domingo, 31 de dezembro de 2017

10 Melhores Filmes de 2017

As listas dos melhores do ano estão pipocando por aí e muitos filmes são unanimidades entre elas, mas sempre um ou outro fica de fora, a quantidade de longas com qualidade lançados esse ano foi grande e infelizmente não dá para assistir todos, então garimpando os filmes que vi desse ano selecionei 10 que merecem o posto na lista, são obras primorosas e que garantem satisfação ao espectador. A lista foi concebida por puro gosto e experiência pessoal e está em forma de Ranking.

10- "Em Ritmo de Fuga" (Baby Driver, de Edgar Wright) EUA
O jovem Baby (Ansel Elgort) tem uma mania curiosa: ele precisa ouvir músicas o tempo todo para silenciar o zumbido que perturba seus ouvidos desde um acidente na infância. Mesmo assim, o rapaz revela-se um motorista excelente, e começa a trabalhar para uma gangue de criminosos. Quando um assalto a banco não sai como planejado, ele cai na estrada em fuga. 
"Baby Driver" já nasceu cult, um filme estiloso cheio de referências e que passeia entre a ação, romance e muita música, tecnicamente impecável e atores inspirados, super empolgante!

09- Mãe! (Mother!, de Darren Aronofsky) EUA
 Um casal vive recolhido no meio de um campo em um imenso casarão de estilo vitoriano. Enquanto a jovem esposa (Jennifer Lawrence) passa os dias restaurando o lugar, afetado por um incêndio no passado, o marido mais velho (Javier Bardem) tenta desesperadamente recuperar a inspiração para voltar a escrever os poemas que o tornaram famoso. Os dias pacíficos se transformam com a chegada de uma série de visitantes que se impõem à rotina do casal e escondem suas verdadeiras intenções.
"Mother!" não é um simples suspense ou terror psicológico, é um filme complexo de muitas camadas que passeia por diversas metáforas e alegorias. Um obra grandiosa que disserta sobre religião, culto aos ídolos, moralismo, narcisismo, natureza, feminilidade e tantos outros temas que se desnovelam ao decorrer e que cada espectador sentirá, absorverá e interpretará de uma forma, as questões são amplas e isso é algo maravilhoso, o poder de reflexão é imenso. 

08- "Peles" (Pieles, de Eduardo Casanova) Espanha
Em uma sociedade extremamente tomada pela cultura do visual, pessoas com diferenças físicas curiosas são forçados a se esconder, se tornando reclusas entre elas. Dentre elas estão Samantha, uma mulher com o sistema digestivo de cabeça para baixo, Laura, uma menina sem olhos e Ana, que possui o rosto deformado. Juntas, esforçam-se para se encontrar em uma sociedade que só entende uma forma física e maltrata o diferente.
"Pieles" é original, desconcertante, poético, interessantíssimo e provoca o espectador o tempo inteiro ao colocar protagonistas com deficiências físicas e emocionais. É um drama social sombrio com pessoas deformadas e desfiguradas que precisam encontrar maneiras de esconder suas diferenças e lidar com o resto da sociedade. Uma obra sincera que desconstrói e atinge pelo bizarro, nada mais que um espelho da realidade. 

07- "O Sacrifício do Cervo Sagrado" (The Killing of a Sacred Deer, de Yorgos Lanthimos) EUA/UK
Steven (Colin Farrell) é um cardiologista conceituado que é casado com Anna (Nicole Kidman), com quem tem dois filhos: Kim (Raffey Cassidy) e Bob (Sunny Suljic). Já há algum tempo ele mantém contato frequente com Martin (Barry Keoghan), um adolescente cujo pai morreu na mesa de operação, justamente quando era operado por Steven. Ele gosta bastante do garoto, tanto que lhe dá presentes e decide apresentá-lo à família. Entretanto, quando o jovem não recebe mais a atenção de antigamente, decide elaborar um plano de vingança.
"The Killing of a Sacred Deer" desconcerta e intriga tanto em sua estética fria e robotizada, quanto em seu roteiro com desenrolar lento e repleto de pontas, é uma experiência única assistir os filmes de Lanthimos, que mesmo produzindo fora de seu país continua com suas estranhas características, quanto mais se pensa no filme mais coisas surgem e mais interessante fica. E que interpretação de Barry Keoghan!! Desconcertante!

06- "Bom Comportamento" (Good time, de Ben e Josh Safdie) EUA
Após um malsucedido assalto a banco, Constantine Nikas (Robert Pattinson) vê seu irmão mais novo (Bennie Safdie) sendo preso e embarca em uma odisseia no submundo da cidade em que vive, numa tentativa cada vez mais desesperada e perigosa para tirar seu irmão da prisão. Ao longo de uma noite repleta de adrenalina, Constantine encontra-se em uma onda de violência e caos enquanto ele corre contra o relógio para salvar seu irmão e ele mesmo, sabendo que suas vidas estão por um fio.
"Good Time" é um filme que consegue transmitir toda a ansiedade e loucura para o espectador, o protagonista interpretado maravilhosamente por Robert Pattinson nos instiga a percorrer junto dele por uma alucinante noite e sentir todas as vibrações que advém de uma série de situações-limite. Grande surpresa!

05- "A Ghost Story", de David Lowery - EUA
Um rapaz C (Casey Affleck) recentemente morto retorna para o seu lar em forma de um fantasma de pano branco para tentar se reconectar com sua esposa M (Rooney Mara) ainda viva. 
"A Ghost Story" é uma obra indie de baixo orçamento (cerca de 100 mil dólares) melancólica, intimista, complexa e extremamente bela. Seu formato com enquadramento 4:3 e bordas arredondadas compõe as sutilezas desta história que disserta sobre o tempo. O ritmo pausado com planos fixos e longos, os movimentos delicados da câmera, o clima imersivo, tudo soa profundo e reflexivo. Contemplativo, sensorial e hipnotizante, disserta sobre nossa permanência no tempo com muita melancolia.

04- "The Square", de Ruben Östlund - Suécia
Um gerente de museu está usando de todas as armas possíveis para promover o sucesso de uma nova instalação. Entre as tentativas para isso, ele decide contratar uma empresa de relações públicas para fazer barulho em torno do assunto na mídia em geral. Mas, inesperadamente, isso acaba gerando diversas consequências infelizes e um grande embaraço.
"The Square" expõe uma perspectiva crítica à elite cultural europeia, em especial, a sueca, e disserta o como a arte vem sido repelida ao invés de provocar curiosidade, questões como os limites e o vazio das obras, há uma crise dentro desse universo e mesmo que a história gire em torno da sociedade europeia, percebemos que o sentido da arte contemporânea anda sendo questionado no mundo todo, além disso coloca em ênfase a contradição, enquanto uma obra em exposição sugere solidariedade, colaboração e empatia, os atos são completamente opostos, onde retrata uma população solitária, vazia e sem qualquer traço de cuidado com o outro. 

