sexta-feira, 27 de março de 2015

Relatos Selvagens (Relatos Salvajes)

"Relatos Selvagens" (2014) do diretor Damián Szifron é mais uma ótima amostra do grande potencial do cinema argentino em trazer histórias inteligentes contendo reflexões e críticas, mas que que não deixam de dialogar com o grande público. A soma de qualidade narrativa e entretenimento já virou a marca do cinema dos hermanos.
As seis crônicas urbanas são recheadas de vingança, humor negro, e há muita paixão no modo com que são expostas. Não tem como ficar indiferente a elas, mesmo que uma ou outra seja menos interessante ou impactante, a fórmula utilizada é sem dúvidas envolvente e o filme realmente merece muitos elogios. Como o título sugere a trama oferece relatos de selvageria humana, explosões de raiva, desejo de vingança, ações um tanto questionáveis permeadas por um humor cáustico.
Antes dos créditos de abertura é retratado o relato "Pasternak", do qual ocorre dentro de uma viagem de avião, uma conversa comum acontece entre a modelo Isabel (Maria Marull) e Salgado (Dario Grandinetti), mas de repente um nome vem à tona, Gabriel Pasternak, um antigo namorado da moça; então outros ao ouvir tal nome dizem conhecer o rapaz e descobrem ser ele o piloto, a coincidência de estarem no mesmo voo impressiona, e daí para a tragédia é rápido. Carregado no humor negro o filme se inicia de forma surpreendente.
A segunda história que vemos tem o título de "As Ratas" e se passa num bar. Em uma noite chuvosa, a atendente (Julieta Zylberberg) descobre que o seu único cliente (Cesar Bordon), um influente empresário e agora candidato à prefeito foi o homem que destruiu sua família fazendo com que seu pai se suicidasse. Muito nervosa ela conta para a cozinheira (Rita Cortese), esta lhe propõe algo inusitado. Em seguida vem "O Mais Forte", que mostra o quanto o ser humano se modifica atrás do volante, talvez um dos momentos em que seu instinto violento mais se revele. Esse se aproxima da realidade e faz com que muitos se identifiquem, o relato é exagerado exatamente para criticar o comportamento abissal que se passa no trânsito. O executivo Diego (Leonardo Sbaraglia) dirige seu carro importado pela estrada e xinga um motorista (Walter Donado), que dificulta sua passagem, só que mais adiante o pneu do carro do magnata fura e é obrigado a sair de seu conforto e tentar trocá-lo, tempo suficiente para o cara do carro velho alcançá-lo. O que se segue é algo ridículo e lembra desenhos animados tamanha surrealidade que chega a crueldade.

"Bombita", a quarta história traz Ricardo Darín, que vive o engenheiro Simon, um especialista em demolição. Ele começa a ter alguns problemas com a fiscalização de trânsito argentina, reclama por ter seu carro guinchado e pela multa abusiva sendo que no local não havia nenhum tipo de aviso indicando que não poderia estacionar, as multas injustas e a burocracia que se inicia juntamente com o descaso é impressionante, não há opção, ou você paga, ou paga; e então ele faz o que todos gostaríamos de fazer...
O quinto relato, "A Proposta", retrata o como as pessoas com grande poder se sentem privilegiadas a ponto de distorcer e moldar a realidade como quiserem, pois segundo elas todos têm seu preço. Um jovem, filho de um importante milionário (Oscar Martínez), acaba atropelando a matando uma mulher grávida ao dirigir bêbado, e claro não prestou socorro. O advogado da família dá a ideia de colocar a culpa no caseiro (Gérman de Silva), que trabalha anos e anos lá. Histórias deste tipo acontecem aos montes e esse é o único segmento que se utiliza de um desfecho diferente.
A última história "Até que a Morte nos Separe", conta sobre uma festa de casamento um tanto quanto inusitada. Seu início se dá de forma completamente normal, pessoas bebendo e dançando, entre abraços e felicitações a noiva Romina (Érica Rivas), descobre que seu noivo Ariel (Diego Gentile) está de caso com uma mulher de seu trabalho, daí o melodrama e a vingança entram em cena.
Raiva, revolta, desespero, o que se é capaz de fazer em momentos que o limite é testado?

