalmassem e acreditassem de fato no que estão fazendo. O Alcorão não pode ser resumido em trechos, ele é complexo e contraditório e muitos acreditam que Alá quer que eles combatam o inimigo sob a forma de violência. Além da religião, há o aspecto político também, e a Palestina sofre demais com a economia, o estado permanente de guerra na região desde a criação do Estado de Israel em 1948, a destruição gerada pelos conflitos inviabiliza o crescimento econômico do país e o comércio é prejudicado pelo controle de Israel sobre as fronteiras palestinas.
Interessante que Khaled é o mais convicto em executar a missão, até faz discurso para a mídia, mas conforme o desenrolar muda de ideia, principalmente pela conversa que tem com Suha, mulher da qual se interessou, ela apresenta uma outra visão: Será que esses atos de fato mudarão alguma coisa?

É um filme humano que mostra que os homens-bomba não são monstros, eles têm medo, muitas vezes são pessoas manipuladas que veem neste ato algo maior, alguns acreditam até em anjos os levando para o paraíso se realizarem a tal missão.
Há discursos que nos fazem compreender pelos menos um pouco a situação desse povo, elucida sobre o aspecto de ideais e da necessidade de se fazer algo para mudar a atual conjuntura, mesmo que seja sacrificando a si mesmo. "Paradise Now" é válido por mostrar homens-bomba sob a perspectiva deles próprios.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Eu Existo (Jestem)

"Eu Existo" (2005) entrou para minha lista dos filmes mais belos que vi. É daqueles que chegam devagarinho, e ao final ficamos completamente absorvidos pela história. É de uma delicadeza poucas vezes vista no cinema, é triste, mas ao mesmo tempo singelo e inocente. É existencialismo puro.
Um menino na faixa dos dez anos se vê perdido diante ao fato de não ter ninguém no mundo, ele tenta encontrar seu lugar, mas sem muito sucesso. De início o vemos no orfanato sendo ridicularizado pelos amigos, ele não entende o porque de estar lá, já que tem uma casa e uma mãe. Ao fugir e retornar ao seu lar encontra sua mãe, uma prostituta alcoólatra repleta de problemas, eles acabam brigando e o menino sai correndo. Sem ter para onde ir e o que comer, ele vaga até encontrar um velho barco abandonado em frente a casa de uma família rica, e se estabelece lá. Ele passa os dias pensando na vida e vendendo toda a sucata que consegue para obter seu alimento. O filme começa a ficar realmente bonito quando o menino é descoberto pela garotinha da casa, ela se sente exatamente igual a ele, mesmo tendo todo o conforto. Sua irmã mais velha e muito linda, de certa forma sente ciúmes da amizade e amor que cresce entre os dois, e é ela que definirá o rumo da história. Kuleczka, a jovenzinha sente-se feia e bebe escondida, Kundel, o garotinho abandonado não se mistura com os outros meninos de rua, pois estes usam drogas e vivem se metendo em encrencas. É difícil encontrar um lugar no mundo quando não há ninguém que o direcione e o ame, se sentir excluído de tudo como se fosse um animal, um inútil. Há cenas grandiosas, das quais mexem com nosso coração.
Kundel sobrevive de vender sucatas e numa de suas idas ao lugar o velho quer pagá-lo dando vários gatinhos, mas o menino se recusa, pois não há comida nem para ele, quando ele retorna e pergunta dos bichinhos o velho lhe diz que os afogou no rio, o menino pergunta o porquê e o homem responde que ninguém precisava deles, não tinha serventia alguma. Então, Kundel pensativo diz: "Por que não me afoga, você também não precisa de mim". É tão espontâneo que esse momento nos arranca tanto o choro como o sorriso.
Com o tempo as duas crianças se aproximam mais, fazem confidências e conversam sobre um possível futuro, o que esperam para si em um mundo do qual não pertencem. Kundel tenta mais uma vez ir ao encontro de sua mãe, mas ela o rejeita da pior forma. Arrasado volta para o único mundo que tem, junto de sua amiga especial. Ele chora ao lado dela e pergunta o que fez para que sua mãe não gostasse dele, a menina simplesmente diz: "Você existe!".