03- "O Outro Lado da Esperança" (The Other Side of Hope, de Aki Kaurismäki) Finlândia
Khaled (Sherwan Haji) fugiu da guerra na Síria e foi buscar asilo na Europa. Depois de percorrer vários países, solicita a permissão de estadia na Finlândia. Enquanto espera pela resposta, busca pela irmã, desaparecida, e consegue a ajuda de um pequeno comerciante, Wisktröm (Sakari Kuosmanen), que aceita empregá-lo em seu pequeno restaurante.
"The Other Side of Hope" é um filme simples, despojado e que transfere uma sensação de melancolia e acolhimento, o estilo de Kaurismäki é único, sempre com temas atuais e frágeis da sociedade, a maneira que seu roteiro se desenrola, as situações e as reações das pessoas, tudo com um toque de humor irônico e muita música, e que bom gosto musical tem esse diretor! 

02- "O Fantasma da Sicília" (Sicilian Ghost Story, de Antonio Piazza e Fabio Grassadonia) Itália
Giuseppe (Gaetano Fernandez) é um corajoso garoto de 13 anos de idade, que desapareceu nas mediações de uma misteriosa floresta localizada na pequena aldeia em que vivia. A única pessoa que parece não se conformar com o sumiço dele é a pequena Luna (Julia Jedlikowska), que está disposta a enfrentar todos os perigos para resgatar seu amigo.
"Sicilian Ghost Story" é um filme belíssimo em que imagens traduzem sentimentos, extremamente poético se desenrola de forma sutil, porém avassaladora, trata com cuidado um tema tão pesado e nos leva para uma atmosfera tensa e imaginativa, sua aura de sonho contamina e impregna na pele, totalmente imersivo! 

01- "Loveless" (Nelyubov, de Andrei Zvyagintsev) Rússia
Boris (Alexey Rozin) e Zhenya (Maryana Spivak) estão se divorciando. Depois de anos juntos, os dois se preparam para suas novas vidas: ele com sua nova namorada, que está grávida, e ela com seu parceiro rico. Com tantas preocupações eles acabam não dando atenção ao filho Alyosha (Matvey Novikov), que acaba desaparecendo misteriosamente.
"Loveless" é um filme sombrio que retrata as consequências de se viver em desamor, essa ausência de afeto está tanto dentro do seio familiar, como na sociedade que apequena o ser humano tornando-o preocupado e obcecado com regras e dinheiro. Zvyagintsev filma o desencanto que envolve a sociedade russa, o ambiente é um grande personagem também, o frio congelante que devasta os bosques é o reflexo da languidez e indiferença humana, o apuro da câmera ao atravessar esses lugares destruídos logo no início é um prenúncio de que algo muito ruim irá acontecer, e assim se dá e o vácuo que se instaura machuca o espectador. Filmaço!

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Uma Grande Aventura (Watership Down) Filme/Livro

"Watership Down" (1978) traduzido no Brasil como "Uma Grande Aventura" ou "A Longa Jornada" é uma animação baseada no romance homônimo de 1972 de Richard Adams e dirigida por Martin Rosen (The Plague Dogs - 1982, também baseado na obra homônima de Richard Adams), conhecida como uma das mais perturbadoras e sanguinolentas animações, sem dúvidas, uma obra-prima atemporal que conversa tanto com o universo infantil como o adulto, há um exagero em sua fama de violência, mas o seu conteúdo é sim bastante obscuro, pois trata-se de sobrevivência. Richard Adams começou toda essa história por causa de suas filhas em uma viagem de carro pela Inglaterra, motivado ele pesquisou sobre a vida dos coelhos, o habitat, os seus modos e construiu algo grandioso, pode-se encarar "Watership Down" como uma aventura hipnotizante ou como uma metáfora para o comportamento humano, a religião, a sociedade e sua escala de poder, e tantos outros simbolismos que vão aparecendo no decorrer. 
Com sua toca ameaçada de destruição, um grupo de coelhos é obrigado a abandonar o lugar onde vivem e partir em uma grande aventura. Eles não estão prontos para essa viagem, cheia de perigos e surpresas, mas precisam encontrar uma nova casa o mais rápido possível. Os valentes coelhos são perseguidos por animais domésticos, conseguem fugir dos humanos e até encontram um coelho malvado que não quer saber de ajudá-los e sim atrapalhar o caminho. Mas juntos, eles enfrentam cada desafio e problema, com a força da amizade.
A sinopse pode enganar por seu tom fabuloso em que coelhos buscam um lugar seguro e por conta da união conseguem sobreviver, porém ao entrar em contato com o livro/filme e observar a maneira que esses coelhos são retratados, como os traços naturais do desenho no filme, desmistifica o estereótipo de candura que supostamente possuem, a história é permeada de situações ruins em que o medo é o grande protagonista, eles são movidos por esse medo e usam de suas características, como agilidade, audição privilegiada e a sagacidade para elaborar truques e ir adiante sem se deixarem abater, além de fugirem de inimigos de outras espécies também precisam lidar com as armadilhas de outros coelhos. Tudo começa quando Cinco-Folhas (Richard Briers), um coelho franzino pressente algo ruim vindo em direção à coelheira, ele visualiza uma bituca de cigarro que sinaliza a presença de homens e um pedaço de madeira fincado na terra, uma placa, e logo tem a visão do campo todo ensanguentado, junto com seu irmão Aveleira (John Hurt) vão até o chefe do Owsla - os coelhos mais fortes e superiores da coelheira - e avisam sobre a tragédia que está por vir, mas o grande coelho menospreza a recomendação de irem embora. Após isso Cinco-Folhas e Aveleira formam um grupo e partem em busca de um bom lugar para viver, nesta jornada passam por muitos perigos, encontram raposas, gatos, cachorros, pássaros, homens com espingardas e coelhos estranhos e tantas outras adversidades, precisam conquistar território, construir as próprias tocas, conseguir um local para comerem e acima de tudo permanecerem unidos são e salvos. Durante essa extenuante caminhada alguns morrem e se machucam, conhecem modos de vida diferentes e percebem que precisam de muita coragem para seguirem, principalmente, quando vão atrás de fêmeas na temida Efrafa.