Várias situações no cotidiano que são desencadeadas por estresse emocional acabam por se tornar cômicas. "Relatos Selvagens" tem um humor negro de primeira, um roteiro crítico, ácido e eficaz, todas as histórias são ótimas, tem atuações impecáveis e a trilha sonora complementa perfeitamente.
Uma obra para ser apreciada e elogiada, discute sobre temas sociais, além de evidenciar do que o ser humano é capaz quando deixa seu lado animal sair.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Cavalos e Homens (Hross í Oss)

"Cavalos e Homens" (2013) dirigido pelo islandês Benedikt Erlingsson é um filme estranho mas interessante, também é impossível defini-lo, há uma pitada de humor negro na maneira em que as situações são expostas, o modo de vida, o comportamento e sobretudo quando observamos os personagens pelo olhar dos cavalos. É um conto bem típico vindo desta terra tão enigmática chamada Islândia.
O destino de pessoas visto através do olhar dos cavalos. Um romance rural sobre o lado humano nos cavalos, e o cavalo dentro de cada ser humano. O amor e a morte se cruzam com sérias consequências. Em um vilarejo Kolbeinn (Ingvar Eggert Sigurðsson) desfila elegantemente com sua égua enquanto os vizinhos o contemplam com binóculos, ele está indo visitar Solveig (Charlotte Bøving), uma viúva em que está interessado. Após tomarem o chá Kolbeinn se despede e monta em sua linda égua, da qual faz o garanhão de Solveig enlouquecer arrebentando a cerca e ir atrás dela. A primeira situação constrangedora do filme se dá aí, Kolbeinn montado na égua no momento em que o coito acontece. O poster do longa exibe essa cena. O homem fica extremamente envergonhado e sai em disparada, pois os vizinhos viram através de seus binóculos. O que vem a seguir é o abate da égua, a situação foi o limite do que Kolbeinn poderia aguentar.
Todas as consequências se revelam de algum modo embaraçosas, acontecem outras historietas um tanto absurdas, como a morte do homem que se põe ao mar com um cavalo e segue até o navio para pegar bebida e não ouve quando os homens o alertam para tomar cuidado com a vodca que é extremamente forte. Há ainda um outro que se irrita com as demarcações feitas no terreno pelo vizinho, e Juan (Juan Camillo Roman Estrada), um turista latino que se perde em uma cavalgada no meio do nada e é obrigado a fazer algo muito drástico para sobreviver.
A situação em que os vizinhos bisbilhotam os passos do personagem reflete bem o como os outros "cuidam" da vida das pessoas para esquecerem de suas próprias, e esperam fortemente que algo não dê certo para que não sejam os únicos a fracassar em algum ponto. O constrangimento da cena do coito causou tanto ódio em Kolbeinn que o fez matar a égua apesar do amor que sentia. O medo do julgamento está a todo instante ao lado do ser humano e a moral é a grande vilã desta história.

O filme é frio e não consegue envolver de fato, mas tem suas belezas, como a paisagem melancólica e solitária da Islândia. Os cavalos retratados são um show a parte, lindos, elegantes, observadores e selvagens. Os humanos se tornam animais por muitas vezes, mas no pior sentido da palavra.
Situações tragicômicas permeiam a história com personagens peculiares em um ambiente lindíssimo rodeado por uma sensação de sentir-se completamente livre.

Não se pode lutar contra a natureza e isso fica claro com os animais, desprovidos de moral são seres puros. Uma das cenas finais em que Kolbeinn faz sexo com Solveig ao ar livre em meio a uma cavalgada em grupo retrata a complexidade do ser humano e o deixar-se levar pelos desejos animalescos.
Dá para tirar algumas reflexões e se encantar com a estética, para os curiosos "Cavalos e Homens" é uma ótima experimentação.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Shun Li e o Poeta (Io Sono Li)

"Confuso entre os erros, estava o caminho."

