quarta-feira, 28 de maio de 2014

John Butler Trio + Ólafur Arnalds

Sempre é bom encontrar novos sons e dar um up na playlist, e é incrível a quantidade de artistas maravilhosos que existem. Infelizmente eles são ofuscados devido a grande enxurrada de mediocridades que reinam na atualidade, mas basta ter um pouco de vontade e pesquisar que inevitavelmente as coisas boas aparecem. Encontrei recentemente em ocasiões diferentes, John Butler Trio e Ólafur Arnalds, o primeiro é um som delicioso para se escutar no carro, no fone, ou em casa com o volume bem alto, o segundo já é mais intimista e requer algumas ouvidas para se acostumar. Aproveitem as dicas e mergulhem no universo musical de cada um.

John Butler Trio
John Butler Trio é uma banda alternativa australiana que mescla rock, reggae, jams, etc. Formada em 1998 por John Butler, vocalista e guitarrista, a banda sofreu várias mudanças ao longo dos anos, incluindo seus integrantes.
A musicalidade é bem ampla e abrange vários e diferentes instrumentos, como o ukulelê. A banda é conhecida por suas ótimas performances ao vivo. Além da maravilhosa sonoridade, as letras têm como objetivo levar mensagens bem atuais, como a destruição da natureza, valores morais, e o capitalismo. Seus álbuns são: "John Butler Trio" (1998), "Three" (2001), "Sunrise Over Sea" (2004), "Grand National" (2007), "April Uprising" (2010), "Flesh and Blood" (2014), e ainda conta com três discos ao vivo. Descobri John Butler por acaso no Youtube, o vídeo da música "Ocean", da qual está somente tocando, fazendo arranjos com o pedal e solando continuamente chama bastante atenção. É impressionante, e para quem curte rock instrumental é um deleite. Em muitas de suas músicas dá vontade de sair dançando ou sentar em volta de uma fogueira e curtir a sincronia que o som faz com a natureza.
John Butler por vezes lembra outros artistas como Jack Johnson, muitas de suas músicas têm uma pegada de surf, outras já pendem mais para o reggae, mas sem deixar o rock e as baladas mais lentas de fora. Essa variedade musical faz com que num único CD possamos aproveitar todas essas vertentes. Não deixem de dar uma vasculhada no Youtube, tem ótimos clipes, como "The Only Ones", é super divertido ao abordar o universo zumbi, e faz parte do álbum "Flesh and Blood". Seja acústico, instrumental, ao vivo, solo, ou em trio, John Butler arrasa, é música boa de se escutar.


Ólafur Arnalds
Ólafur Arnalds é compositor, multi-instrumentista e produtor musical nascido na Islândia. Seu estilo mescla música clássica com pop, são canções minimalistas que nos permitem conhecer um universo diferente do habitual. Suas melodias misturam elementos de música clássica com uma suavidade que beira o pop. As canções servem como som ambiente, e se faz uma ótima companhia. É necessário várias doses para se acostumar, como dizem é preciso educar os ouvidos.
Sua carreira se tornou sólida com o álbum "Eulogy for Evolution" (2007), desde então passou a ter espaço mundo afora. Nesse mesmo período iniciou uma turnê com a banda Sigur Rós, que lhe deu ainda mais visibilidade. Em 2010, lançou um novo álbum, intitulado "...And They Have Escaped the Weight of Darkness". Ólafur produz e compõe muito, além de fazer diversas parcerias. Sem dúvidas um grande artista que entende e respira música. O clima que permeia suas canções são incríveis, é uma renovação do clássico. Para os curiosos e amantes de boa música se faz necessário conhecer Ólafur Arnalds.
As obras deste artista são capazes de retirar do nosso eu mais profundo sentimentos já esquecidos, evoca a melancolia, a nostalgia, o amor, a solidão, a alegria, a esperança, a liberdade, a vida...


*Deixo a dica de um documentário do qual ele faz parte e discute a atual realidade da arte. "PressPausePlay" (2011) é um documentário que investiga a revolução digital que está transformando o nosso conceito de arte e cultura. Ele abre uma discussão sobre os efeitos positivos e negativos da tecnologia sobre as indústrias da música, cinema, fotografia e literatura. Com ferramentas de criação mais acessíveis e fáceis de usar, ampliou-se a democratização da arte permitindo que qualquer pessoa possa ser um artista, um músico, um cineasta. Alguns acreditam que a era digital revolucionou a arte para melhor e que este é o momento mais fértil para os artistas. Com a invenção da Internet e a explosão das mídias sociais, testemunhamos cada vez mais manifestações artísticas. Mas, com a democratização da cultura, vem o perigo da mediocridade e de se confundir o artista com o público. Quebrar todo o ruído está cada vez mais difícil e há possibilidades de o talento se perder ao longo do caminho.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

O Homem ao Lado (El Hombre de al Lado)