Kuleczka leva todos os dias um sanduíche a Kundel, este espera ansioso pela sua chegada, a sua única companhia, a pessoa que gosta dele e o entende, numa dessas ao morder o lanche encontra um bilhetinho escrito: "Eu Te Amo". O sorriso dele diante a frase é inexplicável, é o amor no seu estágio mais puro e inocente. Amar pelo simples fato da pessoa existir.
Outro ponto positivo vai para a fotografia que dá o toque de solidão que o filme possui, os atores mirins são incrivelmente naturais, é bonito ver crianças atuando desta forma, pois o brilho do olhar diante a câmera ainda possui aquela inocência, as sutilezas, como o sorriso de canto de boca de Kundel quando se sente feliz, pois alegria é uma estranha pra ele. O fim é triste, mas dotado de uma beleza muito peculiar, percebemos que o menino encontra seu lugar ao afirmar que ele existe, mesmo que o mundo não o perceba, há quem o ame e isso é o que dá a certeza de sua existência.

Essa é daquelas histórias pequenas e simples que nos edifica e nos faz querer ser melhores uns com os outros, vivemos num mundo onde ninguém se importa com ninguém, onde crianças são rejeitadas por suas mães e nem todas conseguem achar seus caminhos, a inocência se perde e a vida se torna insuportável cedo demais, pois o valor de alguém é medido pelo status, beleza, sociabilidade, sobrenome, essa é a única realidade aceitável, as outras são invisíveis e esquecidas.
É por isso que vale a pena assistir filmes bons que nos acrescentam algo, que ficará guardado com muito carinho na memória. "Eu Existo" é filme para rever durante o decorrer da vida, é sutil e leve ao tratar de um tema tão triste, a dificuldade de se descobrir perante ao mundo e se afirmar mesmo que este o rejeite.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Skrítek

"Skrítek" (2005) é um filme tragicômico tcheco bem peculiar e muito curioso, de início pensei ser uma loucura psicodélica por mostrar a figura de um duende peludo, com olhos que giram nas órbitas e que carrega uma espécie de pedra roxa super iluminada. Mas para meu espanto o filme é totalmente crítico e inteligente. Considerado humor pastelão, ele não abre mão de expressões exageradas, das quais fazem todo sentido no longa, já que não há diálogos, mas sim apenas interjeições e grunhidos.
Retratando o cotidiano de uma família, o tema é universal, portanto não há problemas em compreendê-lo. Realmente a parte em que o duende aparece é nonsense, no começo parece ser uma alucinação da garotinha, mas conforme o desenrolar os outros personagens começam a vê-lo também, outra coisa interessante é a fotografia que por vezes a cor verde predomina em cima das outras tornando tudo muito alucinógeno.
A história é basicamente esta: Uma família recém chegada a cidade, o pai trabalha em um frigorífico, a mãe em um supermercado, a filha menor odeia estudar, o filho mais velho é um skatista, maconheiro, rebelde e está naquela fase em que nada parece ser o suficiente, ele estuda numa escola técnica para trabalhar no frigorífico. O pai cansado da rotina em sua casa aproxima-se de uma colega de trabalho, a loira lhe dá abertura e acontece a infidelidade, entre cenas cômicas a esposa descobre a traição e decide se cuidar mais, vai ao salão de beleza, mas termina comprando uma peruca, usa lingerie sexy e espera seu marido na cama, mas este não aparece. Enquanto isso o filho que é vegetariano apronta na cidade, se enche de piercings e corre atrás de uma garota que não tá nem aí pra ele, sua irmã não faz a lição e só pensa no duende.
A crítica envolvendo a mesmice no trabalho, a coisa mecânica do dia a dia se reflete na personagem da mãe no supermercado, que sorri sem ter vontade e passa produtos sem tê-los de fato. Há também a crítica sobre a carne, o sofrimento dos animais, as cenas no frigorífico expressam isso com imagens de porcos abertos, aves gigantescas, carnes sendo destroçadas, enfim, vemos apenas a carne bonitinha embalada no mercado, mas não pensamos no processo que ocorre antes disso.
Por vezes o filme traz a ideia do porque é que o ser humano mata os animais para comê-los, pois o que nos difere deles? No filme como não há diálogos, exemplifica que também somos animais, desesperados na maior parte do tempo, no emprego, na família, pronto para sermos abatidos. O que nos faz ser "superiores" é exatamente ter a possibilidade de dialogar, pensar, mas geralmente as pessoas não utilizam de maneira correta. A família do filme é padrão, em todo lugar do mundo existe, mas o que vem para dar um tom estranho é a figura do duende, que de fato não sabemos se é apenas imaginação, ou se é realidade mesmo.