Uma das coisas que mais chama a atenção na animação é a sua estética, os coelhos não são retratados como seres bonitinhos e a natureza deles é exposta de maneira real, os hábitos e a luta pela sobrevivência, e claro, aí entra a violência, arranhões e mordidas que arrancam pedaços, além de imprevistos, mas nada é gratuito, quando percebem que só lutando poderão escapar se tornam impetuosos e selvagens, as cenas sangrentas são poucas na verdade, o conteúdo foi baseado realmente na vida dos coelhos, a fonte de inspiração do autor foi o livro de Ronald Lockley, "A Vida Privada dos Coelhos", portanto, a agressividade faz parte, mas nada tão estarrecedor, existe um exagero em torno.
O filme é um clássico e merece toda a atenção, só que funciona isoladamente do livro, a reprodução não é fiel e os acontecimentos não estão na ordem, alguns personagens não são focados e demora-se a distingui-los, porém visualizar o cenário e todo o percurso alimenta ainda mais a nossa imaginação, é uma experiência que nutre. Condensar um livro de centenas de páginas cheio de detalhes é complicado e a imersão acaba não funcionando por ter uma abordagem rápida, a ação é quem manda, chama-se isso de plot-driven, onde o personagem está à mercê dos acontecimentos e por conta do tempo seu perfil não é explorado por completo. O que é uma pena, pois cada coelho exibe uma característica única, Cinco-Folhas é intuitivo, Aveleira é confiável, Manda-Chuva é forte e corajoso, Dente-de-Leão é um exímio contador de histórias, Amora-Preta é astuto, estes são os principais, mas quando abre espaço para algum coelho em cena percebe-se algo que se sobressai em cada.

Em dado momento da jornada eles encontram uma coelheira com hábitos diferentes dos demais coelhos, são bem recebidos pelo grande e melancólico Prímula, mas algo parece estranho em seus hábitos polidos e desinteressados, por exemplo, quando por agradecimento pela acolhida querem contar uma história sobre a mitologia deles, que envolve El-ahrairah - uma espécie de Deus, eles rejeitam veementemente, no decorrer perceberam que dia após dia um coelho desaparecia, e então descobriram que os homens não eram generosos em tratá-los, mas ali era um viveiro e todos os coelhos tinham consciência disso. A mitologia mencionada a cada nova empreitada inspira os coelhos a não desistir, já que El-ahrairah, o herói deles venceu utilizando inúmeras artimanhas, o mito no livro é muito mais desenvolvido e não tem como não relacioná-lo com a religião, é dito que o mundo foi criado por Frith, representado pelo sol, e que nesse mundo habitava muitos animais e todos viviam em paz, até que os coelhos liderados por El-ahrairah se proliferaram demasiadamente e acabaram com a comida dos outros animais, estes imploraram a Frith para que pedisse ao coelho controlar seu povo, mas foi ignorado e Frith decidiu dar aos outros animais garras e presas para caçar os coelhos, e assim foram sendo mortos, até que restou somente El-ahrairah, que acabou ganhando também várias características, como a aguçada percepção para poder sobreviver com tantos inimigos a sua volta.

A história toca em temas muito pertinentes, como confiança, companheirismo, hierarquia social, religião, sacrifício, e demonstra a amizade improvável entre os coelhos e a gaivota, Kehaar, uma personagem maravilhosamente bem adaptada para o filme, na voz de Zero Mostel, sem dúvidas, as cenas que participa são as melhores, a ave tem um misto de simpatia e impaciência com os coelhos, eles a ajudaram a se recuperar depois de um ataque de um gato e o pássaro grato os ajuda a encontrar Efrafa e libertar as fêmeas de lá, essa coelheira tem um sistema ditatorial, horários determinados para comer e há patrulhas por todos os cantos, são coelhos que não temem a luta e são muito leais. As fêmeas estão bastante insatisfeitas e estressadas e quando Manda-Chuva (Michael Graham Cox) entra lá com o pretexto de se juntar e se tornar um deles, observa tudo ao redor e as convence a fugir direto para a liberdade. Claro que esta fuga não é fácil e dependem muito da engenhosidade e da sorte, e os efrafianos não se dão por vencidos. 
A sobrevivência requer sacrifício e isso os coelhos não temem, outro ponto interessante é a conversa que Aveleira vai tentar com o general Vulnerária (Harry Andrews), onde ele diz que é estupidez guerrear entre a mesma espécie enquanto poderiam ampliar o território e usufruir juntos dos recursos naturais, as alegorias estão por toda a parte, basta se atentar a narrativa que tudo tem um paralelo com a nossa sociedade e o comportamento humano, mas se quiser ter uma interpretação literal, onde a fantasia e a aventura predomina também pode, inclusive essa é a grandeza da obra, fazer com que cada leitor/espectador tenha sua própria perspectiva da história. A aura melancólica é penetrante mesmo com toda a ação, uma parte que evidencia muito esse sentimento é quando Cinco-Folhas pressente algo em relação a seu irmão e a canção "Bright Eyes" de Art Garfunkel, que acompanha a cena torna ainda mais forte essa melancolia.
♪ Há uma névoa ao longo do horizonte,
um estranho brilho no céu
e ninguém parece saber para onde você vai
E o que isto quer dizer,
  oh, é um sonho? ♪

"Coelhos (diz o Sr. Lockley) são, em muitos aspectos, parecidos com seres humanos. Um desses é, sem dúvida, sua grande habilidade em superar desastres e deixar que o fluxo da vida os transporte além dos limites do terror e do dano. Têm uma certa qualidade, que não seria justo descrever apenas como resistência ou indiferença. Trata-se, melhor dizendo, de uma imaginação abençoadamente restrita e o sentimento intuitivo de que Vida é Presente."  

Colocando o livro e o filme lado a lado, o livro certamente sai em disparada com sua profundidade e imersão, mas não diminui o valor da adaptação, que mesmo não satisfazendo o leitor ainda consegue emocionar e incutir o interesse, a quem se deparou inicialmente com o filme e ficou sabendo do livro depois com certeza terá vontade de se enveredar pelas páginas de "Watership Down". As descrições, os cenários, os hábitos, os diálogos, o vocabulário criado pelo autor, simplesmente mágico apesar de carregar um tom sombrio, o fato de se basear na vida natural dos coelhos é o diferencial do livro, que em nenhum momento esconde ou floreia as atitudes difíceis e selvagens para a sobrevivência. Outra questão que permeia a história é a destruição da natureza causada pelas mãos do homem, o quão distantes e separados da natureza estão e todo o desequilíbrio que isso tudo causa no ambiente devido a ambição desmedida e egoísmo. Crítica ambiental, social, política e religiosa, por mais que o autor negue que fez qualquer alegoria ou metáfora, elas estão presentes e saltam aos nossos olhos. "Watership Down" é um livro original, cru, melancólico, fascinante e memorável; o filme também impressiona pela representação dos coelhos e ao dar ênfase nas decisões que precisam tomar diante do caos. A obra cinematográfica é notável, mas a leitura é imprescindível.


"Para os coelhos, tudo que é desconhecido é perigoso. A primeira reação é se assustar, a segunda é correr. Várias e várias vezes eles se assustaram, até chegar ao ponto da exaustão. Mas o que eram esses sons e para onde, nesse ambiente selvagem, eles poderiam correr?". 

"Chegar ao fim de um período de ansiedade e temor! Sentir a nuvem que pende sobre nós, leve e dispersa - a nuvem que reanima o coração e faz com que a felicidade não fique apenas na lembrança! Isto, pelo menos, é uma alegria que deve ser conhecida por quase toda criatura vivente."