"Shun Li e o Poeta" (2011) marca a estreia do diretor Andrea Segre que nos fascina com tamanha poesia envolvida em sua história. O filme é uma joia rara e elogiá-lo se torna uma tarefa muito fácil.
Shun Li é uma imigrante chinesa que trabalha em uma oficina têxtil nos limites de Roma e está há oito anos tentando obter documentos para trazer seu filho para a Itália. Subitamente, ela é transferida para Chioggia, uma pequena cidade do Vêneto, onde passa a trabalhar como garçonete em uma taverna. Lá, ela conhece Bepi, um pescador de origem eslava, conhecido como "O Poeta", e que tem frequentado o local por anos. A amizade que surge entre ambos é uma fuga poética da solidão e um diálogo silencioso entre culturas diferentes. Shun Li (Tao Zhao) tenta se virar para falar a língua italiana e esse é mais um dos motivos que faz do filme um encanto. Obrigada a trabalhar no bar pelos homens da máfia chinesa que a trouxeram, ela espera conseguir pagar a dívida para que eles possam trazer seu filho. Nesta pequena cidade rodeada pelo mar adriático e a lagoa de Veneza, a beleza resplandece aos nossos olhos.
Aos poucos Shun Li aprende a preparar cafés e conhece os frequentadores do local, também lida com preconceitos e as diferenças culturais, ela é esforçada e a sua maneira graciosa porém silenciosa acaba agradando grande parte daqueles pescadores que sempre se encontram por lá, em especial o simpático Bepi (Rade Serbedzija). Os dois travam uma amizade inesperada e que confunde os outros, pois todos pensam que Bepi está apaixonado, mas a relação deles é muito mais que isso, é uma mistura de afinidades e diferenças, uma junção de suas solidões e saudades. No silêncio eles se entendem, não há qualquer tipo de julgamento ou preconceito, são apenas dois seres humanos trocando afetos.
Shun Li divide um quarto com uma colega em cima do restaurante e é proibida de ter qualquer tipo de contato com os italianos, em certo momento a relação dela com Bepi é posta em risco e Li precisa se distanciar senão sua dívida volta ao início. Bepi como está há muito tempo em Chioggia as pessoas nem lembram mais que é um estrangeiro, tem vários amigos pescadores que o chamam de poeta por sempre formar frases com rimas, mas de qualquer modo também é solitário. O filme é repleto de cenas tocantes, uma delas é quando Shun Li mostra para Bepi o culto ao poeta Qu Yuan, o mais importante da tradição chinesa.

Uma obra que exprime muito sentimento, a beleza é ampla, está nos personagens e seus detalhes, nos diálogos, nos silêncios e na paisagem úmida. Mesmo que o filme trate de um tema triste, como a situação de escrava em que Li se encontra e da xenofobia que recebe de alguns, o foco se dá no melhor do ser humano, e por isso nos faz sorrir e acreditar que existem pessoas das quais valem a pena conhecer e compartilhar sentimentos, e por mais que sejam diferentes entre si acabam se compreendendo em algum ponto. Com um roteiro simples nos apaixonamos por Shun Li e Bepi, tornamo-nos íntimos conforme o desenrolar e desejamos que fiquem bem. O ritmo é marcado por um caminhar delicado e pelas características dos personagens, a fotografia é lindíssima retratando a imensidão do mar, os barcos, as montanhas, e as peculiaridades da região.

A crítica sobre o como os moradores temem a onda de imigração é leve e o conto sobre solidariedade e amor ao próximo é fascinante. 
"Shun Li e o Poeta" é um filme aconchegante que nos traz apenas sentimentos bons e uma enorme vontade de dar um abraço em alguém.