Os filmes tchecos dificilmente chegam até nós, não são distribuídos no país, a não ser em festivais de cinema, e olha lá. Então assistir "Skrítek" é um presente, um achado maravilhoso em termos de linguagem cinematográfica. O filme foi dirigido por Tomás Vorel, que também faz o personagem do filho na história.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Cello (Chello Hongmijoo Ilga Salinsagan)

 
Gostar de alguma coisa sempre é muito particular, em relação aos filmes então... Muitas pessoas não se livram do vício hollywoodiano, sempre esperando por novos blockbusters, trilogias, romances água com açúcar, e por aí vai, mas a partir do momento que você se encanta por algo diferente, isso muda, e descobrir o cinema Sul-Coreano foi uma grata surpresa. Para um cinéfilo descobrir filmes mundo afora sempre é uma alegria, e não há empecilhos para que arranje um jeito de obter tal filme. Muitos perguntam onde encontrá-los, já que filmes de diversos países não chegam aos nossos cinemas e alguns vão direto para as locadoras ou nem chegam mesmo. A maioria vem em festivais, mas não é todos que têm a possibilidade de ir. Graças a internet, temos a oportunidade de encontrá-los, existem blogs e sites especializados em filmes "desconhecidos" que disponibilizam o download. E há os torrents que nos ajudam achar praticamente quase tudo. Sendo assim, não tem desculpa para o mais do mesmo, inclusive este do qual vou falar assisti pelo Netflix, que tem um catálogo maravilhoso.
"Cello" é um filme intrigante que te puxa para a história e nos faz pensar o que realmente está acontecendo. Mi-ju (Hyeon-Seong) é professora de violoncelo na universidade onde se formou. Apesar dos incentivos para voltar a tocar, por colegas e pela própria família, Mi-ju recusa-se e sente especial aversão por uma música em particular. A sua atitude fria em frente ao ensino e ao próprio instrumento faz com que uma aluna sinta ódio dela, e assim a menina promete vingança e pergunta-lhe se "está feliz". A luz dos olhos de Mi-ju e sua maior preocupação é a filha Yoon-jin, que sofre um tipo de autismo que condiciona de modo severo a interação com os outros. Mi-ju sente um forte sentimento de culpa pela condição de Yoon-jin. A sua vida se divide entre a indiferença pela profissão e a cobrir de atenções Yoon-jin, até que um dia esta demonstra interesse por um violoncelo. Mi-ju não hesita em comprar o instrumento. A partir daí do momento em que o adquire começam uma série de acontecimentos estranhos no lar. Estes incluem uma obsessão pouco saudável de Yoon-jin pelo violoncelo e a sua insistência em tocar a música que Mi-ju não suporta ouvir.
Para quem está familiarizado com o estilo, não vai achar estranho, a fórmula é a mesma de tantos outros, drama familiar que no fundo há algo de sobrenatural. Mas como sempre a trama é bem amarrada e nos surpreende. Além da fotografia e da trilha sonora exuberante.

O passado vem à tona, quem realmente está errado? Mi-ju é culpada por algo que fez? O violoncelo amaldiçoado vibra em tons de morte. A obsessão só tende a crescer, será que é culpa que a corrói e a faz imaginar coisas? São essas perguntas que movem o filme, apesar de demorar a pegar no tranco. 
Vejo muitas reclamações sobre filmes de terror e seus habituais clichês, e o como está difícil encontrar algo que preste dentro do gênero. Realmente não me recordo de ter assistido ultimamente algum filme bom de terror e ter me surpreendido. Sendo assim "Cello" se faz uma boa opção para sair da mesmice e dos clichês americanos.
Apesar de "Cello" caminhar nos mesmos trilhos de tantos outros filmes sul-coreanos, não fica devendo em nada, a história é muito bem arquitetada e o clímax vale todo o tempo que julgamos ter perdido.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Algo como a Felicidade (Stestí)