"Muitos seres humanos dizem apreciar o inverno, mas do que realmente gostam é de se sentir protegidos. Não enfrentam problemas de alimentação. Têm lareiras e roupas quentes. O inverno não os fere fundo e, portanto, aumenta seu sentimento de habilidade e segurança. Para pássaros e animais, e para pessoas sem recursos, o inverno é cruel."

*A Netflix e a BBC One anunciaram a produção de uma minissérie animada de 'Watership Down" em quatro episódios. Estamos no aguardo!  

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Coro (Chorus)

"Coro" (2015) dirigido por François Delisle (Le Météore - 2013) é um filme pesado, difícil de assistir, retrata uma dor profunda, o luto pela perda de um filho, o tempo que não sana as feridas, os sentimentos confusos, culpa e saudade que se misturam, o trauma e as  lembranças que inevitavelmente surgem e o quão penoso é seguir adiante. Aborda de maneira intimista, simples e direta o sofrimento e o quanto solitário é passar por ele.
Um casal separado reúne-se novamente depois de 10 anos quando encontram o corpo do filho desaparecido. Ambos lidam com a morte do filho a sua própria maneira. Em meio a culpa de perder um ente querido, eles tentam aceitar a morte e até mesmo a possibilidade de reconciliação. 
A angústia transpassa a tela, a fotografia em preto e branco já anuncia o peso, a história abre com um homem fazendo uma confissão, o como conheceu um garoto de 8 anos num parque, é claro desde o início, não há espaço para nenhum suspense, de cara sabemos o que aconteceu, o menino despareceu há 10 anos, os pais se separaram tamanha a dor de conviverem juntos, Christophe (Sébastien Ricard) encontrou refúgio no México, o mar e o sol acalmando o redemoinho em seu coração, Irene (Fanny Mallette) canta em um coral, mas isso não a alivia, entra em pânico toda vez que encontra crianças ou pessoas conhecidas, a reação delas varia entre tentar consolar, o que é impossível, pois a dor é um sentimento solitário, ou ignorar o acontecido e conversar sobre outras coisas, isso acaba a destruindo ainda mais, são tantos pensamentos que lhe atormentam, "se eu fosse buscá-lo aquele dia na escola", esse "se" a consome, mas tudo vem à tona de fato quando o corpo é encontrado depois de 10 anos, o casal se reencontra e precisa lidar com o funeral, a confissão do assassino, uma das cenas mais cortantes, e novamente com o adeus ao filho. A convivência entre eles é estranha, pouco dialogam, mas respeitam a dor que cada um sente, não há como reverter e nem seguirem juntos, eles trocam olhares e se abraçam e até revivem o amor, mas não há um caminho juntos, o sofrimento é maior, a culpa é bem evidente nos dois, a sensação de não ter sido bons pais e também é intenso quando pensam o que poderiam ter vivido com o filho, ele teria 18 anos e uma das cenas mais representativas é quando surge um amigo da infância dele e os pais esboçam pela primeira vez um reconforto e uma tranquilidade, principalmente ao lerem uma carta que o filho deles destinou ao amigo. 

A história não exibe adornos e a direção mantém uma certa distância, o que possibilita observar os pontos de vista de cada personagem e não o tornar melodramático apesar de toda a dramaticidade, explora brilhantemente as nuances do emocional, os conflitos internos, as necessidades e carências quando se está em luto e revela a realidade, o embaçamento do cotidiano, a inércia causada pela perda. A mãe de Irene tenta ajudar quando ela tem seus rompantes, o pai de Irene se suicidou não fazia muito tempo e esse luto ainda estava presente, Irene até questiona o porquê da mãe não chorar e ela responde que era para protegê-la, nesta parte expõe a revolta, a raiva da perda, um certo egoísmo também, a negação em ser ajudada pela mãe, que diz estar fazendo o melhor. Do outro lado Christophe volta a rever o pai depois de 10 anos, um reencontro silencioso e cuidadoso, ambos perguntam se têm raiva um do outro, o silêncio é a melhor opção, pois palavras e ações nada valem quando se está dilacerado.

"Coro" traz uma história cruel com muita sensibilidade e introspecção, este tema costuma ser rejeitado pelo público, é complicado refletir sobre a perda, luto, a dor incomensurável, mas depois do término somos surpreendidos por uma obra com argumento preciso, real e imensamente poderoso. A trilha também é impecável, tanto com as músicas cantadas pelo coro, quanto as que tocam em seu final, a banda canadense Suuns foi uma descoberta maravilhosa.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

O Incidente (El Incidente)

"...eu nunca aproveitei nenhuma fase da minha vida...e sempre estava pensando em querer chegar à fase seguinte, e quando chegava a ela me dava conta que a anterior era melhor...Aproveite tudo. A vida é uma baita estrada longa e o que passamos já não volta mais"

"O Incidente" (2014) dirigido por Isaac Ezban (Os Parecidos - 2015) é um filme mexicano de baixo orçamento no estilo "mindfuck", somos completamente absorvidos por uma trama de atmosfera intrincada em que personagens vivem um looping temporal, as escadas de um prédio que se repetem, o incansável percurso em uma estrada que acaba em si mesma, acontecimentos que foram concebidos através de um incidente e que nos leva a questionar sobre realidade paralela, mas também serve como metáfora para nossa existência, das repetições que fazemos ao longo da vida, dos momentos que se fixam e se refazem em nossa mente. 
Após um confronto, dois irmãos e um detetive da polícia tentam fugir de um prédio e descobrem que a escadaria se repete infinitamente e não tem saída. O mesmo incidente acontece com uma família em viagem de férias, que acaba presa num trecho da estrada e retorna sempre ao mesmo ponto de partida. Dois episódios aparentemente sem relação conectados por um misterioso looping temporal, que faz com que a realidade se repita infinitamente. A única saída é seguir em frente.
É uma ideia interessante e o desenvolvimento por mais que pareça arrastado se mostra curioso e confunde-nos totalmente e acerta em cheio ao retratar os personagens ao longo de muitos anos vivendo o mesmo, inclusive com objetos e comidas se acumulando, o como cada um reage a essa situação e ao final tentando se conectar com a única realidade existente, a explicação seria que eles ali seria uma espécie de motor gerando energia para a versão real deles, o que alivia um pouco a dor de cabeça de tentar entender, mas ao mesmo tempo essa explicação fica um tanto expositiva.
É criativo nos detalhes e nos recursos utilizados para ampliar o desconforto da situação, de estar preso em algo que se repetirá exaustivamente e sem saber como sair ou desfazer, se é uma ilusão, um sonho, a questão do tempo e seus desdobramentos. A trilha sonora é uma aliada para o clima de imersão e dá a sensação de um pesadelo consciente.