sexta-feira, 20 de março de 2015

PK

"PK" é uma sátira religiosa feita através de um alienígena, um ser inocente que aos poucos vai percebendo que muitas coisas ruins são feitas em nome de Deus. O filme questiona várias religiões e nos passa uma mensagem realmente bonita. A princípio pode parecer sem sentido, mas engana-se quem pensa que é apenas uma comédia, existe uma infinidade de perguntas que o longa propõe ao espectador, porém não deixa de ter as características de um filme indiano, como as músicas acompanhadas das dancinhas, o que gera ainda mais beleza. A história passa por vários gêneros, tem fantasia, romance, drama, ação, suspense e muita comédia, também conta com diálogos super bem construídos, cenas memoráveis e atuações sensacionais. Aamir Khan (o galã de Bollywood), que protagoniza PK é caricato, tem um jeito peculiar de andar e se portar e a pureza do personagem só faz ressaltar as diferenças e os costumes do país.
O filme esclarece acerca das religiões e mostra um guru hindu que usa a necessidade de fé das pessoas para extorquir e se beneficiar, algo que acontece em outras religiões também. "PK" (expressão indiana usada para perguntar se uma pessoa está bêbada) causou polêmica antes de seu lançamento, vários líderes religiosos quiseram boicotar e queimaram cartazes por acharem que o filme desrespeita os deuses e deusas, mas isso aconteceu por conta de alguns fanáticos e gurus famosos, inclusive o diretor sabendo da repercussão deixou vários agradecimentos nos créditos do filme para importantes figuras da direita hindu e disse em resposta à polêmica que só é contra os enganadores e que respeita todo tipo de religião. Isso tudo influenciou mais as pessoas irem ao cinema e não demorou para que "PK" se transformasse na maior bilheteria da história de Bollywood, desbancando vários outros filmes vangloriados. Para quem ainda não sabe Bollywood é a maior indústria de cinema do mundo, muito característica e encantadora, só que como se produz muito também há bobagens lançadas, mas para quem deseja se aprofundar nesse universo mágico há uma infinidade de filmes maravilhosos.
Apesar da maior parte da população indiana ser Hinduísta, outras crenças nasceram na região, o Busdimo, o Jainismo e o Sikhismo, outras foram introduzidas, como o Cristianismo, o Zoroastrismo, o Judaísmo e o Islamismo, portanto é um caldeirão religioso que fervilha, são muitas tradições e costumes misturados. Em "PK" é exposto e até confunde, o personagem fica perdido e sem entender tentando encontrar o tal Deus que lhe falaram.

O longa de quase três horas diz sobre PK (Aamir Khan - "Como Estrelas na Terra" - 2007), um alienígena que pousa no deserto de Rajastão apenas com um colar luminoso que tem o poder de levá-lo de volta pra casa, ele acaba sendo roubado e perdido tenta entender o mundo que o cerca, entre várias aventuras aprende a língua local e decidido vai em busca do seu colar em Delhi, onde sem resultados ouve das pessoas que deve pedir a ajuda de Deus. A partir daí ele começa sua busca, faz perguntas que ninguém havia perguntado antes, inocentes, perguntas de criança, mas que trarão respostas catastróficas. As pessoas que pensam já estar estabelecidas são forçadas a reavaliar o seu mundo quando veem através dos olhos inocentes de PK. No processo de mudança, PK faz amigos leais e inimigos poderosos, conserta vidas destruídas e causa a desordem ao mesmo tempo. A curiosidade infantil de PK transforma-se em uma odisseia espiritual para ele e milhões de outros. O filme é uma exploração ambiciosa e exclusivamente original de complexas filosofias. Um conto simples e humano de amor, risos e deixar-se ir, uma saga que disserta sobre a amizade entre estranhos de mundos opostos.
Em sua inocência não enxergava limites e sem perceber se torna um cético provocativo, suas perguntas causam furor por não conseguir entender tantas diferenças, esteriótipos e rótulos. Enxergar, é isso o que PK proporciona, destruir conceitos morais, sociais e culturais impostos, como por exemplo, todo muçulmano é terrorista, não se pode confiar neles, todo budista é pacifista e vegetariano, todo cristão é pedante e incapaz de cometer erros, os hindus e a sua devoção à vaca, enfim não há uma marca registrada dizendo quem é o que. E acrescentando mais ainda a lista de esteriótipos, estão os adorados líderes religiosos, que na verdade em sua maioria são lobos e usam o nome de Deus para benefício próprio.

Uma das críticas do filme é que a religião separa ao invés de unir, pois foi algo que o homem criou complicando o que Deus simplificou. Cada um deve impor suas próprias regras e sabe no como e no que acreditar. "PK" é um filme leve apesar de tratar de um tema delicado, é divertido e surpreendente, os argumentos são inteligentes e mantém a sátira na medida exata fazendo com que cada pessoa que o assista tire as suas próprias conclusões, além de ter uma história completa que não deixa nenhuma ponta solta.
Um filme maravilhoso que mescla delicadeza e intensidade e se sobressai ainda mais pelas características tão marcantes que só o cinema indiano tem.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Tangerinas (Mandariinid)