A felicidade pode ser constante, ou apenas momentânea? Corremos atrás dela incansavelmente durante toda nossa vida acreditando que podemos conseguir algo maior, que pensamos ser o melhor, mas também podemos aceitar nossa realidade, dando valor para aqueles que nos amam, que estão ao nosso lado, e assim percebendo que a felicidade estava tão perto que nem nos dávamos conta. Geralmente o cair da ficha acontece devido algum momento ruim do qual passamos. Mas será que desejar uma felicidade suprema é errado?
"Algo como a Felicidade" (2005) é um filme tcheco que aborda de forma simples esse tema. Monika (Tatiana Vilhelmová), Toník (Pavel Liska) e Dasha (Anna Geislerová) cresceram juntos no mesmo conjunto habitacional, no subúrbio de uma pequena cidade da República Tcheca. Já adultos, eles buscam meios distintos para viver. Monika espera um dia reencontrar o noivo, que partiu para os Estados Unidos em busca de dinheiro e sucesso. Toník vive com sua tia excêntrica (Zuzana Kronerová), com quem tenta manter a fazenda da família. Já Dasha tem dois filhos e um amante casado, estando sempre à beira do desespero. Quando seu estado piora ela é hospitalizada, o que faz com que Monika e Toník se aproximem.
Numa cidadezinha da Rep. Tcheca três jovens entram em conflitos pessoais, a indecisão entre acomodar-se ao lugar ou se vão embora para longe. Dasha é uma jovem problemática, com dois filhos parece não aprender a lição, ela é que vai fazer com que Toník e Monika se aproximem, depois que Dasha vai internada, os dois ficam com as crianças e desta forma encontram um meio de sentir algo como a felicidade; uma coisa que poderia ser vista como difícil ou ruim, os dois encontram uma alegria poucas vezes sentida.
O filme pode parecer conformista, mas também pode ser otimista, apesar de ter um tom triste. Os personagens são retratos de nós mesmos, com dúvidas, problemas, anseios. Na maior parte do tempo estamos nos decepcionando com algo ou alguém, isso se deve ao nosso egoísmo, mesmo sendo imperceptível a nós, é da natureza humana. Mas quando descobrimos o valor das pequenas coisas, das sensações que não prestamos atenção no dia a dia, é como se a felicidade fosse plena e a vontade de parar o tempo acontecesse. Mesmo que esta venha de forma solitária como no fim do longa, em que Monika sorri diante a uma cena totalmente simples.

Nem sempre as coisas dão certo, mas é nesses momentos que descobrimos algo que estava na frente de nossos olhos. Como um amor, uma amizade, uma sensação. Os problemas, acontecimentos ruins existem aos montes e para qualquer um, mas eles vêm com algum propósito, seja para aproximar ou mostrar uma verdade.
O longa é um retrato da Rep. Tcheca pós-comunismo, a contradição entre passado e presente, a vontade de partir contra a busca de suas raízes, em meio a isso é difícil encontrar e saber o seu lugar. O lado político é quase invisível aos nossos olhos, pois o que reflete mesmo é o lado humano de cada um, suas imperfeições e buscas incessantes. Cada pessoa interpretará de uma maneira, a mim foi esperança e encontro de sutilezas.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Manderlay