Muitos incidentes grudam na nossa mente e volta e meia regressamos a eles, traumas, arrependimentos, escolhas, refazemos tudo de novo na nossa cabeça e às vezes incluindo alternativas, com diferentes possibilidades que alterariam a realidade presente, e sem dúvida, pensar por esse lado a história do filme deixa de incomodar tanto com suas teorias de looping, o cérebro para de coçar um pouco, a frase que o irmão diz pro outro no início exemplifica essa ideia, de que nunca estamos satisfeitos com o que temos no agora, sempre estamos ansiando pelo próximo dia que talvez nos dará mais do que hoje, porém quando se chega lá percebe-se que não vivemos o dia anterior e estamos reproduzindo este pensamento sem fim. 

"O Incidente" é instigante, possui várias nuances dentro de sua proposta, não deixa a desejar em nenhum momento, é tenso e perturba, as coisas que acontecem durante todo o tempo em que estão presos, a acumulação, o desgaste, as tentativas de sair, tudo é executado brilhantemente e ao final deixa que cada espectador interprete de uma forma, a explicação é dada, mas mesmo assim cada um tem a sua experiência.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

My Happy Family (Chemi Bednieri Ojakhi)

"My Happy Family" (2017) dirigido por Nana Ekvtimishvili e Simon Groß (Na Flor da Idade - 2012) é um filme bastante interessante por retratar uma mulher se libertando das convenções sociais depois de muitos anos se doando à família. Aborda a quebra do modelo patriarcal num país conservador, a Geórgia, e propõe um olhar para os desejos próprios da mulher sem a pressão e intromissão familiar.
Em uma sociedade patriarcal, uma família georgiana comum vive com três gerações sob um mesmo teto. Todos ficam chocados quando Manana (Ia Shugliashvili), 52 anos, decide sair da casa de seus pais e morar sozinha. Sem sua família e seu marido, uma viagem para o desconhecido começa.
A rotina diária de Manana é caótica, não sobra espaço para si mesma, ela é uma professora dedicada e ajuda no sustento da casa que divide com mais seis pessoas, portanto, não há descanso, sua mãe é o alicerce da casa e sempre está preocupada com a cozinha, os afazeres e reclama de tudo, o pai está doente e cada vez mais ranzinza, os filhos são distantes e fazem o que bem querem, o namorado da filha também mora lá e o marido é acomodado por ser benquisto, e quando Manana sai de casa todos ficam querendo encontrar um motivo, pois ele é considerado um bom marido. Manana é invisível naquela casa, age conforme as tradições, mas ela não suporta mais sorrir sem ter vontade e ter que se anular, não sente prazer nenhum em sua vida, pois se metem até nas pequenas coisas, como comer bolo no lugar do jantar, se acham no dever de dar suas opiniões, mas todo esse cansaço não reflete desamor, não quer dizer que não gosta de seus filhos e que os está abandonando, até porque eles são adultos, o momento de voar chegou e Manana aluga um apartamento simples, mas arruma do seu jeitinho, somente um sofá, chá ou vinho, livros, música e a visão das folhas sendo balançadas pela brisa; o sossego, a liberdade de ser quem ela é, sem conversa fiada e regras a seguir.
Apesar da história se passar na Geórgia, um país muito conservador, o teor é universal, e a maneira introspectiva com que a história se desenrola dá a possibilidade de olhar tudo pelo próprio olhar de Manana, ao contrário de sua família ela é calada e não briga com ninguém, apenas quer se recolher, isso mostra o tabu existente nas escolhas da mulher, pois quando se inverte os papéis, a mulher se afastando da casa, as pessoas ficam espantadas querendo saber o motivo, é um escândalo. 

Manana se sente sufocada e angustiada, não há espaço para as suas vontades, e é bonito ver em seu semblante a lenta transformação que ocorre quando sai de casa, o peso da imposição indo embora, essa é uma perspectiva bonita do filme, mas a trama concentra-se na discussão gerada a partir da decisão de Manana, as conversas em torno, os mais velhos indo aconselhá-la, a figura paternal, o irmão, por exemplo, querendo se intrometer demais sob um pretexto de proteção e cuidado, e os filhos, jovens indo por essa linha de pensamento machista e retrógrada, o quanto os outros se importam com o status e parecem saber mais da vida alheia do que da própria, como na festa em que reúnem-se velhos amigos da escola e as mulheres fofocando na frente dela mesmo, primeiro chocadas com a "separação" e elogiando o marido, para logo depois soltarem papos dos quais nem mesmo Manana tinha conhecimento. 

"My Happy Family" carrega uma ironia forte no título, abrange todos os conflitos femininos, a imposição de casar e ter filhos, construir a família perfeita para os outros, se anulando e fingindo felicidade, vale ressaltar mais uma vez que esse sentimento que Manana sente de ir e abraçar-se não quer dizer que não ame seus filhos ou seus pais, mas é uma necessidade de se livrar da sensação de aprisionamento desse conservadorismo, e de fato encontrar a felicidade em pequenos momentos, como escutar a música que gosta, comer um bom pedaço de bolo e sendo o que ela realmente é sem a obrigação de agradar ninguém. É um filme indiscutivelmente bem realizado, crítico, sensato e importante.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Se os Gatos Desaparecessem do Mundo (Sekai Kara Neko ga Kietanara)

"Minha vida até agora... vindo do passado até hoje, e caminhando para o futuro infinito... Não, eu nunca tinha pensado coisas como “futuro”. Pensei que era apenas natural que eu tivesse de enfrentar o amanhã. Beber café, cuidar do meu gato, tomar o café da manhã e ir trabalhar. Eu só continuava assim, com nada de especial em mente."

"Se os Gatos Desaparecessem do Mundo" (2016) dirigido por Akira Nagai, baseado no romance homônimo do produtor Genki Kawamura, conta a história de um carteiro que descobre não ter muito tempo de vida, devido a uma doença terminal. O outro eu dele aparece na sua frente e oferece prolongar sua vida em troca de alguma coisa que possa desaparecer do mundo. Ele pensa sobre seu relacionamento com ex-amigos, ex-amantes, parentes e colegas que ficariam tristes quando ele morrer. 
Com sutileza e simplicidade reflete-se o quanto as nossas vivências e nossas memórias não podem ser substituídas, o que passamos, seja situações boas ou ruins, os elos que formamos devido afinidades, o convívio difícil com nossos pais, não adianta querer apagar, pois é isso que nos transforma, a vida é repleta de melancólicos instantes prazerosos, e o estilo do filme tem essa aura de tristeza boa, aquela sensação de sabermos que a vida vai acabar, mas que alguma coisa de nós sempre fica.
O carteiro (Takeru Sato) vive apenas com seu gato Kyabetsu (repolho), um dia sente uma forte dor de cabeça e cai de sua bicicleta, no hospital o médico diz que já não há o que fazer, seus dias estão contados, de volta pra casa encontra uma espécie de diabo que tem a sua aparência, após o susto ouve a proposta sugerida, se ele escolher alguma coisa do mundo para ser apagada ganhará mais um dia de vida, mas todas as lembranças relacionadas a esse objeto sumirão. Depois que aceita percebe que as coisas escolhidas pelo "diabo" sempre têm muito valor emocional, como o celular, que através de uma ligação por engano conheceu a ex-namorada, o relógio, um objeto totalmente ligado ao pai, um homem calado que dedicou a vida ao ofício de relojoeiro e que ele o interpretou a vida toda de um jeito do qual na verdade não era, depois os filmes que o leva ao amigo que o incentivou a nutrir amor pelas histórias e que a cada dia lhe sugeria um título, quando chega a vez dos gatos, o jovem se dá conta que nada é maior do que as lembranças que a vida vai costurando, ele relembra os momentos com a mãe e a importância da relação entre eles juntamente com a presença de um gatinho, tudo teria sido bem diferente se não existisse o gato, ele simboliza o amor, a proteção, a força que ela teve que ter perante uma doença, por exemplo, são momentos que jamais poderiam ser apagados por um desejo egoísta. 