"Tangerinas" do diretor Zaza Urushadze é um filme estoniano lindíssimo que retrata a inutilidade da guerra. 
A história acompanha Ivo (Lembit Ulfsak), que com a ajuda do produtor de tangerinas Margus (Elmo Nüganen) e do médico Juhan (Raivo Trass), salva a vida do checheno Ahmed (Giorgi Nakashidze) e do georgiano Niko (Misha Meskhi), em um povoado estoniano da Abecásia no meio da guerra de 1992. Neste ano estoura a guerra entre chechenos e georgianos pelas posses de terra da região da Abecásia, onde grande parte da população de estonianos acabou deixando o local. Entre os que ficaram está Ivo que vive isolado e fabrica caixas de madeira que são usadas para encaixotar as tangerinas cultivadas por seu amigo e vizinho Margus.
Um dia Ivo é surpreendido por dois soldados que pedem por comida e perguntam o porquê dele continuar lá em meio a guerra. Dias depois acontece um tiroteio na frente da casa de Margus, e Ivo se depara com aqueles dois soldados, um morto e o outro gravemente ferido. Ao enterrar os georgianos que morreram no ataque percebem que um ainda respira, e de repente Ivo está com um checheno e um georgiano dentro de sua casa. O checheno Ahmed e o georgiano Niko são cuidados por Ivo do mesmo jeito, pois tanto para Ivo como para Margus não importa a rivalidade, não existem lados, são dois seres humanos necessitando de ajuda, aos poucos eles vão melhorando e prometem acabar um com o outro, mas em respeito a Ivo uma trégua é feita. As ameaças são constantes e novamente tréguas são refeitas, Ivo os repreende como crianças e estes dois muito agradecidos vão tomando consciência, um vai vendo o lado do outro e convivendo aparece o lado humano e percebem que nem sabem pelo que estão lutando.
"Tangerinas" é um filme antibélico e de maneira linda consegue expor o lado mais bonito do ser humano. Ivo é um personagem emocionante, impossível não se encantar com seu jeito e suas palavras. Outro ponto bem bonito é a relação de amizade dele com Margus, um homem simples que cultiva suas tangerinas e cuja única preocupação é o fato delas estragarem.
É deveras tocante, pois nos lembra que se o ser humano respeitasse o outro por consequência as coisas se tornariam mais simples. Cada um tem o seu valor seja de que lugar for. Em um dos diálogos Ahmed diz gostar de música georgiana, e quando perguntado por Ivo sobre o direito de matar, o silêncio acaba sendo a sua resposta.

"Tangerinas" é um filme intimista, muito bem ambientado dando a sensação de vazio produzido pela guerra, e que promove um sentimento de otimismo em relação ao ser humano, sente-se orgulho dos personagens em muitas partes. É um longa imperdível que deveria ser visto por todos. Pouco importa quem chegou primeiro e quem tem o direito, todos merecem viver. A guerra destrói, ninguém sai ganhando. O recado que o personagem passa é valioso e nos faz sentir mais próximos uns dos outros. 
"Tangerinas" é daqueles filmes que transforma um tema pesado em algo prazeroso, é simples mas traz uma profunda e reflexiva mensagem sobre paz.

quarta-feira, 11 de março de 2015

O Lobo Atrás da Porta

"O Lobo Atrás da Porta" (2013) baseado num fato real que aconteceu nos anos 60 e ficou conhecido como "a fera da penha" é dirigido pelo estreante Fernando Coimbra. Sem dúvidas um filme nacional incrível, tem uma narrativa interessante e que prende o espectador, o clima de suspense permeia o longa que aborda vários pontos de vista da mesma história. Vale ressaltar a qualidade do roteiro, edição, fotografia, trilha sonora, e claro as atuações, tudo muito bem desenvolvido e que nos faz ter orgulho do cinema nacional.
Numa delegacia, um homem (Milhem Cortaz), sua mulher (Fabíula Nascimento) e a amante dele (Leandra Leal) são interrogados. Arrancados pacientemente pelo detetive (Juliano Cazarré), um após o outro, seus depoimentos vão tecendo uma trama de amor passional, obsessão e mentiras que levará a um final completamente inesperado. Um dia Sylvia ao ir buscar sua filha Clarinha na escola descobre que esta já tinha sido levada por outra mulher que disse ser amiga dela e da qual a menina abraçou. Sylvia e Bernardo vão até a delegacia, cada um vai dando depoimentos separados, Sylvia não desconfia de ninguém, mas Bernardo conta sobre sua amante Rosa, e logo é chamada para depor. A partir daí a história vai ganhando contornos cada vez mais estranhos que revelam-se em sentimentos de obsessão.
Leandra Leal compõe uma personagem intrigante e que evolui conforme o desenrolar de seu relacionamento com Bernardo, este que apenas foge de um casamento em crise, mas Rosa o quer somente para ela, e quando percebe que ele não deixará a esposa começa a se aproximar de sua família. Neste ponto o clima do filme ganha uma tensão diferente, um suspense maior toma conta e provoca ainda mais inquietações sobre seu desfecho. Fabíula Nascimento também está ótima ao encarar uma dona de casa comum que de repente se vê sem sua filha e envolta numa história pesada.
Uma obra a ser admirada em todos os quesitos, é tudo muito bem feito ao produzir em nós espectadores as sensações das mais diversas, pois os vários pontos de vista gera a desconfiança para com os personagens.