"Manderlay" (2005) é o segundo filme da trilogia inacabada sobre a América de Lars von Trier, e assim como no primeiro filme intitulado "Dogville" (2003), "Manderlay" é o nome de uma cidade fictícia dos Estados Unidos da década de 30, no estado do Alabama. O filme continua exatamente do ponto onde parou, a partir do momento em que a protagonista Grace deixa a cidade de Dogville acompanhado do pai e dos gangsteres. Grace e o pai descobrem uma antiga fazenda ainda sustentada à base do sistema escravista, que na realidade foi abolida nos Estados Unidos 70 anos antes. A história de fato tem início quando Grace, contra a vontade do pai, resolve tomar a fazenda e implantar a democracia, a liberdade e a justiça no local.
O cenário acompanha a forma que foi feito em "Dogville", também não tem muros, é demarcado por desenhos no chão e só apresenta alguns objetos essenciais na composição dos ambientes. Entretanto, não causa tanta estranheza. A narrativa é feita por capítulos, com um narrador onisciente e irônico. Uma novidade é o deslocamento de Dogville até Manderlay, mostrado através de carrinhos andando sobre um mapa dos Estados Unidos. Grace não é mais vivida por Nicole Kidman, mas por Bryce Dallas Howard. A mudança causa um certo desconforto no início, mas Bryce não fica devendo em nada na interpretação. O que mais choca é a mudança brusca da personagem, que se torna benevolente logo após sua vingança ao final de Dogville.
A personalidade de Grace incomoda, sua bondade no fundo é pura vaidade, e que é alimentada quando faz boas ações, isso nos deixa atordoados, sem saber o que ela é realmente, mas Lars von Trier mostra exatamente isso, o ser humano, e como somos instáveis. Diferente de "Dogville" em que se tem diversas interpretações, neste a crítica aos Estados Unidos é mais direta, porém complexa. O tema é o fim da escravidão, a liberdade que é concedida aos escravos sem que possa ser usufruída, pois está desassociada de condições econômicas igualitárias. A liberdade é apenas ilusória, não tem uma política de integração de fato, através de empregos e salários justos. A liberdade era obtida, mas os fazendeiros se encarregavam de aprisionar os negros novamente, através de dívidas. O sistema de escravidão de Manderlay também se baseia numa filosofia interessante, de classificar os escravos por tipos. A ex-senhora da fazenda tinha um livro em que cada escravo era tipificado, seja como orgulhoso, submisso, ou adaptável, para que a forma de explorá-los fosse direcionada e suas reações fossem previstas. Não é preciso dizer que Grace aproveitou essas dicas. A visão do negro como objeto sexual também está presente no filme. A grande polêmica do filme é a de que a escravidão era aceita pelos negros, de que havia uma submissão destes à exploração, pois assim tinham como viver, sabiam exatamente o que fazer, em vários diálogos fica explícito, por exemplo, a pergunta feita pelo personagem de Danny Glover, em que horas jantam as pessoas livres?, e afirmando que os escravos não estavam preparados para serem livres, pois a sociedade não estaria preparada para recebê-los. E não estaria nem daqui a cem anos. Atenua-se as responsabilidades dos opressores na decisão de cada um daqueles escravos, ao serem passivos. Grace prega a liberdade, levando a democracia, mas na verdade é um outro tipo de opressão.

"Manderlay" trata do tema racismo de maneira cínica, em que na "inocência" Grace quer dar "liberdade" aos escravos, mas ela vê que nem tudo é tão simples de mudar e de que não é nenhuma heroína, e ao final percebe que não tem salvação e foge. Ela queria provar que ainda poderia trazer algum benefício através do poder que seu pai a concedeu, e que algo poderia ser mudado. Mas suas "boas intenções" de nada adiantaram, inserir a democracia goela abaixo sem se preocupar com o como estavam vivendo antes, é sandice.
"Manderlay" é ousado, irônico, polêmico, provocativo e uma ótima sequência de "Dogville".

terça-feira, 20 de novembro de 2012

O Lavador de Almas (Pierrepoint: The Last Hangman)

Albert Pierrepoint (Timothy Spall) inscreve-se para um concurso de executores, no início parece que não irá bem no teste, porém inicia-se ali a carreira do mais famoso carrasco da Inglaterra. "O Lavador de Almas" conta a história de Pierrepoint e como este desempenhou sua função por duas décadas, se tornando o assassino por lei de mais de 600 almas.
O longa acompanha o início da carreira de Pierrepoint paralelo ao início de seu casamento e como este escondeu por um longo tempo isso da esposa, porém seu sucesso na carreira desde o respeito pelos executados dizendo que ali estava o corpo de um inocente, já que havia pago com a própria vida pelos seus crimes, até o pós execução, onde ele mesmo se incumbia de lavar e preparar o corpo para o caixão, pois sabia que estes não seriam bem tratados nas funerárias, faz com que ele atraia a atenção da mídia para si, e a esposa descubra que o dinheiro ganho pelo marido que dizia viajar a negócios vinha das execuções cronometradas e anotadas em um diário.
O personagem se torna mais famoso ainda por realizar uma execução em menos de dez segundos e futuramente ser convidado a matar criminosos nazistas. O que torna "O Lavador de Almas" digno de elogios é mostrar que por mais que o que Albert Pierrepoint fazia era seu trabalho difícil de carrasco da maneira mais ética possível, aquilo com o passar do tempo começou a deixá-lo perturbado, mesmo nunca querendo saber pelo que as pessoas ali em sua frente haviam sido condenadas à morte, quando um de seus trabalhos é enforcar um amigo de bar por ter matado a amante infiel, começa a ver que quando escolheu para si a mesma carreira que o pai e o avô, trouxe tristeza para sua vida com aquelas tantas pessoas culpadas, mas também as que poderiam não ser, a ponto de serem levadas a morrer.

