sábado, 30 de março de 2019

Café com Canela

"Café com Canela" (2017) dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio (Ilha - 2018) é uma preciosidade do cinema nacional, um filme que acalanta e que desperta sentimentos bons, há choro e sorrisos, dilemas, dores e muito amor, disserta sobre a perda, a empatia, o cotidiano e encontros afetuosos regados a boas xícaras de café.
Margarida (Valdinéia Soriano) vive em São Félix, isolada pela dor da perda do filho. Violeta (Aline Brunne) segue a vida em Cachoeira, entre adversidades do dia a dia e traumas do passado. Quando Violeta reencontra Margarida inicia-se um processo de transformação, marcado por visitas, faxinas e cafés com canela, capazes de despertar novos amigos e antigos amores.
É puramente o cotidiano comum que acompanhamos, a vida de pessoas que se encontram e se reencontram, mas o filme possui linguagens interessantes, dinâmicas e até inusitadas, além de fazer com que o espectador se sinta parte da obra. A história se passa em Salvador e é protagonizado por duas mulheres negras de diferentes gerações, vemos em duas linhas temporais um churrasco entre amigos e uma festa de aniversário infantil simulando uma gravação de fita VHS, nos introduz dessa maneira no presente em que Margarida devastada pela morte do filho se vê inerte diante a vida, sua rotina é totalmente baseada na tristeza desde o momento em que acorda ao momento em que se deita para dormir, vive a tomar cafés requentados e mal se alimenta, sofre de surtos psicológicos e não consegue de forma alguma superar a morte do pequeno. Já Violeta é uma jovem vivaz que possui sua família e se divide em diversas tarefas, vende coxinhas, cuida de sua avó, vai de lá para cá sempre com um sorriso no rosto cumprimentando as pessoas e se mantendo firme quando surgem adversidades, sua generosidade é genuína e encantadora, quando reencontra Margarida, que foi sua professora e da qual teve uma importância imensa na construção de sua identidade, resolve que não irá deixá-la se afundar e persiste nos encontros mesmo sendo expulsa da casa, segue todos os dias enviando uma rosa vermelha e também a conquista pelo seu delicioso café com canela. Outro personagem que lida com a dor do luto é Ivan (Babu Santana), que se vê sozinho e perdido quando perde seu marido. Cada um tem seu desenvolvimento próprio e lida com suas dores de maneira própria, mas em determinado momento se entrelaçam transformando seus mundos interiores e assim fazendo do mundo exterior um lugar mais afetuoso. 
É um filme primoroso nas imagens, nos seus movimentos, na força da cultura afro-brasileira, nas sequências surreais simbolizando o luto e a dor, na beleza dos pequenos gestos cotidianos, dos diálogos íntimos e da sua proximidade sincera conosco. 

"Um brinde à vida que mesmo toda desencontrada e cheia de loucura oferece pra gente os mais lindos encontros e inacreditáveis reencontros, saúde." 

"Café com Canela" apesar de refletir sobre a ausência e a solidão que o luto causa traz boas doses de humor e afeto, a transformação por meio do amor, do como a cura de uma dor pode acontecer através de um olhar, palavras e ações ternas e, justamente por isso, se faz um filme imprescindível, já que as relações no cotidiano estão cada vez mais frias e cresce a falta de empatia, ele tem a capacidade de resgatar sentimentos inertes, como a gentileza, e demonstrar que xícaras de café podem conter abraços aconchegantes e transformadores.

quinta-feira, 28 de março de 2019

Seu Filho (Tu Hijo)

"Seu Filho" (2018) dirigido por Miguel Ángel Vivas (La Casa de Papel - 2017) é um filme espanhol protagonizado pelo ótimo ator José Coronado e que prima por uma tensão em todo o seu desenrolar, o ritmo vagaroso só aumenta a angústia e é fator primordial para que o golpe final venha com toda a força possível. Levanta questões difíceis que causam mal-estar, a vingança do pai chega num ponto extremo e termina revelando a sua verdadeira natureza, que dispensa qualquer razão moral e ética, empatia e senso social.
Dr. Jaime Jiménez (José Coronado) é um cirurgião de prestígio, do qual salvar vidas faz parte de seu trabalho. Mas toda a sua estabilidade falha quando seu filho de 17 anos fica em coma profundo depois de receber uma surra selvagem nas proximidades de uma boate movimentada. Preenchido de raiva e dor, sem ser capaz de deixar ir suas emoções, ele vai procurar, investigando entre os amigos e na atmosfera noturna de Sevilha, os culpados de tal agressão brutal.
Jaime é um homem comum que preenche os seus dias trabalhando no hospital e passando as horas vagas correndo com seu filho Marcos (Pol Monen), claramente ele é seu orgulho e o afeto que possuem um pelo outro acaba cativando o espectador, mas fora isso a relação familiar é distante, a esposa pouco aparece em cena e poucos são os diálogos entre eles, com a filha também é a mesma distância, porém é uma família bem estabelecida e sem maiores problemas, quando Marcos aparece todo desfigurado no hospital Jaime perde o chão e só pensa em encontrar os culpados, obviamente recorrem ao auxílio da polícia e esperam que a justiça seja feita, mas como Jaime não obtêm respostas e se depara com burocracias irritantes começa a investigar por conta própria, e nossa atenção está toda voltada para a tristeza e revolta desse pai, aos poucos vai encontrando pistas e chegando cada vez mais perto de quem cometeu o espancamento deixando seu filho em estado vegetativo. A irmã de Marcos parece saber do que se trata, a namorada evita Jaime e ele fica perdido dentro dessa situação, com os nervos à flor da pele une as peças por si só e chega num dos envolvidos e acaba encontrando quem de fato o espancou. 
Seguimos com Jaime nessa jornada, ele vai tomando atitudes questionáveis e que bambeiam entre justiça, vingança e instinto de proteção distorcido, um emaranhado de pensamentos e sensações corroem acerca do que decide fazer, são camadas delicadas que a história propõe refletir e as exibe com muita excelência. É um choque pesado seu desfecho, mas que retrata perfeitamente o chamado "cidadão de bem".