A complexidade da natureza humana é gigante, assim como a maneira de agir em certas ocasiões, principalmente quando envolve desejo, frustração e traição. Entender o que move o ser humano a tomar atitudes drásticas continua sendo uma incógnita. A personagem Rosa é enigmática e revela várias facetas, é delicada, ardente e vai se transformando amargamente em uma pessoa cruel, capaz de atos inesperados. O filme nos faz questionar o que leva alguém a cometer atrocidades e o que é preciso para que se perca a consciência e o lobo apareça.
O drama psicológico do longa é expressivo e prima pelos diálogos e expressões, também conta com uma fotografia excelente e acerta em cheio nas locações, todas bem próximas da realidade comum.

"O Lobo Atrás da Porta" é um filme brasileiro para se orgulhar, uma produção que conta com um bom diretor, ótimos atores e que traz uma nova perspectiva de cinema que trabalha bem os gêneros e se destaca por uma narrativa diferenciada mesmo que simples. Ainda que não tenha nenhum mistério em seu desfecho, consegue-se manter o suspense e mexer com nosso psicológico ao retratar os extremos do ser humano. 

segunda-feira, 9 de março de 2015

Mozart in the Jungle (Série)

"Mozart in the Jungle" produzida pela Amazon Studios e lançada em dezembro de 2014 foi inspirada no livro de memórias da carreira da oboísta Blair Tindall durante sua carreira profissional em Nova York, a série merece o reconhecimento pela temática que aborda, o universo, ou melhor, a selva, assim como o título diz, da música erudita. É retratado sexo, drogas, imperfeições, medos, inseguranças e muita música clássica.
A série acompanha a vida de dois personagens que estão em pontos opostos de suas respectivas carreiras. Um deles é Rodrigo, ex-prodígio que está no auge de sua carreira. Ele se torna o regente de uma orquestra sinfônica de Nova Iorque, onde ele precisa lidar com Thomas, um outro regente que já está estabelecido em sua profissão. A outra personagem é Hailey, uma jovem oboísta que está iniciando sua carreira. Dividindo-se entre concertos clássicos e festas regadas à cocaína e sexo, ela questiona seu futuro.
A primeira coisa que vemos é a sucessão dos maestros, Thomas (Malcolm McDowell) será aposentado e Rodrigo (Gael García Bernal), um maestro jovem que se comporta como um artista pop será seu sucessor, sua missão é trazer vivacidade e frescor para a antiga e tradicional orquestra. O maestro Thomas ao passar a batuta não fica muito feliz e essa tensão dá início junto a outras pequenas, mas também importantes situações que desencadeiam circunstâncias por vezes constrangedoras, e que ninguém imaginaria que ocorresse nesse meio.
A personagem Hailey (Lola Kirke) tenta uma vaga na orquestra, ela toca oboé e na audição Rodrigo acaba gostando, ele vê paixão na maneira que toca, mas na primeira apresentação fica nervosa e coloca tudo a perder. Ela é uma garota muito tensa, insegura, sem dinheiro algum e está em busca de seu maior sonho. Mas, depois do desastre de sua apresentação Rodrigo a convida para ser sua assistente, que na maioria das vezes consiste em fazer chimarrão e correr para lá e para cá atrás dele.
Um mundo vibrante e extraordinário nos é exposto, Rodrigo é um gênio, ama a música, mas sempre está em conflito, pois a verdadeira essência da arte não faz parte do glamour do qual está envolto, a sua mulher Ana Maria (Nora Arnezeder), uma virtuose do violino repudia esse mercado que se criou no ramo, é uma personagem de excessos e é dona das cenas mais interessantes.