Timothy Spall mostra aqui uma atuação de respeito, junto a Eddie Marsan, o amigo de bar Tish. Baseado numa história real, o diretor Adrian Shergold soube mostrar a maior qualidade desse personagem contraditório da história da Inglaterra e da pena de morte, dito por muitos como sádico, mas na verdade, o lavador de almas dos condenados por si próprios, pelos seus crimes, pelo Estado e se nos aprofundarmos, em muitos casos, pelo próprio povo, menos por Pierrepoint... 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O Homem Urso (Grizzly Man)

"O Homem Urso" (2005) é um documentário do diretor Werner Herzog, ele nos mostra a história de Timothy Treadwell, que conviveu com ursos pardos durante 13 verões em um parque no Alasca. No início dá a impressão que Timothy é daqueles ecologistas doidões que se exibem ao mostrar algum animal. Mas no decorrer nos emocionamos com a personalidade desse cara, e até em alguns momentos o julgamos louco de verdade. O que faz uma pessoa se abster de viver na sociedade e se meter a viver com ursos, e até preferir ser comido por eles? Quando somos introduzidos à vida de Timothy percebemos todas as nuances, bipolaridades e angústias. Timmy tentou ser ator, mas acabou se frustrando, então resolveu por conta própria e sem nenhum preparo acadêmico, estudar e cuidar dos ursos. Por treze anos ele se instalou na península do Alasca durante o verão, às vezes acompanhado, e nos últimos anos, com uma câmera na mão, com a qual registrou aquilo que chamava de pesquisa. Timmy achava que os ursos precisavam de ajuda, de um protetor, mas o que vemos durante o documentário é um marasmo só, ninguém os perturbava. Em dado momento é entrevistado um homem conceituado que nos revela o instinto do urso pardo, e o quanto Timothy estava equivocado em querer ajudá-los. O urso pardo é considerado um dos animais mais perigosos do mundo.
Herzog tem adoração em tentar desvendar a mente das pessoas, e ele sabia que tinha um ótimo material nas mãos (as fitas gravadas pelo próprio Timothy), assim ele nos coloca a frente desse personagem, que por vezes é mostrado como um louco, e outras corajoso. Mas é fascinante ver o amor que tinha pelos animais, era como se fosse um tipo de salvação, um mundo que descobriu e resolveu mergulhar sem medo. Aliás, medo era uma coisa que ele não tinha, convivia de maneira respeitosa com os ursos, sabia o que cada ruído significava, o modo de andar e de se comportar. E com certeza o próprio Timmy se sentia um urso.
Por mais que Treadwell se julgasse amigo dos ursos e achasse que estava ganhando a confiança dos animais, percebe-se que isso era fruto de sua imaginação e que, em vários momentos, ele esteve bem próximo do perigo. Ele acabou descobrindo isso mais tarde. Sendo devorado por um de seus "amigos" em outubro de 2003. Essa foi a primeira agressão do tipo registrada no Parque Nacional e Reserva Katmai. Herzog coloca de maneira sutil suas impressões no documentário, sem revelar sua verdadeira opinião. A cena final é extremamente impactante, Herzog narra o instinto do urso, que talvez tenha comido Timothy, é mostrado o urso mergulhando, e o que parece ser adorável, na verdade é feroz, o foco nos olhos do animal revela que não há compaixão, mas apenas instinto.

Algumas cenas são até engraçadas, o jeito com que Timothy trata as raposas, que essas sim são amigáveis e dóceis, uma beleza da natureza. Sua voz sempre suave ao falar com os ursos, nos apresentando-os pelos nomes: Sargento Brown, Mickey, Saturno, Mr. Chocolate, e ele não se cansava de dizer o quanto os amava. Ao mesmo tempo sentimos carinho, pena e raiva desse ser humano que quis ultrapassar as leis da natureza. Cada vez mais solitário, percebemos que ele queria estar ali, não havia outro lugar no mundo em que preferisse estar.
É um retrato intenso de alguém que decidiu viver com os animais ao invés de continuar vivendo seus dias na sociedade.