O filme tem causado algumas polêmicas por conta das atitudes que o protagonista toma, principalmente em seu desfecho, já até o apontaram como sendo apologista, mas é justamente o contrário, é a representação perfeita do cidadão que se coloca acima por medo de pôr toda a sua vida em exposição e age com hipocrisia e egoísmo, para não admitir os erros do filho e os seus próprios prefere mascarar da pior maneira, e é o que vemos diariamente, discursos em prol da família e valores morais sendo exaltados, mas por trás disso quase sempre se esconde uma faceta frágil e perigosa. Se o filme conseguiu promover o desconforto e o asco então fez efeito, e essa é sua intenção, demonstrar o ser humano com todas as suas imperfeições juntamente com tomada de decisões erradas para que sua vida não seja violada. Um outro filme espanhol também disponível na Netflix que segue a mesma linha é "Quando os Anjos Dormem" (2018).

"Seu Filho" tem um ritmo cadenciado em seu suspense e a ação contém tons de noir e surpreende pela quebra de expectativas, uma história difícil de acompanhar, sobretudo quando o rumo das coisas se tensionam ainda mais e a linha que separa a justiça da vingança se misturam, além de que, se houve algum tipo de arrependimento não foi pelo que o filho cometeu, mas pelas consequências de suas impulsivas e desastrosas escolhas. 

quarta-feira, 27 de março de 2019

Lords of Chaos

"Este filme é baseado em verdades, mentiras, e no que realmente aconteceu."

"Lords of Chaos" (2018) dirigido por Jonas Åkerlund (Polar - 2019) é um filme baseado no livro "Lords of Chaos: The Bloody Rise of the Satanic Underground" e inspirado numa história real em torno do surgimento do cenário black metal norueguês, Euronymous motivado pela banda Venom acaba criando sua própria banda com um som único e morbidamente fascinante, entre um curto período segue-se diversos conflitos e a obscuridade vai tomando conta da vida real, como a queima de igrejas e assassinatos, como descrito em seu início há verdades, mentiras e fatos que realmente ocorreram, mas que não se prendem à seriedade, pois é um filme de ficção e não um documentário, e propõe apenas um recorte da história e um olhar de desconstrução em torno dessas figuras e os demonstra como simplesmente adolescentes problemáticos e maldosos dominados pelo tédio e com uma criatividade pulsante e extrema, o sarcasmo é muito bem-vindo, assim como a caracterização dos principais personagens e a questão de ser poser ou true ganha tons de deboche. Jonas Åkerlund, conhecido pela direção de clipes musicais tem propriedade para falar do assunto, viveu na época, inclusive sendo um dos bateristas da banda Bathory. Então para os fãs mais ardorosos acalmem esses nervos e curtam o filme e agradeçam que alguém teve a ousadia de colocar um pouco da história desse gênero tão infame e tão arrebatador em um filme de ficção, aliás deixo como dica o islandês "Metalhead" (2014). Para quem quiser conhecer mais a fundo e ir de encontro com a ascensão da cultura do gênero na Noruega com toda a violência, profanação e a mística do mal existem documentários, tal como, "True Norwegian Black Metal" (2007), "Once Upon a Time in Norway - The History of Mayhem" (2007), "Black Metal Satanica" (2008) e "Until the Light Takes Us" (2008).
Noruega, anos 90. Euronymous (Rory Culkin), um adolescente precoce, pretende espalhar o mal, caos e black metal de verdade com sua banda, Mayhem. Quando ele convida Varg (Emory Cohen), um misterioso solitário, a participar de seu "Círculo Negro", uma rivalidade se dá início, levando a inesperadas consequências.
Acompanhamos o jovem Euronymous com todos os seus ideais em torno da sonoridade agressiva, procurando um novo vocalista para sua banda Mayhem, surge "Dead", Per Yngve Ohlin (Jack Kilmer) vindo da Suécia, depressivo mutilava-se nos shows e apreciava a atmosfera da morte, enterrava suas roupas e depois as usava e inalava o cheiro putrefato de corvos mortos, também foi quem difundiu a utilização do corpse paint, inspiração vinda da banda brasileira "Sarcófago". Sua morte precoce cometida através de um suicídio brutal, pulsos cortados e um tiro de espingarda na cabeça resultou na capa do álbum "Dawn of the Black Hearts", de 1995, Euronymous ao encontrá-lo correu para comprar uma câmera e alterou um pouco a cena a fim de a tornar mais chocante, além de ter criado lendas, como ter comido uma parte de seu cérebro e conceber colares a partir de seu crânio, o que fazia parte de um marketing e acabava gerando curiosidade não só entre os adoradores. Vale ressaltar que Jack Kilmer como Dead está incrível e particularmente encarei como a melhor caracterização, absorveu com excelência a atmosfera e sua performance é brilhante.

Euronymous abre uma loja de discos e também gravadora e é líder de um grupo chamado "Inner Circle", onde somente os verdadeiros apreciadores do som poderiam entrar, além de ter toda uma aura de maldade, acaba que toda essa contestação contra o cristianismo, ideias de propagar o mal ganha formas reais quando um jovem tímido se aproxima de Euronymous e lhe apresenta sua banda, o Burzum, um som caótico, agressivo e hipnotizante concebido por apenas uma pessoa, o extremista e talentoso Varg Virkenes, esse jovem decide colocar em prática seus ideais e começa a queimar igrejas se sobressaindo no círculo e deflagrando uma onda satanista, surge aí conflitos de poder entre os jovens e atitudes cada vez mais violentas para se afirmarem no grupo, ou somente por pura maldade, como o caso de Faust (Valter Skarsgård), ao assassinar brutalmente um gay dando 37 facadas para sentir como era. Euronymous é retratado como um adolescente que dissipava ideias e usava essas polêmicas como marketing, Varg, um imbecil, inclusive rendeu altas críticas pelo próprio, reclamando da interpretação "daquele ator gordo judeu", então o filme promove não a humanização destas figuras, mas uma demonstração de adolescentes que tinham absolutamente tudo, mas mergulhados no tédio e prontos para confrontar e conceber algo novo. Por conta dessas atrocidades e polêmicas e a grande expressividade do gênero a Noruega acabou ganhando o título do berço do black metal.