Por mais óbvia que possa ser a mensagem não deixa de ser importante, pois é passada de um jeito bonito e é uma maneira de nos lembrar para não ter medo e aceitar o fim, a vida não é feita apenas de alegrias, nela construímos relações, trocamos e dividimos conhecimentos, temos momentos ruins e outros inesquecíveis, um quebra-cabeças de emoções que traduz quem somos, não adianta querer apagar algo, porque tudo está relacionado, se deletar um momento não muito agradável certamente várias lembranças boas se vão junto, como quando chega no instante de apagar os gatos ele pensa em tudo que passou com a mãe, situações tensas e difíceis, mas também recheadas de afeto, o gato é um símbolo que o une com a mãe e isso jamais poderia ser destruído, assim como com todas as outras coisas que foram excluídas.

"Se eu morresse, teria alguém que choraria por mim? E claro, você poderia enfrentar a manhã seguinte como se nada mudasse nesse mundo?"

É um filme sensível e que inevitavelmente faz com que olhemos para dentro de nós, toca em assuntos delicados, como a morte, porém retrata bastante os laços familiares e o como o amor pode ter várias maneiras de ser demonstrado ou até não ser, como o pai com ações que deixava implícito o sentimento, também o como supomos que nossos pais nos enxergam e o como verdadeiramente eles nos veem, a carta que a mãe deixa ao filho revela o quanto nos equivocamos durante a vida. "Portanto, a partir de agora, tente acreditar nisso e mostre o seu lado bom. A boa parte de você. Você sempre ficou do meu lado. Quando alguém está feliz ou triste você fica perto deles gentilmente... Seu adorado rosto adormecido e seu cabelo encaracolado... Seu hábito de tocar o nariz inconscientemente... O seu comportamento quando se preocupa com as pessoas ao seu redor mais do que o necessário... Quando você nasceu, não sabe como o meu mundo se tornou bonito e brilhante."
"Se os Gatos Desaparecessem do Mundo" até engana sendo um drama fofo japonês, mas é um drama profundo com reflexões agudas sobre o valor das relações, dos momentos vividos e de que nada disso pode ser substituído. Poesia pura!

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

O Dia Depois (Geu-hu)

"O Dia Depois" (2017) dirigido pelo prolífico Hong Sang-soo (Hahaha - 2010, Na Praia à Noite Sozinha - 2017) segue a mesma fórmula de seus outros filmes, em tom pessoal e intimista, cenas com longos planos fixos em que personagens sentados à mesa bebem e conversam. Retrata momentos cotidianos, mas extraem deles reflexões profundas sobre a  vida de modo simples e com uma boa dose de humor. Acompanhamos ao longo de um dia relações instáveis, as consequências de se entregar ao desejo, conflitos e hipocrisias. 
É o primeiro dia de Areum (Kim Min Hee) em uma pequena editora. Bongwan (Hae-hyo Kwon), seu chefe, terminou há pouco tempo o relacionamento que mantinha com a funcionária (Kim Sae-byeok) que trabalhava ali anteriormente. Ainda nesse mesmo dia, Bongwan, que é casado, sai de casa na manhã escura e parte para o trabalho. Sua esposa (Jo Yoon-hee) encontra um bilhete de amor, explode em fúria no escritório e acaba confundindo Areum com a mulher que ele deixou.
A estética do filme chama a atenção, um preto e branco luminoso, o clima lembra muito os filmes da Nouvelle Vague, os longos diálogos, a câmera fixa que de repente dá um zoom no rosto de algum personagem e as situações cotidianas. Bongwan vive um dilema, tem uma amante, sua ex-funcionária, mas não quer terminar seu casamento, a cena inicial em que a mulher o questiona sobre ele ter um caso enquanto come e nada fala já nos fisga para a história, ele não está mais com a amante, mas mesmo assim sai para o trabalho de madrugada, o que irrita e deixa a sua esposa desconfiada, nesse mesmo dia Areum é contratada e não esconde sua admiração pelo chefe, os dois almoçam juntos e dissertam sobre algumas coisas, mas Areum não espera que esse seu primeiro dia seja também o último, pois além de ser agredida pela esposa de Bongwan ao ser confundida com a amante, também precisa lidar com os sentimentos instáveis dele, principalmente quando aparece sua ex-funcionária. A trama é toda fragmentada e por conta disso podemos visualizar muito bem o comportamento de Bongwan que oscila em seus sentimentos e decisões, por exemplo, na cena em que Areum é agredida e quer sair da editora e ele pede para que fique e logo que a amante chega desfaz o que disse. O tom cômico está bastante presente, diversas situações constrangedoras, e a música que toca insistentemente em momentos sérios torna tudo ainda mais risível.

A narrativa fragmentada nos permite observar por vários ângulos a história e em muitos momentos a câmera foca no ouvinte e não em quem fala, nos fazendo imaginar a perspectiva que cada um tem da conversa. Bongwan não consegue se decidir, sofre com o peso de trair sua esposa, mas se acovarda diante da hipótese de terminar, se entrega ao desejo, mas não assume nada, e Areum sofre por esse comportamento volátil do chefe, mesmo o admirando como profissional. O diálogo entre os dois na mesa de um restaurante é uma das melhores cenas, eles falam sobre a existência, por vezes passando pelo niilismo, mas Areum contesta seus pensamentos com um brilho próprio.

"O Dia Depois" marca por seus diálogos naturais intercalados por pausas reflexivas, discute-se os conflitos existenciais, a inconsistência e a fragilidade dos sentimentos e relações, a hipocrisia e o vazio, tudo desenvolvido com sutileza, pontuado por um tom cômico e permeado por uma aura melancólica belíssima. 