Gael como Rodrigo está esplêndido, é uma alma devotada à música, mas vive entre dois pólos, ao mesmo tempo em que é considerado um gênio, também é aclamado pelo público como se fosse uma celebridade. Seu personagem tem um toque latino, o que faz toda a diferença, além de ser engraçado e ágil. Não dá para piscar quando ele aparece em cena. São muitos personagens e todos eles são bem trabalhados, não fica nada para trás, e há problemas de todo tipo, como competição, desdém, inveja, romance, vício em drogas, e a dificuldade em se manter uma orquestra também faz parte da trama.
Com 10 episódios de 30 min, a série se desenvolve de maneira natural e é como se observássemos um tipo de reality show de músicos. É deliciosa de se assistir, tem momentos engraçados e cenas apaixonantes envolvendo a música.


Os personagens são complexos, cada um lida à sua maneira com o que vem à tona e assim descaracteriza a perfeição que os rodeia, e além de medo, competição e inveja, também há cobrança, perfeccionismo e necessidade de evoluir, pois chega um ponto que tudo vira rotina, se faz de maneira automática e a beleza, a tal paixão da qual Rodrigo insiste em falar em todos os episódios, deixa de existir.
"Mozart in the Jungle" é apaixonante por retratar o difícil caminho que leva as pessoas aos seus sonhos. Intensidade define essa série que tem uma proposta interessante e que nos presenteia com um roteiro primoroso, desenvolvimento cativante e interpretações encantadoras, impossível não se deixar levar pelo ritmo com que é conduzida. 

quinta-feira, 5 de março de 2015

Respire

"Respire" baseado no livro de Anne-Sophie Brasme e dirigido por Mélanie Laurent (Les Adoptés - 2011), é um filme que apresenta a época da adolescência de forma bem intensa e o encantamento e as decepções de uma amizade.
Charlie (Joséphine Japy) tem 17 anos. A idade das paixões, das emoções, das convicções. Educada e bem-comportada é imediatamente atraída por Sarah (Lou de Laage), a nova aluna da escola. Encantadora e de temperamento difícil, ela se aproxima de Charlie. Íntimas, as jovens dividem segredos até que um dia o relacionamento começa a mudar, podendo gerar consequências trágicas. O legal do filme é porque em algum momento você cria identificação, é difícil quem não teve aquele amigo da adolescência do qual confiava seus segredos chegando a excluir outras pessoas do convívio. Quase sempre um é antissocial e o outro mais extrovertido, e este geralmente conduz a relação, porém em alguma ocasião esta amizade entra em crise.
A história se concentra em duas jovens, Charlie que é retraída, mas tem seu círculo de amigos na escola, e Sarah, uma garota sedutora cheia de histórias pra contar, quando Sarah chega à escola logo iniciam uma amizade, Charlie não esconde seu fascínio e a partir daí não se desgrudam. Charlie se afasta dos amigos e acredita que essa relação é recíproca, mas as coisas começam a mudar e a afeta de forma surpreendente.
O vínculo criado é forte e o espectador também embarca nessa amizade acreditando que irá traçar um caminho específico, mas quando Sarah viaja com a família de Charlie se afasta em um determinado momento, e o encolhimento da amiga começa a acontecer, ela a visualiza se exibindo, bebendo e não entende a distância. Tanto a dependência de Charlie e as provocações de Sarah irritam, chega um ponto em que você não sabe qual é a pior. Afastadas, Charlie desconfia de certas atitudes de Sarah, principalmente das suas histórias, percebe que não a conhece e acaba descobrindo seu segredo. O filme ganha uma tensão incrível nessa parte, a quietude e a passividade de Charlie é gigante, a sensação é exatamente a de sufocar. Sarah inventa coisas sobre Charlie e o colégio inteiro a olha de forma estranha, um forte Bullying acontece, só que nem assim ela desiste de Sarah. É uma relação muito complexa.
A diretora trabalha muito bem os gêneros do filme, a história abre com um drama quase romântico e lá pro meio vai ganhando contornos tensos. A personalidade das personagens são marcantes e os sentimentos são confusos, o clima vai ficando pesado e os desentendimentos só aumentam.

É um filme interessante, tem o seu charme e mostra a relação de duas pessoas complicadas, uma quase ingênua, necessitando de uma muleta, e a outra que prefere fazer as coisas como quer sem se importar. Charlie vai sofrendo calada e para evidenciar mais a sensação de sufocamento a personagem tem asma. Cria-se uma aura claustrofóbica.