O filme tem uma ótima ambientação e faz recriações excelentes, como das fotografias, as cenas violentas e o gore são muito bem feitas, os esfaqueamentos são perturbadores e toda a atmosfera pesada se faz presente apesar do tom de sarcasmo que permeia a obra, a trilha sonora além das músicas do estilo ousou na criatividade colocando algo oposto, como Dead Can Dance e Sigur Rós.
"Lords of Chaos" cumpre com a proposta de apresentar uma parte do cenário do black metal norueguês e mostrar os acontecimentos sórdidos que se mesclaram ao gênero, mas tudo sob um viés descompromissado; as polêmicas, a associação ao satanismo, a valorização da cultura escandinava e a quebra do mito ao retratar adolescentes idiotas em estado de ebulição que queriam fazer a diferença de qualquer jeito num ambiente frio, cinza e sem maiores problemas. Os truezão podem contestar a vontade, mas o filme é eficiente e empolga!

Na foto: O Mayhem original e abaixo o Mayhem do filme

sexta-feira, 22 de março de 2019

13 Filmes Neo-Noir (13 Neo-Noir Movies)

Segue um apanhado de filmes que resgatam elementos que compõem o gênero noir, cunhado em 1946 pelo crítico francês Nino Frank para suspenses com temáticas policiais, ambientação escura e personagens com caráter dúbio, há uma série de características instigantes que o moldam e há uma gama interessante de filmes atuais que referenciam e homenageiam esse clássico gênero. Confira:

13- "Phoenix" (2014) Alemanha
Nelly Lenz (Nina Hoss) é uma sobrevivente do campo de concentração durante a segunda guerra mundial, onde foi deixada terrivelmente desfigurada. Após uma cirurgia de reconstrução facial, Nelly volta à Berlin em busca do seu marido Johnny (Ronald Zehrfeld). Quando ela finalmente o encontra, Johnny não a reconhece. No entanto, ele se aproxima dela com uma proposta.

12- "Aura" (El Aura - 2005) Argentina
Esteban Espinosa (Ricardo Darín) é um taxidermista e um homem tímido, que passa os dias isolado em sua oficina. Por trás das aparências Espinosa tem um grande sonho de poder: planeja praticar o crime perfeito. Ele decide fazer sua primeira viagem às florestas da Patagônia com o objetivo de caçar. Acidentalmente, Espinosa mata um bandido e descobre um esquema milionário de assalto a um carro-forte. Ele resolve então levar o plano adiante por si mesmo, mas para isso precisa antes superar um mal que lhe acomete: a epilepsia.

11- "Alois Nebel" (2011) Rep. Tcheca
Fim dos anos 80 no século XX. Alois Nebel trabalha como expedidor na pequena estação ferroviária de Bílý Potok, uma remota vila na fronteira tcheco-polonesa. Ele é um solitário, que gosta mais de relógios antigos do que de pessoas, e acha tranquila a solidão da estação – exceto quando a névoa invade. Então ele alucina, vê trens dos últimos cem anos passarem pela estação. Eles trazem fantasmas e sombras do tenebroso passado da Europa Central. Alois não consegue se livrar desses pesadelos e acaba indo parar no sanatório.

10- "A Lei da Noite" (Live by Night - 2017) EUA
Boston, década de 1920. Joe Coughlin (Ben Affleck), filho mais novo de um capitão de polícia, se envolve com o crime organizado. Ele aproveita seus dias rodeado de dinheiro e poder, mas suas escolhas podem levá-lo à prisão ou até mesmo à morte. Adaptação do livro escrito por Dennis Lehane.

09- "Estrangulado"/"O Monstro de Martfüi" (A Martfüi Rém - 2016) Hungria


Hungria, 1960. A pequena cidade de Martfüi está sofrendo com os horrores que tomaram conta da região: um assassino sanguinário está à solta tirando a vida de várias pessoas. Obcecado em encontrar o culpado, o detetive designado para o caso está sendo fortemente pressionado pelo promotor a condenar alguém e, isso fará com que um homem que nunca poderia ter cometido tais crimes seja acusado.
Um filme  inspirado em uma história real perturbadora e indigesta sobre um serial killer de uma pequena cidade da Hungria, no período socialista entre 1957 a 1964. A atmosfera sombria e a abordagem crua cria sensações angustiantes e o desenvolvimento por mais que não crie tensão causa mal-estar, pois não esconde a violência e a agonia vivenciada. Saiba+

08- "Carvão Negro, Gelo Fino" (Bai Ri Yan Huo - 2014) China
Em 1999, a descoberta macabra de vários cadáveres é feita em uma pequena cidade. Um incidente sangrento durante a tentativa de capturar o suposto assassino deixa dois policiais mortos e outro gravemente ferido. O oficial sobrevivente, Zhang Zili, é suspenso das suas funções e acaba aceitando um emprego como segurança em uma fábrica. Cinco anos mais tarde, uma outra série de assassinatos misteriosos ocorre. Ajudado por um ex-colega, Zhang decide investigar os crimes por conta própria. Ele descobre que todas as vítimas foram conectadas em vida a Wu Zhizhen, uma jovem que trabalha em uma lavanderia. Fingindo ser um cliente, Zhang começa a observá-la e se acha apaixonando pela reticente Wu. Num dia frio de inverno, ele faz uma descoberta terrível. Com sua vida agora em perigo, ele percebe que nem sempre é possível separar a culpa da inocência.

07- "Dália Negra" (The Black Dahlia - 2006) Alemanha/EUA/França
Elizabeth Short (Mia Kirshner) era uma jovem bonita, que estava determinada em ser famosa e era conhecida como a "Dália Negra". Após seu corpo ser encontrado, torturado e retalhado, em um terreno baldio de Los Angeles, tem início uma busca pelo assassino. Os detetives e ex-boxeadores Lee Blanchard (Aaron Eckhart) e Bucky Bleichert (Josh Hartnett) são encarregados da investigação do caso, mas a obsessão que os dois desenvolvem por ela acaba por arruinar suas vidas.