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Bom Comportamento (Good Time)

"Bom Comportamento" (2017) dirigido pelos irmãos Safdie (Amor, Drogas e Nova York - 2014) é um filme que consegue transmitir toda a ansiedade e loucura para o espectador, o protagonista interpretado maravilhosamente por Robert Pattinson nos instiga a percorrer junto dele por uma alucinante noite e sentir todas as vibrações que advém de uma série de situações-limite.
Após um malsucedido assalto a banco, Constantine Nikas (Robert Pattinson) vê seu irmão mais novo (Bennie Safdie) sendo preso e embarca em uma odisseia no submundo da cidade em que vive, numa tentativa cada vez mais desesperada e perigosa para tirar seu irmão da prisão. Ao longo de uma noite repleta de adrenalina, Constantine encontra-se em uma onda de violência e caos enquanto ele corre contra o relógio para salvar seu irmão e ele mesmo, sabendo que suas vidas estão por um fio.
O filme inicia-se com uma consulta psicológica em que Nick, interpretado por um dos diretores, Ben Safdie, vai colocando pra fora seus traumas, claramente ele sofre de algum problema mental, mas Constantine não gosta que tratem ele como uma criança e interrompe a consulta violentamente e promete um futuro bem melhor a seu irmão, seu plano é roubar um banco disfarçados, e é aí que o ritmo frenético entra em cena e persiste até o final. Nick acaba sendo preso e Constantine entra numa fissura de tentar de todas as maneiras livrá-lo, o que se sucede é um emaranhado de coisas que só pioram tudo. Constantine vai agindo impulsivamente com decisões equivocadas arrastando para o abismo todos que se aproximam dele.

O estilo alucinante conversa com a trilha sonora eletrônica de Oneohtrix Point Never, assim como a fotografia escurecida e brilhante do neon criando uma atmosfera tensa e suja. Robert Pattinson como Constantine impressiona, o desespero e a confusão o cerca o tempo todo e por muitas vezes ele manifesta uma frieza que se faz necessária para que escape da situação, Constantine é só um cara que apostou suas fichas num assalto e perdeu, com o desejo de "salvar" o irmão e se dar bem entra numa espiral de acontecimentos que o fará deixar a moral de quando em quando de lado, mas em nenhum momento julga-se o personagem, ele está apenas sem rumo e tentando acertar com os poucos recursos que têm, suas escolhas refletem o meio decadente em que vive.

A composição do personagem é algo a se destacar, a câmera enfatiza o tempo todo os trejeitos, o olhar vidrado e perdido e o como ele conduz o que vai lhe acontecendo numa sufocante corrida contra o tempo, essa sua saga vai arrastando tudo ao redor e nos transporta também por essa nebulosa noite. 
"Bom Comportamento" é visceral e extasiante, com um roteiro bem amarrado e final coeso, sem dúvida, uma grande surpresa.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Nocturama

"Nocturama" (2016) dirigido por Bertrand Bonello (Tirésia - 2003, Saint Laurent - 2014) é um filme que toca num assunto atual e polêmico, a pseudo-conscientização, onde falta conhecimento e sobra ímpeto. Uma história tensa apesar de caminhar lentamente e que fisga por sua bela fotografia, cenários magnificentes em longos planos panorâmicos, e claro, a reflexão sobre a contradição que permeia os ideais dos jovens, a banalização dos movimentos políticos e o quão isso vem afetando cada vez mais o mundo. Paris tem sido alvo constante do terrorismo, e por isso se torna ainda mais atrativo, passamos o filme todo tentando encontrar respostas para os atos, mas só enxergamos um anarquismo sem propósito. Dentro deste tema, jovens contra o consumismo, há um brilhante filme alemão, "Edukators", que disserta melhor sobre.
Em Paris, um grupo de jovens de diversas origens se organiza para planejar uma série de atentados terroristas. Quando todas as bombas explodem e a cidade se transforma num caos, eles se escondem num centro comercial durante a madrugada. Enquanto esperam o tempo passar, pensam sobre as possíveis consequências de seus atos e sobre eventuais falhas capazes de comprometer o plano. O filme propõe uma perspectiva diferenciada, sem estigmatizações, os jovens são de diferentes origens, mas todos bem vestidos, apreciadores de música eletrônica e que inspirados pela revolução francesa arquitetam um plano e implantam bombas em prédios importantes e estátuas, como o palácio do Ministério do Interior, a Global Tower no centro financeiro, a estátua de Joana D’Arc, entre outros. Acompanhamos cada passo e sentimos a ansiedade e tensão juntamente a eles, quando tudo explode se escondem em um shopping center, lá ao invés de acompanharem as notícias, estão mais interessados em matar o tédio e assim usufruem do bom e do melhor, trocam de roupas, inclusive encontrando seus clones em manequins, ou seja, o local que é um antro de consumo foi deixado ileso e tido como um esconderijo seguro, nesta parte é impressionante analisar que independente de ideais o ser humano se sente confortável e amparado nestes locais de consumo, e o mais bizarro é que são imunes e parecem não pertencer aos símbolos de poder que esses jovens destruíram. As consequências é o que menos importa, o número de mortos e as notícias que passam na TV são julgadas falsas por eles, preferem se alienar ouvindo música e pegando o que lhes interessa das lojas. Há inúmeros simbolismos espalhados e o paradoxo é gritante.

Chega um momento que o medo se instaura, a polícia vai para matar e eles sabem disso, não há como se esconder ou se redimir, os instantes finais angustiam pela crueza, os olhos dos personagens arregalados, movimentos estressados, desmantela-se a imagem do início, jovens seguros de sua ideia de revolta, da violência como protesto, da rebeldia contra o sistema, e terminam como jovens inseguros, medrosos, inconstantes e vazios de seus princípios, contaminados por um espírito revolucionário mentiroso e banal.

"Nocturama" é uma obra bem estruturada, o terrorismo ganha um tom enigmático e impactante, uma perspectiva assombrosa dos nossos tempos e inteligente ao desmanchar estereótipos e motivações.

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Ma' Rosa

"Ma' Rosa" (2016) dirigido por Brillante Mendoza (Lola - 2009, Vosso Ventre - 2012) assume um tom documental, câmera na mão, ágil, nervosa, acompanhamos a história de Rosa, suas interações, controlando tudo ao redor, comprando comida, cobrando dívidas e gerenciando seu pequeno comércio que esconde a venda de drogas, uma vida de pobreza tão semelhante a tantos outros lugares do mundo. É um retrato inquietante e cada vez mais corriqueiro, o tráfico de drogas de pequeno porte e a corrupção da polícia que abusa dessas pessoas. 
Em Manila, cidade que é a capital da República das Filipinas, vivem Rosa, Nestor e seus três filhos. Eles possuem uma pequena mercearia, um negócio familiar no qual trabalham. No entanto, a aparentemente calma rotina da família e do estabelecimento comercial é apenas uma fachada para que Rosa e Nestor possam vender metanfetamina. Certa noite, a polícia chega no local com o objetivo de acabar com a operação criminosa e prender Rosa e Nestor.
Filmado durante a estação de chuvas, o clima abafado dá o tom de sufocamento diante aos acontecimentos, quando Rosa e Nestor são presos as atitudes cada vez mais absurdas dos policiais vai nos dando enjoo, o crime de tráfico de drogas tem pena grave nas Filipinas, por isso a prática de extorsão é muito comum, mas em nenhum momento julga-se, afinal é uma escala hierárquica abusiva, ao analisar o caso pedem um valor da fiança/propina, e é aí que entra os filhos de Rosa para tentar juntar esse dinheiro pedindo a familiares e amigos, essa saga deles é retratada com muito realismo e vários sentimentos surgem, como desespero, humilhação, esperança, em meio a tanta coisa ruim acontecendo eles têm a união e o amor por tudo o que a mãe representa, uma matriarca forte e zelosa. 
O longa apresenta uma história dura que expõe as mazelas da sociedade, a pobreza, o tráfico de drogas, a corrupção policial, tudo envolto por um realismo nervoso, por mais que o desenrolar tenha algo de moroso é impossível não se envolver, a montagem é ótima ao sempre estabelecer um clima tenso, também há momentos de humor que revela o jeito como os policiais agem, são longos planos dentro da delegacia, enquanto analisam o caso e pedem para que Rosa denuncie seu fornecedor, bebem e comem à custa do dinheiro de propina, uma imagem aparentemente estereotipada, mas, que infelizmente, sabemos que é assim mesmo, outro ponto é a sutileza, que se encaixa dentro dos acontecimentos e vão denunciando todo o caos.