"Respire" é uma ótima opção para fugir do mais do mesmo no cinema, o tema é chamativo, a narrativa é ótima e as atuações precisas. Um bom estudo de personalidade, os conflitos nos tomam por completo e ao final a única coisa que se deve fazer é respirar junto com Charlie.

terça-feira, 3 de março de 2015

Força Maior - Force Majeure - Turist

"Força Maior" (2014) do diretor Ruben Östlund retrata as consequências de uma atitude desesperada, o medo e o constrangimento fazem parte de uma história tensa e irônica. 
Uma família sueca passa as férias de Inverno nos Alpes. O sol brilha e as pistas são magníficas, mas durante um almoço num restaurante da montanha, uma avalanche vai perturbar tudo. Os clientes do restaurante entram em pânico, Ebba, a mãe, chama pelo marido Tomas tentando proteger os filhos, mas Tomas fugiu, pensando apenas em salvar a própria vida. A avalanche para antes de atingir o restaurante, sem causar danos, mas o universo da família já foi abalado. O fato faz Tomas entrar em crise, tentando desesperadamente reocupar o lugar de patriarca da família.
Interessante a premissa de "Força Maior", pois a figura masculina de marido e pai é geralmente vista como a de um herói e protetor, mas não é bem assim, afinal como qualquer outro ser humano também é regado a medos e instintos de sobrevivência. Ninguém sabe qual a atitude que irá tomar em situações de risco, e é esse o debate que o filme traz em meio a muitas cenas constrangedoras e irônicas. O cenário é os Alpes franceses, a família está de férias se divertindo esquiando, a realidade muda quando num almoço em um restaurante ao ar livre uma avalanche se aproxima deixando todos em estado de pânico, a mãe pega seus dois filhos que chama pelo pai, mas este já tinha fugido levando consigo seu celular. Quando as coisas se acalmam as pessoas voltam para suas mesas, a neblina vai dando lugar à claridade e aí o pai volta e se senta como se nada tivesse acontecido. Os filhos e a mulher ficam em silêncio e depois disso o relacionamento entre eles vai se complicando, pois Tomas nega que fugiu, dá uma versão mentirosa e acredita nela para não se sentir menor, enquanto a mulher destruída por dentro por muitas vezes joga tudo para fora em frente a outras pessoas. 
Ebba expõe sua dor de ter sido abandonada junto aos filhos e Tomas insiste na sua versão ao invés de admitir que se deixou levar pelo medo.
É um desconforto muito grande acompanhá-los, com o passar dos dias o tédio vai tomando conta e tanto Ebba como Tomas desejam ficar sós. Vale ressaltar a trilha sonora com trechos de "As Quatro Estações" de Vivaldi que pontua sempre quando algo de ruim acontecerá.

A intensidade vai ficando maior quando em um jantar com um casal de amigos Ebba novamente começa a falar sobre o acontecido, ela diz o como se sentiu e o marido vai se encolhendo, o amigo até tenta entender o motivo, fala de instinto e medo. Algo dentro de Tomas o faz perceber e de repente se sente um covarde, daí em diante entra numa crise muito complicada, impossível não se impressionar com a cena em que ele chora muito alto desesperadamente na porta do apartamento e em seguida é acolhido pelos filhos.
A tensão do filme é bem marcada, o ambiente também gera desconforto, é de uma brancura absurda, o barulho dos bondinhos e as pistas de esqui que parecem não terminar contribui para o clima de catástrofe, aliás, a cena final do ônibus revela bastante o quão traumatizados estão. 

Vários momentos você não sabe se ri ou se chora, como quando o casal de amigos sai do quarto de Ebba e entram em conflito entre eles, se sentem inseguros e não demora para que soltem o que acham, a garota diz que o namorado a deixaria também em uma situação igual a de Tomas, e parece que a partir daí começam a se tornar distantes. Em um relacionamento o medo de não conhecer o outro é gigante, se a pessoa age de forma avessa do que pensamos desmorona-se o que se construiu até então.
O filme abre um leque de questões sobre o instinto de sobrevivência, o papel do homem na sociedade, o medo de transparecer medo e o que você faria numa situação dessas. "Força Maior" consegue de fato nos deixar constrangidos junto com os personagens, e rever muitos conceitos sobre as convenções sociais.