06- "Animais Noturnos" (Nocturnal Animals - 2016) EUA
Susan (Amy Adams) é uma negociante de arte que se sente cada vez mais isolada do parceiro (Armie Hammer). Um dia, ela recebe um manuscrito de autoria de Edward (Jake Gylenhaal), seu primeiro marido. Por sua vez, o trágico livro acompanha o personagem Tony Hastings, um homem que leva sua esposa (Isla Fisher) e filha (Ellie Bamber) para tirar férias, mas o passeio toma um rumo violento ao cruzar o caminho de uma gangue. Durante a tensa leitura, Susan pensa sobre as razões de ter recebido o texto, descobre verdades dolorosas sobre si mesma e relembra traumas de seu relacionamento fracassado.
Um thriller intrigante e elegante cuja narrativa nos enreda hipnoticamente, é uma história dentro de outra história, realidade e ficção que se unem e se colidem, uma metalinguagem arrebatadora. Saiba+

05- "In the Shadow" (Ve Stínu - 2012) Eslováquia/Polônia/Rep. Tcheca
Drama criminal de época passado nos anos 50 na antiga Tchecoslováquia, que trata de um pequeno delito que serve de base para se encobrir um plano elaborado com ligações ao regime comunista.

04- "Hotel Império" (2018) Portugal/China
Maria (Margarida Vila-Nova) viveu por toda sua vida no Hotel Império, o negócio de seu pai localizado em uma região tradicional de Macau, porém manter o local funcionando está cada vez mais difícil. Quando Chu (Rhydian  Vaughan), o filho da coproprietária do hotel, retorna à Macau depois de 20 anos em busca de vingança, a situação de Maria fica ainda mais complicada.

03- "O Lugar Onde Tudo Termina" (The Place Beyond the Pines - 2012) EUA
Luke (Ryan Gosling) é um motociclista misterioso, que pilota dentro de globos da morte para um circo itinerante. Quando descobre que sua ex-namorada, Romina (Eva Mendes), teve um filho seu, ele tenta se reaproximar dela. Sua intenção é mostrar-se um pai capaz de sustentar o filho e, para isso, Luke decide participar de uma série de roubos a bancos. O problema é que Luke não consegue reprimir seu lado violento, o que lhe traz problemas não apenas com Romina mas também com Robin (Ben Mendelsohn), seu parceiro de assaltos. Apesar dos vários problemas inesperados que surgem, ainda assim Luke resolve realizar sozinho um assalto a banco. Perseguido pela polícia, ele vira alvo de Avery Cross (Bradley Cooper), um policial que cumpria sua rotina fazendo a ronda diária.

02- "Drive" (2011) EUA
Durante o dia, um misterioso motorista (Ryan Gosling) trabalha como mecânico e dublê automobilista de filmes de Hollywood. À noite, ele se dedica como piloto de fuga para bandidos e mafiosos. Este motorista também é vizinho de Irene (Carey Mulligan), uma garçonete que é casada e tem um filho com Standard Gabriel (Oscar Isaac). Ao aproximar-se da moça e da criança, o motorista começa a criar um forte relacionamento com ambos até a volta de Standard, que acaba de sair da prisão. Percebendo a situação difícil de Standard, o motorista se dispõe a ajudá-lo num assalto que pagaria sua dívida aos criminosos. Só que o golpe dá errado, o que coloca em risco as vidas do motorista, Irene e seu filho. Saiba+

01- "O Abutre" (Nightcrawler - 2014) EUA
Lou Bloom (Jake Gyllenhaal) é um jovem determinado e desesperado por trabalho que descobre o mundo em alta velocidade do jornalismo sensacionalista em Los Angeles. Ao encontrar equipes de filmagem freelances à caça de acidentes, incêndios, assassinatos e outras desgraças, Lou entra no reino perigoso e predatório dos nightcrawlers - as minhocas que só saem da terra à noite.
"O Abutre" é um filme noir moderno, ele traz um assunto que faz parte do cotidiano, pois é só ligar a televisão que veremos notícias de mortes se transformando em histórias escabrosas que são repetidas diversas vezes sem se importar com os familiares e sua dor. O abuso de imagens, tom da voz, comentários desnecessários são artifícios para prender a atenção das pessoas. O filme é uma sátira sobre essa inescrupulosidade. Saiba+

Bônus


"The Looming Storm" (Bao xue jiang zhi - 2017) China

Yu, um guarda de fábrica autoconfiante, acredita ser um detetive e começa a se intrometer em uma investigação de assassinato. As coisas só se tornam mais complicadas neste filme noir chinês que lida com o amor e o destino.