Importante dizer que Timothy foi encontrado morto junto à namorada Amie Huguenard, ambos devorados pelos animais. Amie é uma incógnita nas imagens de vídeo que o próprio Treadwell fez, raramente ela aparece, nem conseguimos ver seu rosto. É dito que Amie tinha medo dos ursos, mas mesmo assim acompanhou Timmy várias vezes. Da última, ela estava, e ao ver seu namorado sendo comido, não correu seguindo o pedido dele, ela ficou até o fim. No meio do documentário Herzog ouve a fita que foi encontrada no local, os gritos, a dor, tudo está registrado, e Herzog visualmente impactado disse para a ex-namorada de Timothy que destruísse aquela fita. Um momento realmente impressionante!
Até que ponto o isolamento é saudável, e principalmente, quais os limites entre o Homem e a Natureza? Essas questões permeiam todo o filme. Cada um deverá interpretar Timothy de uma maneira. Difícil definir a sua personalidade, ela era recheada de incoerências e paradoxos.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

C.R.A.Z.Y. - Loucos de Amor (C.R.A.Z.Y.)

Zachary (Marc-André Gondrin) é um garoto como todos os outros. Nasceu no dia 25 de dezembro, em pleno natal, por esse motivo, sua mãe acha que ele pode ser especial, ter um dom, uma habilidade que o faça diferente. Ele cresce e as dúvidas vêm junto com a idade. Zac é mais sensível, adora rock rebelde da época e sente-se um pouco diferente, não pelo dom que possa ter, mas pelo que sente. Ele é gay e aos poucos irá perceber isso. Tem quatro irmãos, Christian (Maxime Tremblay) é o mais velho e intelectual da família, Raymond (Pierre-Luc Brillant) é o rebelde, adora comprar brigas com todos, em especial com Zac. Antoine (Alex Gravel) é o esportista, pegador, e por fim Yvan (Félix-Antoine), um gordinho comilão. Apesar do filme ter como título C.R.A.Z.Y, fazendo referência aos cinco filhos, a história se concentrará apenas em Zac e a difícil compreensão dos seus desejos. Zac e Raymond sempre se rivalizaram e estes dois causarão grandes dores de cabeça a Gervais (Michel Côté), o chefe da família, um homem extremamente machista. Zac pela sua sexualidade e Ray pelas drogas o deixam maluco.
Desde criança, o personagem apresenta traços homossexuais, para o descontentamento de seu conservador pai, que o chamava de "borboleta", mas se incomodava ao ouvir alguém chamando seu filho de "maricas". Zac cresce cheio de problemas psicológicos devido a repressão. Ele ama o pai, mas não é aceito. Zac tenta ser "normal", mas não dá. Ele tenta se arranjar com uma garota, mas o jovem lava o carro do pai com patins ouvindo disco music olhando para garotos. Com maquiagem no rosto ele é pego pela vizinhança dublando uma música, e é só com um baseado e a lamúria de "White Rabbit", de Jefferson Airplaine, que ele enfrenta as crises de culpa. Sentindo sua homossexualidade latente, Zac luta contra o desejo pelo namorado da prima. Ele chega aos anos 80 sendo cada vez mais o diferente, só mudando as referências. Sai David Bowie e entra Sex Pistols no poster do quarto. Sai calça de camurça e entra lápis no olho e jaqueta de couro. Zac chega aos 20 anos como DJ num clube, e no melhor estilo Sid Vicious ele joga vinho na cara do irmão que o chama de viado em pleno natal.
A linha do tempo de Zac é tão natural quanto a evolução da trilha. Quando a crise chega ao limite ele viaja para Jerusalém (lugar que sua mãe ama) e se joga numa boate gay. O filme mostra como a música e a cultura pop não só acompanham, mas ajudam a pautar e refletem a evolução da sociedade. A melhor designação para "C.R.A.Z.Y" é cool, ele ganha muito em tratar a homossexualidade de um jeito muito natural e leve, o timing que define as passagens do tempo são ótimas.

O roteiro mescla humor, intensidade e leveza, uma mistura envolvente. Citando alguns dos temas abordados: catolicismo, homossexualidade, perda, amor, drogas, e as relações familiares que sempre dão ótimas histórias.
Compreender os desejos é o primeiro passo, não se pode querer que os outros te aceitem se ainda nem você mesmo se aceitou. Zac lutou contra o que sentia por medo do pai, por medo da vida, dos outros, e de si mesmo. O final do longa mostra a libertação, um novo começo. O pai não o aceitava, mas isso não quer dizer que não o amava, e é justamente o amor que transforma e renova tudo.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Um Herói do Nosso Tempo (Va, Vis et Deviens)