Não é difícil se apegar a figura de Rosa, uma mulher que busca o sustento de casa com muito suor, pensa nos seus filhos, nas dívidas e diante disso tenta vencer a pobreza com a venda de drogas, uma situação comum em muitos lugares do mundo e por isso soa tão familiar. É um filme que angustia por vermos a polícia tirando ainda mais do pobre, Rosa não é um "peixe grande", como dizem, assim como seu fornecedor, mas perante a possibilidade de ganhar um a mais e por conta também da lei do país, agem na encolha e fazem este tipo de negociação, me dá tanto e tá livre. Os filhos de Rosa agem em conjunto demonstrando gratidão, e é bonito ver que por mais sofrimento que estão passando e irão passar para pagar depois todos que ajudaram há uma perspectiva de "vamos em frente".

"Ma' Rosa" é um alerta, Brillante Mendoza traça um retrato honesto e enervante de seu país, mas que conversa com qualquer outra parte pobre do mundo, filme forte, crítico e real. Destaque para a maravilhosa atuação de Jacklyn Jose como Rosa, sua postura e olhar transpassa a tela e nos atinge em cheio, especialmente, na cena final. 

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

The Square

"O Quadrado é um santuário de confiança e cuidado. Dentro dele, todos compartilhamos direitos e obrigações iguais."

"The Square" (2017) dirigido por Ruben Östlund (Força Maior - 2014) é um filme que expõe uma perspectiva crítica à elite cultural europeia, em especial, a sueca, e disserta o como a arte vem sido repelida ao invés de provocar curiosidade, questões como os limites e o vazio das obras, há uma crise dentro desse universo e mesmo que a história gire em torno da sociedade europeia, percebemos que o sentido da arte contemporânea anda sendo questionado no mundo todo, além disso coloca em ênfase a contradição, enquanto uma obra em exposição sugere solidariedade, colaboração e empatia, os atos são completamente opostos, onde retrata uma população solitária, vazia e sem qualquer traço de cuidado com o outro. A medida que o filme avança vamos somando itens e refletindo sobre eles, a cada cena sugere-se mais de um significado.
Christian (Claes Bang), curador de um museu está usando de todas as armas possíveis para promover o sucesso de uma nova instalação. Entre as tentativas para isso, ele decide contratar uma empresa de relações públicas para fazer barulho em torno do assunto na mídia em geral. Mas, inesperadamente, isso acaba gerando diversas consequências infelizes e um grande embaraço. As situações vão se costurando, enquanto está rolando a polêmica divulgação da nova obra, Christian está interessado mais em recuperar seus pertences roubados, o que demonstra todo o seu egoísmo e seu ar de superioridade, as discussões morais que se sucedem revelam o absurdo e a todo instante ele é confrontado pelos valores que defende. Há uma gama de assuntos permeados por um humor desconfortável, pois revela a hipocrisia do politicamente correto, onde pregam o amor e disseminam descaso, diálogos sobre solidariedade ao mesmo tempo que passam por mendigos, no caso, imigrantes, que são invisíveis ou alvos de preconceito por essa mesma elite que engana com supostos trabalhos sociais. Christian não é um ser humano execrável, mas acompanhamos toda a fragilidade que existe nessa teoria do ajudar, ao mesmo tempo que demonstra o outro lado, a vítima abusando por perceber o medo nas pessoas. 
O filme segue como uma série de episódios e possui sequências fantásticas, como a da apresentação do homem que imita um gorila, interpretado magistralmente por Terry Notary - especialista nessa habilidade corporal, ele caminha por um salão requintado repleto de conhecedores da arte e filantropos, a performance é violenta, assustadora, o comportamento dele depende do como reagem, essa cena foi inspirada em uma performance de 1996 do russo Oleg Kulik em Estocolmo, que incorporando um cachorro agia conforme o público reagia a ele, claro que essa extravagância não acabou bem, assim como no filme.

Tudo que está sendo exposto pode ser considerado arte, inovação, metáfora, símbolos para as angústias, crises e vazios da atualidade? A arte é desprezada pela população comum, não há interesse em algo que não foi feito para compreender, parece alimentar apenas um grupo de pessoas, um nicho que se finge de culto para parecer superior aos demais. O monte de cascalho sendo varrido pelo faxineiro por confundir com sujeira - também inspirado em casos reais - é a demonstração da irrelevância da obra, não há substância, verdade, apenas ilusão, interesses, e poder. A preocupação social que essa elite demonstra é puro fingimento, não passa de palavras e passatempo.
Christian por conta do desencadeamento do roubo dos seus pertences e sua ideia para tê-los de volta passa por momentos que o aproximam da realidade, o garoto que vai atrás dele por se sentir rebaixado e para que ele peça desculpa pelo mal-entendido é apenas uma das circunstâncias embaraçosas do emaranhado social e que não chega nem próximo dessas teorias de politicamente correto e ideias de amor ao próximo.

O filme joga variadas cartas políticas e sociais recheadas de referências e o espectador vai juntando-as e criando uma ampla rede de reflexão. Ruben Östlund exibe sua genialidade ao caminhar entre muitos tipos de conhecimentos, cinema, fotografia, música, arte, crítica social, o que gera um aglomerado de situações que nem sempre se conectam, mas que abrem um leque de interpretações.
"The Square" reflete a dificuldade de se agir conforme os próprios valores, além de questionar os limites e o valor da arte na sociedade, o como ela está fechada em conceitos e passando longe da realidade, essa que os artistas dizem representar em suas obras; os excessos absurdos do marketing nas redes sociais, o vazio, o comodismo que a condição social produz, o egocentrismo, relações distantes e sem valor. São inúmeras as camadas, é um filme que pede revisão, certamente cada vez agregando e produzindo reflexão.