quinta-feira, 21 de março de 2019

Piercing

"Piercing" (2018) dirigido por Nicolas Pesce (Os Olhos de Minha Mãe - 2016) é um thriller psicossexual adaptado da obra homônima de Ryu Murakami, autor também de "Audition", adaptado para o cinema em 1999 por Takashi Miike, e este vai na mesma linha de insanidade, brutalidade e melancolia, mas flertando com o gênero giallo, é uma história instigante que retrata o encontro entre duas pessoas solitárias e perturbadas.
Um homem (Christopher Abbott) dá um beijo de despedida na esposa e no seu bebê, aparentemente se despedindo para ir aos negócios, chamar um serviço de escolta e matar uma prostituta desavisada. Seu plano vai por água abaixo quando a misteriosa e sedutora garota (Mia Wasikowska) que ele chamou inicia um jogo de gato e rato.
Ambientado nos anos 70, a estética enche a tela com seus inúmeros elementos visuais remetendo ao clássico gênero italiano, o giallo, além de seu próprio tom e trilha sonora. Uma obra que impõe um visual e uma linguagem narrativa atraente e cujas atuações são densas e fascinantes. 
Reed ao olhar seu filho recém-nascido cogita matá-lo com um picador de gelo, ele "escuta" o bebê dizer que ele sabe o que fazer, seus desejos mais profundos não podem mais esperar e então inventa uma viagem de trabalho para a esposa e parte em busca de uma vítima, arquiteta absolutamente tudo e anota em seu caderninho, aluga um quarto de hotel, ensaia variadas vezes sua performance assassina e contrata uma prostituta, porém nada do que planejou sairá como esperado, quando Jackie bate em sua porta percebe que a garota não será fácil de ser dominada. A conversa não flui e Reed entra logo no assunto de sadismo e pede para amarrá-la, mas não demonstra interesse sexual quando ela se toca, Jackie sai de cena e entra no banheiro o deixando ansioso, desesperado pela demora entra e a vê se cortando e quebra toda a sua imaginada e organizada cena de assassinato. 
São cenas excepcionalmente provocativas, por exemplo, quando Reed sozinho articula, anota e ensaia o assassinato, dando golpes imaginários e temos o agoniante som dos cortes, desmembramentos e sangue escorrendo, uma sacada ótima que fez todo o diferencial, sem deixar de dizer que Christopher Abbott está impecável com toda a sua frieza e elegância que acaba se esvanecendo com o rumo e por conta da surpreendente e estonteante Mia Wasikowska que transcende a loucura de seu parceiro. 

Jackie não é a vítima inocente que Reed esperava, ao contrário, ela joga junto e assim como ele vê na dor um meio para expulsar seu sofrimento e obter prazer. Ambos são seres solitários, traumatizados e perturbados, o choque desse encontro nasce uma relação completamente torta que se alimenta da dor e do prazer ao mesmo tempo. 
As passagens entre sonho e realidade de Reed também são ótimas para criar um efeito enganoso, suas criações imaginárias seguem linhas tênues e podemos contemplar todo o nível de desiquilíbrio que carrega em si, como a cena em que liga para a esposa e ela lhe diz as possibilidades da Jackie saber ou não sobre seu plano. 

"Piercing" hipnotiza com sua loucura, é brutal, estiloso, melancólico e ainda nos contempla com grandes referências ao gênero giallo e seus inúmeros elementos, como  sua atmosfera, cores e a envolvente trilha sonora, que traz Claudio Simonetti, Stelvio Cipriani, Goblin, Bruno Nicolai e Tom Jobim. 

terça-feira, 19 de março de 2019

Fronteira/Border (Gräns)

"Border" (2018) dirigido por Ali Abbasi (Shelley - 2016) é um filme bizarro e surpreendente adaptado de um conto homônimo do autor sueco John Ajvide Lindqvist (Deixe Ela Entrar), na trama há uma fusão de gêneros interessantes, como romance, fantasia, suspense investigativo e toques de humor, também envolve temas polêmicos e autodescoberta, o estranhamento é algo contínuo e desabrocha para uma certa fascinação em torno da personagem e suas experiências. Um exemplar único que garante sensações e reflexões diversas. 
Tina (Eva Melander) é uma policial que trabalha na alfândega de um porto fiscalizando bagagens e passageiros. Depois de ser atingida por um raio na infância, ela desenvolveu uma espécie de sexto sentido, fazendo com que seja capaz de "ler as pessoas". Isso sempre representou uma vantagem na sua profissão, mas tudo muda quando ela identifica um criminoso em potencial e não consegue achar provas para justificar sua intuição. Após o episódio, ela passa a questionar seu dom, ao mesmo tempo em que fica obcecada em descobrir qual o verdadeiro segredo de Vore (Eero Milonoff), seu único suspeito não legitimado, essa relação a força a confrontar revelações terríveis sobre si mesma e sobre a humanidade.
A trama começa tranquila e acompanhamos a rotina de Tina, em seu trabalho dispensa o uso de detectores de metal e confia plenamente em seu faro, ela sente o cheiro da raiva, da culpa e do medo nas pessoas e assim executa seu trabalho com todo o rigor, fora do expediente gosta de andar descalça pela floresta, ela mora distante e mantém proximidade com raposas e alces, diferentemente dos cães de seu companheiro que latem incessantemente toda vez que chega, seu aspecto gera curiosidade e por conta de ser diferente acaba se fechando, seu único parente é o pai que está internado numa clínica por estar perdendo a memória. Tina segue seus dias normalmente até que ao parar um homem na alfândega encontra com ele arquivos contendo pornografia infantil, logo por conta de seu dom é convidada a auxiliar na investigação de uma possível rede de pedofilia, a partir daí algo muda nela e se sente útil, mas o ponto que dará a virada em sua vida é quando para o estranho Vore e não consegue identificar exatamente o quê procura, sua aparência semelhante a dela chama a atenção e quando voltam a se encontrar inicia-se uma aproximação que fará Tina se descobrir e experimentar o mundo de outra forma, além de decidir aonde se encaixa nisto tudo. 

Tina e Vore acabam criando um vínculo curioso, pela primeira vez ela se sente bem com alguém e escuta com afinco tudo que seu misterioso amigo lhe conta sobre a natureza deles, a aceitação de si mesma e o enlace com sua essência vai acontecendo sob formas bizarras e sensíveis, Vore a ajuda nesse quesito, lhe dá a direção e a faz acreditar em sua força, só que aos poucos seu personagem vai se revelando e o que não tinha identificado no começo enfim se mostra, ela percebe que o mundo que quer viver não é o mesmo de Vore, ainda que sejam parecidos seus princípios são outros, daí surgem reflexões agudas sobre o que significa ser ou não ser humano e nossa tendência para a destruição, a fantasia se mescla com a realidade e exibe com dor e esperança a dificuldade em se autoaceitar diante um mundo repleto de expectativas sociais, se achar dentro desse contexto é difícil e o filme o faz de maneira bonita, porém estranha, em vários momentos causa repulsa, toda a caracterização dos atores e o trabalho primoroso de maquiagem ajuda a conferir esse enjeitamento e mostra o como nosso olhar é programado para ver beleza somente em padrões preestabelecidos. 