Em 1984 milhares de judeus etíopes foram levados para Israel com a finalidade de escaparem da fome e miséria que abundava em seu país. Salomon é enviado pela sua mãe católica a uma viagem que salvará sua vida, a única maneira do seu filho sobreviver. Uma difícil decisão, mas que deu a ele a chance de ter uma vida mais digna. Sua mãe sabia o que estava fazendo ao entregar Salomon para que ele pudesse sair daquele flagelo que assolava milhões na Etiópia. A Operação Moisés era a oportunidade de um futuro. A mulher que o acompanhou fazendo o papel de sua mãe era da tribo dos Falashas, judeus etíopes que são da linhagem da Rainha de Sabá e, consequentemente, tinham lugar garantido em Israel. E foi justamente nas mãos dos judeus, que tem todo um histórico de perseguição, que ele aprendeu o que é o preconceito. Chegando em Israel, Salomon finge ser judeu para que possa ficar no país, assim seu nome passa a ser Schlomo e é adotado por uma família de esquerda que desconhece a sua verdadeira religião e a existência da sua mãe. Ao longo do seu crescimento, Schlomo vive atormentado com o seu passado triste, com a mãe que deixou pra trás e com o racismo do qual acaba por ser vítima. A única esperança deste jovem é um dia poder voltar a sua terra e ver a sua verdadeira mãe.
Schlomo mesmo diante a tanta fartura de alimentos, recusa-se a comer, a cena do seu primeiro banho de chuveiro, e seu empenho em não deixar a água escorrer pelo ralo é uma das mais comoventes. Sua família o coloca para estudar o Torá acreditando que é judeu e sua mãe adotiva luta para que o respeitem, pois o preconceito religioso e o da cor da sua pele será uma batalha que ambos irão enfrentar dali para frente.
Em sua trajetória de vida, dois homens contribuíram muito em sua formação, um patriarca de sua terra natal e o avô da família que o adotou. Ambos ensinaram os verdadeiros valores, as verdadeiras bagagens que se deve levar ao longo da vida.
Não querendo comprar guerra, até por imposição do pai adotivo, que o queria lutando, ele vai estudar medicina em Paris. Ao se formar, acaba embarcando numa guerra que não era dele. E nela se vê impedido de atender alguém, e por ambos os lados numa guerra estúpida, se descuida e termina ferido, mas se recupera e volta para casa com Sarah, que o esperou por dez anos, porém havia muito o que contar a ela sobre sua vida, e a mentira que segurou por todos esses anos. É impossível não se compadecer com a história desse garoto, ela o perdoa e o incentiva a voltar para sua terra natal e encontrar sua mãe novamente.

"Va, Vis et Deviens" é algo como "Vá, Viva e Transforme-se". A questão da tradução do título para "Um Herói do Nosso Tempo" não incomoda, Schlomo de fato é um herói, ainda menino num país estranho, tendo que mentir para ser aceito, enfrentando diversos preconceitos, conseguiu o amor de uma família, casou-se, tornou-se médico e retornou ao seu país em busca de sua mãe, que por sinal é uma das cenas mais impactantes.
Esse filme serve para que vejamos que o preconceito é algo absolutamente ridículo, inútil e degradante para o ser humano. O roteiro combina conflitos étnicos e religiosos com a determinação de uma criança em atingir seu sonho, representando a busca por uma identidade, mostra como uma pessoa pode ultrapassar todas as dificuldades da vida, mesmo quando todos parecem querer derrubar-lhe. Schlomo, conseguindo conciliar sua formação cristã com os novos conhecimentos judaicos, luta contra todo o tipo de preconceito e perdoa quem o ofende, pois acredita que há algo melhor na vida.

Os conflitos atuais no mundo vêm da questão da identidade e da aceitação do outro. O fanatismo mundial, seja muçulmano, cristão ou judaico vem do fato de que não aceitamos o outro, a diferença. A partir do momento que entendermos que somos diferentes uns dos outros e que isso independe de crença, religião ou da cor da pele, que somos indivíduos com características únicas, com capacidades e dificuldades, acho que talvez algo possa ser mudado no mundo. É uma lição de compaixão, de solidariedade para com o outro, valores dos quais estamos esquecendo dia após dia com uma vida cada vez mais egoísta.
Um retrato poético da busca de uma identidade e de uma vida que possa ser vivida de sua própria maneira.