"Humanos são parasitas que usam tudo na Terra para sua própria diversão. Mesmo as próprias crias. Estou dizendo, a raça humana é uma doença."

"Border" é uma obra original e abrange assuntos diversos que eclodem em camadas e mais camadas, reflete sobre a monstruosidade que habita nos seres humanos, mas sem perder a esperança; o medo do diferente, a solidão em estar à margem, a dificuldade da autoaceitação numa sociedade que seleciona, e, principalmente, sobre empatia, de desprender-se do olhar comum e destruir as fronteiras que nos separam, o diretor soube com maestria mesclar os gêneros e instigar o espectador, além de incluir pitadas da cultura nórdica. Um exemplar rico em todos os sentidos. Filmaço!

quinta-feira, 14 de março de 2019

A Favorita (The Favourite)

"A Favorita" (2018) dirigido por Yorgos Lanthimos (O Lagosta - 2015, O Sacrifício do Cervo Sagrado - 2017) é um filme sarcástico e exuberante sobre os jogos de poder políticos e amorosos entre três mulheres dentro de uma corte baseando-se em parte na era da Rainha Anne, que reinou a Grã Bretanha entre 1707 e 1714, durante as guerras da Inglaterra contra a França.
Na Inglaterra do século XVIII, Sarah Churchill, a Duquesa de Marlborough (Rachel Weisz) exerce sua influência na corte como confidente, conselheira e amante secreta da Rainha Ana (Olivia Colman). Seu posto privilegiado, no entanto, é ameaçado pela chegada de Abigail (Emma Stone), nova criada que logo se torna a queridinha da majestade e agarra com unhas e dentes à oportunidade única.
Com uma linguagem peculiar e visão pessimista da humanidade o diretor grego vêm se destacando e ganhando cada vez mais notoriedade, "A Favorita" é sua obra mais palatável, mas continua firme com suas características tão inventivas e extraindo de seus atores performances de tirar o fôlego. 
Acompanhamos a frágil e carente Rainha Ana, que deposita toda a sua confiança na Duquesa de Marlborough, que mesmo tendo um sentimento aparentemente verdadeiro a manipula para os próprios interesses políticos, Ana sofre de dores constantes da gota, pelas inconstâncias de humor e por ter passado por 17 gravidezes malsucedidas, o pouco de afeto e consolo encontra nos encontros sexuais com a astuta Sarah, que de fato governa o rumo do país, Ana não consegue articular as palavras diante do conselho e não possui pulso firme, é tida como uma pessoa volúvel e fraca. Sarah então se aproveita e toma as decisões, até que a jovem Abigail, prima distante de Sarah, vinda de uma família falida, chega e começa a trabalhar como criada e aos poucos sua sede de poder se manifesta sob maneiras ardilosas, ela percebe que conseguindo a atenção da rainha recuperará seu posto e novamente ascenderá perante a sociedade. Abigail consegue rapidamente com sua doçura e dedicação fazer com que a rainha a note e a coloque numa posição melhor, ao lado dela se torna mais fácil a manipulação ao preencher a ausência de Sarah, logo a rainha se encanta e se envolve sexualmente com Abigail colocando em risco a posição de Sarah. A briga de egos é travada com diálogos afiados, cínicos e personagens multifacetadas compostas com primor, as três têm seu espaço e funcionam com perfeição juntas, protagonistas gloriosas.

Olivia Colman emprega em Ana só com o olhar sentimentos de ciúme, tristeza, raiva, impotência, carência extrema e sua histeria domina a tela, são momentos incríveis em cena, uma potência, Emma Stone surge com sua doce Abigail e cativa a inconstante rainha pela atenção e dedicação, além de seduzi-la e propiciar momentos de prazer, é uma personagem que vai descortinando pouco a pouco suas ambições, Rachel Weisz compõe uma mulher fria que possui o poder e o domina com maestria, os homens retratados na corte são exibidos de forma patética com suas perucas e maquiagem, e sempre se encontram em segundo plano fofocando e se distraindo com coisas bizarras. O único que tem mais ênfase é Robert Harley (Nicholas Hoult), que faz oposição ao governo e termina se aliando a Abigail. Todos dentro da corte se valem de seus status para se beneficiarem e trocarem favores, situações que vão se ampliando e mostrando até onde o ser humano vai para obter mais e mais poder e, ainda pior, retrata que mesmo rodeados de glamour a decadência sempre está à espreita e tudo o que se fez para chegar até ao topo se transforma numa grande chacota.

"A Favorita" é o primeiro filme de Lanthimos cujo roteiro não foi escrito por ele e seu brilhante parceiro Efthymis Filippou, mas a inconvencionalidade e o absurdo está presente, claro que não em grandes doses como nos anteriores, mas permanece e tomara que nunca se dissipe toda a estranheza que suas obras produzem. 
É um filme ácido que retrata de forma diferenciada o cenário da aristocracia e a pompa do ambiente real, seus figurinos exuberantes e maquiagem esdrúxula expõem personagens frágeis, artificiais e exageradas disputando poder político, amoroso e fazendo qualquer coisa em prol de suas ambições. O que de fato não mudou até hoje, apenas se alteraram cenários, roupas e máscaras. 

quarta-feira, 13 de março de 2019

O Confeiteiro (The Cakemaker)

"O Confeiteiro" (2017) dirigido pelo estreante em longas-metragens israelense Ofir Raul Graizer é um filme delicado recheado de sutilezas emocionais, personagens que descobrem novas sensações e caminhos ao ter de lidar com a dor do luto e a solidão, além de nos presentear com belas imagens de doces e bolos, a paixão pela confeitaria transborda da tela e enche nossos olhos. 
Thomas (Tim Kalkhof) é um alemão dono de uma confeitaria que viaja para Jerusalém em busca da esposa e filho de Oren (Roy Miller), seu amante morto. Ao chegar lá ele começa a trabalhar para a viúva de seu amante, que não tem ideia de que eles compartilham uma tristeza sem nome sobre o mesmo homem.
Com belas cenas contemplamos o confeiteiro Thomas e sua habilidade na produção de maravilhosos bolos, sua aconchegante confeitaria atiça os paladares e fascina pela paixão que emprega em suas receitas, em um dia um executivo israelense que está prestando serviço numa empresa de Berlim se encanta por Thomas e logo os dois iniciam um romance, entre idas e vindas a relação secreta se molda e Thomas sempre pede para que Oren conte sobre sua família e o como foi a última vez que fez amor com a esposa, passam-se meses e novamente Oren retorna para Israel com a pretensão de voltar para Thomas rapidamente, mas acontece algo inesperado, Thomas não recebe mais notícias de Oren e depois de muito relutar em silencio decide ir procurá-lo na empresa, e então obtém a notícia de seu falecimento, silencioso ele sofre, em nenhum momento seus sentimentos são expostos, toda a sua dor e solidão desencadeia na decisão de ir até Israel e encontrar a família de Oren, a situação é estranha e delicada, mas aos poucos vamos entendendo sua personalidade e o afeto que nasce da relação entre Anat (Sarah Adler), esposa de Oren e o filho, é surpreendente e nos coloca para refletir na abrangência de sentimentos, da complexidade de sensações quando se está vivendo o luto e o como o amor pode vir sob diversas maneiras.
Thomas é contido, organizado e prestativo, Anat deixa ele tomando conta do seu singelo estabelecimento, um café kosher, e enquanto planeja a festa de aniversário do filho ele decide fazer uma surpresa e prepara cookies, porém há bastante restrições por ele ser alemão e não poder tocar no forno, há uma série de regras que se quebradas o café pode fechar, mas aos poucos suas receitas vão ganhando vida e fascinando Anat e até o irmão de Oren, que segundo a tradição acaba tomando conta da família do falecido, termina aceitando sob algumas condições e de acordo com as regras ele prepara suas delícias para vender no café e de pronta faz sucesso, Anat começa a se alegrar com a esperança que surge, a relação entre eles se estreita e novos tons surgem surpreendendo e confundindo ainda mais os sentimentos de Thomas, a descoberta de novas possibilidades afetivas juntamente com o aconchego que recebeu ao estar tão próximo das coisas e pessoas de seu amado.

Anat se apaixona pelo amante do marido, sentimentos dúbios e dilemas morais ditam as cenas, Thomas parece não querer mais ir embora, aquele mundo tão diferente do seu o acalenta diante da dor que o corrói tão silenciosamente, Anat também sofre, mas Thomas lhe deu esperança, uma inesperada relação se forma e ao mesmo tempo coincidências vêm à tona, Anat ao olhar a caixa com os pertences do marido se depara com inúmeras notas de uma confeitaria em Berlim, ela sabia que o marido tinha outra pessoa, mas jamais imaginaria que poderia ser Thomas, entre conversas ela acaba revelando algo que o dilacera, só que ele se segura e chora por dentro. A solidão e a dor do luto é enorme, sua decisão de ir para a terra do amado e encontrar a família inicialmente causa estranheza e o desenrolar causa agonia, mas a delicadeza e o inesperado transforma em compreensão.

"O Confeiteiro" é um filme bonito e corajoso ao demonstrar que o amor não possui barreiras, etiquetas e rótulos, acontece sem que possamos ter controle e de forma inesperada. A experiência do luto, do desespero silencioso da solidão desencadeou no personagem uma busca, tudo isso ricamente explorado em diversas camadas emocionais. É um filme de observação, há olhares que revelam, como o da mãe de Oren em diversas cenas, e tão mais importante, o toque, as mãos aquecendo a massa, a paixão empregada por Thomas na confecção de seus bolos, são momentos de puro deleite. 

quinta-feira, 7 de março de 2019

Clímax

"Nascer é uma oportunidade única, viver é uma impossibilidade coletiva e morrer é uma experiência maravilhosa."

"Clímax" (2018) dirigido por Gaspar Noé (Love - 2015) é uma experiência bad trip. Um filme provocativo, perturbador, hipnótico e todo contornado por enérgicas coreografias de dança, sua crescente de sentimentos leva à selvageria e ao caos deixando o espectador completamente imerso e tonto devido o ritmo alucinante e o modo como a câmera capta esses momentos rodopiando e virando de cabeça para baixo, uma loucura que de início agrada, mas seu desenrolar transforma a vibe em tensão e paranoia em níveis surreais.
Nos anos 90, um grupo de dançarinos urbanos se reúnem em um isolado internato, localizado no coração de uma floresta, para um importante ensaio. Ao fazerem uma última festa de comemoração, eles notam a atmosfera mudando e percebem que foram drogados quando uma estranha loucura toma conta deles. Sem saberem o por que ou por quem, os jovens mergulham num turbilhão de paranoia e psicose. Enquanto para uns, parece o paraíso, para outros parece uma descida ao inferno.
Toda a composição do filme é de extrema destreza, a técnica de Gaspar Noé salta aos olhos, os movimentos de câmera, as cores vibrantes remetendo algo de "Suspiria", de Argento, é um turbilhão estimulante e que surpreende na abordagem e nos rumos da história. Quem pensa que "Clímax" tem cenas orgiásticas prazerosas se engana fortemente, apesar de mais ameno não deixa o niilismo de lado, a demonstração da vaidade e o quanto o ser humano está cada vez mais insensível e detestável é ampliada e o incômodo é inevitável, as situações que se mostram são cruéis, abomináveis, um surto coletivo odioso. A sequência inicial demonstra uma mulher ensanguentada caindo na neve e então a apresentação de vários bailarinos de diversas etnias em uma pequena televisão antiga rodeada por livros e filmes, inspirações do diretor, obviamente. O filme começa de fato quando todos se encontram em um casarão isolado para festejar depois do ensaio, há uma sequência de dança à la Pina Bausch sensacional, movimentos hipnotizantes e extasiantes, uma verdadeira obra de arte, logo depois eles começam a interagir e a beber ponche, a atmosfera vibrante e vintage preenche a tela e à medida que bebem se soltam mais e conversas aleatórias seguem, uns bebem mais, outros menos e sobram uns dois que não bebem, quando a trip bate de vez vemos um amontoado de coisas sem sentido, tem gente que dança sem parar, uns criam encrenca e revelam suas personalidades verdadeiras, desejos se afloram e não demora para começar um surto coletivo. 

A mulher que planejou a festa foi acusada de colocar a droga no ponche, porém ela também se encontra paranoica e a tensão aumenta mais porque seu filho pequeno está presente e, talvez, tenha tomado o ponche, provavelmente sim, em dado momento ela surta e o coloca numa situação perigosa, daí pra frente é só desgraça, há um movimento de psicose coletiva, quando um aponta que tal pessoa é a responsável pela droga na bebida fazem o inferno, o cara que não bebia foi expulso e colocado para fora num frio congelante e uma menina grávida agride a si própria instalando uma atmosfera de selvageria horripilante. São cenas ágeis e enervantes, causa mal-estar, poucas foram as pessoas que não compartilharam dessa experiência negativa.

"Clímax" é uma experiência louca e surpreendente, Gaspar Noé concebe mais uma obra imersiva, pulsante, brutal e incômoda, um pesadelo que demonstra jovens se transformando, ou melhor, se revelando, e sentimentos de ódio, instinto de sobrevivência, narcisismo, desejo sexual, vingança e poder se maximizando e ganhando força semeando o descontrole e a selvageria e revelando o quão frágil é a índole humana.

quarta-feira, 6 de março de 2019

O Príncipe Feliz (The Happy Prince)

"O Príncipe Feliz" (2018) do ator e estreante na direção Rupert Everett é um filme magnânimo que exalta e homenageia uma das figuras mais emblemáticas da literatura inglesa do século XIX, Oscar Wilde, um dos nomes mais importantes da literatura. Apesar dos grandes feitos na carreira, esse influente escritor, poeta e dramaturgo, teve uma vida curta. Condenado a dois anos de prisão, Oscar Wilde contemplou sua liberdade por apenas três anos antes de vir a falecer. Agora, as lembranças e pensamentos dele formarão um retrato dos últimos dias do escritor.
É um filme feito com muita paixão, Rupert Everett cria com propriedade o excêntrico escritor, ele já o havia interpretado no teatro em 2012 e sua dedicação para esta produção levou anos e anos, sua capacidade em dar vida a Wilde é encantadora e apesar de alguma monotonia e passagens confusas envolvendo flashbacks é uma primorosa e exuberante obra que certamente agradará aos apreciadores de Oscar Wilde. Poético, a narrativa se entrelaça com o conto "O Príncipe Feliz", uma das fábulas escritas para seus filhos, a história diz sobre uma estátua e uma andorinha e possui uma bela moral de amizade, solidariedade e desprendimento. O filme foca nos anos após sua prisão, que aconteceu por perder um processo de difamação contra o Marquês de Queensberry, Wilde mantinha um caso com o filho dele e indignado o acusou de sodomia e comportamento indecente, o escritor o processou por difamação, mas acabou perdendo e considerado culpado foi sentenciado, o início de sua decadência começa aí, após sair da prisão obteve bloqueio para a escrita e a miséria o acompanhou, perdeu prestígio e também a saúde, a angústia tirou o lugar da excentricidade e observamos um ser humano perdido, mas que mesmo assim possuía grandes amigos dos quais o incentivava e o ajudava.
"Por detrás do sofrimento, há sempre sofrimento. Ao contrário do prazer, a dor não usa máscara."
A história não usa de didatismo, portanto é necessário conhecer pelo menos um pouco da vida do escritor, principalmente esses anos conturbados em que se iniciou sua derrocada, vemos um homem grandioso se apequenar e sofrer por amor, observamos suas tentativas de obter prazer com jovens rapazes e demonstrar a elegância que lhe restava. São passagens interessantes e tristes, ele anda por becos e tabernas enquanto amigos tentam resgatá-lo e fazê-lo retornar à escrita. Também há sua mulher Constance (Emily Watson) que acaba cortando a renda que restava a Oscar depois de perceber que ele não mudaria, infelizmente a relação com os filhos se quebra, não há mais vínculos e só vemos algo pelos trechos do passado quando lia para eles, Oscar volta a se encontrar com o jovem amante Alfred (Colin Morgan), que fica por um curto período até que seus pais cortam sua renda, mas por outro lado haviam leais amigos que sempre estavam à disposição, como Robert Ross (Edwin Thomas), seu executor literário e Reggie Turner (Colin Firth), que o acompanhou até seus minutos finais.

Nesta parte de sua vida só havia lugar para o sofrimento e a atmosfera faz jus sendo lúgubre, mas ainda restava uma grande parcela de paixão, sua necessidade em amar e ser amado por Alfred, sua fuga junto dele o levou por alguns dias a se sentir vivo, mas depois novamente seguiriam os joguetes para cima dele e dessa forma novamente lembrá-lo de que sua personalidade também o enojava, então volta para a realidade melancólica e o vemos pelas ruas trôpego e mais adiante com saúde frágil completamente destruído.

"Sofrer é um momento muito prolongado. Não podemos dividi-lo por estações. […] Para nós o tempo não progride. Ele gira. Parece circular em torno de um centro de dor."

"O Príncipe Feliz" é o recorte do período de declínio do escritor que era conhecido por suas excentricidades, uma figura exuberante que causou grande polêmica, na época homossexualidade era considerado crime e acabou sendo preso por dois anos, na prisão produziu entre outros escritos "De Profundis", uma compilação de cartas destinadas ao seu amante, a causa de sua desgraça. Nesta, que se tornou uma obra-prima inusitada, percebe-se outras camadas de Wilde, tão diferentes de seus outros trabalhos, são textos recheados de sentimentos conflituosos sobre a sua paixão cega e autodestrutiva.
É notável o empenho de Rupert Everett, sua composição e dedicação é inquestionável e mesmo que soe vaidoso o filme merece reconhecimento.