"O Homem ao Lado" (2009) é mais uma bela amostra do quão o cinema argentino é incrível. Roteiro inteligente, humor na medida exata, personagens reais e um tema muito atual. Dirigido por Mariano Cohn e Gastón Duprat (Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto - 2011) a história é sobre a desavença entre dois vizinhos por causa de uma janela.
Leonardo (Rafael Spregelburd) é um designer egoísta, arrogante e intelectualizado que ficou rico por ter desenhado uma cadeira não convencional. Sua esposa Anne é ainda pior, chata ao extremo, a típica perua que pensa sempre ser a dona da razão, professora de Yoga, dá aulas no último andar de sua casa. Lola, a filha deste casal todo certinho e modelo de uma sociedade imaginária, vive em seu quarto escutando e dançando sem ritmo uma música esquisita, ela com certeza não sabe nem o que significa a palavra afeto, sua vida é tão sem graça que parece nem ao menos existir. É necessário descrever a casa em que essa família mora, ela também é uma personagem neste filme. Super moderna, cheia de vidros, rampas e totalmente clean, foi projetada por um famoso arquiteto suíço, Le Corbusier, e fica localizada em La Plata, na Argentina.
Leonardo é o esteriótipo do ser humano que por causa de sua classe social se julga o conhecedor, ele vive numa bolha de felicidade ilusória, onde tudo parece estar no lugar. O mundo dele começa a balançar quando o vizinho abre um buraco a fim de construir uma janela, cuja dá de frente para sua casa. Victor (Daniel Araóz), um sujeito que a primeira vista parece ser agressivo por seu porte e expressão, vai se revelando numa pessoa de coração bom, que apenas deseja se inserir no mundo em que Leonardo faz parte. É a partir daí que a história se desenrola, são construídos diálogos inteligentes e sagazes. Victor argumenta que só precisa de um pouco da luz do sol, coisa que Leonardo tem de sobra, este rebate que construir uma janela ali é contra a lei, invasão de privacidade. Victor tem vivacidade, e até se diverte com Leonardo, em vários momentos afirma que vai parar a obra, oferece presentes, como um pote de conserva de porco, caçado por ele mesmo, inclusive dá a receita nos créditos finais do filme. Também dá uma escultura feita de armas e balas toda pintada em vermelho, que diz representar uma vagina. Nesta parte é engraçado pensar no conceito arte, porque se a mesma escultura fosse feita por um artista de renome, certeza que teria valor e todos fingiriam entender o que ela representa.

A mulher de Leonardo é irredutível na questão sobre a janela, ela reflete bem a mulher fútil que pouco se importa com o outro, afinal está bem aconchegada em seu mundinho, a não ser pela janela que Victor teima em construir. Vemos logo no início vários turistas e estudantes tirando fotos da única casa projetada por Le Corbusier na América Latina. Este também é um tipo de invasão, mas diferente da janela todos estão admirando a casa, enquanto Leonardo e sua família estão lá dentro sentindo uma sensação de poder em relação aos outros. Victor a abrir o buraco na parede quebra esse poder que Leonardo sente. Pela janela daria para ver a fraqueza de Leonardo, o desastre que é a sua relação com a filha, a infelicidade e o tédio que o rodeia. Por muitas vezes ele falava que estava trabalhando só para não atender os chamados de seu vizinho, mas Victor rebatia e dizia para ele a verdade e que sabia que não estava fazendo absolutamente nada. Leonardo vende a imagem do homem rico, designer criativo e muito inteligente, capaz de apreciar coisas que seriam insuportáveis à outras pessoas. O que dizer da cena em que ele e seu amigo estão na sala escutando uma música cheia de ruídos estranhos, aí o amigo dele vira e diz: "Gosto desta batida fora do ritmo", até descobrir que elas vinham das marteladas do vizinho. É sensacional!
Dá para discutir muitos e muitos aspectos sobre a sociedade e seus valores a cada cena. O humor negro está sempre presente e principalmente o sarcasmo nas falas de Victor. A arrogância de Leonardo é tanta que ele não passa seus conhecimentos e os métodos para os estudantes de design, a cena em que acontece a entrevista exalta bem isso, ele se nega a dar um conselho para os iniciantes, outra que também reflete sua mesquinhez é quando os estudantes vão mostrar seus projetos, e a única coisa que ele faz é maltratar e usar palavras desincentivadoras. Victor é um sujeito rude, simples, porém muito simpático, e é por causa dele que a filha de Leonardo consegue esboçar um sorriso, numa dança com os dedos que ele exibe a ela através da janela.

Victor é um ser humano de verdade que age conforme sua natureza, já Leonardo vive sob a  luz que emana da classe denominada artística, dá-se um valor do qual não tem. Aos poucos Victor  adentra no mundo de Leonardo e crê que se tornou amigo dele, há uma certa ingenuidade neste homem que julgamos no início um brutamontes.
O filme não poderia ter melhor desfecho, revela o quanto o ser humano pode ser egoísta em função de suas vontades, e colocar o seu ponto de vista como certo e ignorar o do outro. Leonardo tem todos os defeitos do mundo, mas se esconde numa plasticidade elegante que encanta a todos ao seu redor.
O filme questiona valores que a sociedade anula em função de aparência e elegância. Ter status tornou-se a meta, esquece-se dos sentimentos em relação ao outro, o espaço que qualquer um merece e precisa ter. Se pudéssemos ver através de uma fresta a vida de pessoas ditas perfeitas, encontraríamos apenas sujeira. Manter a imagem ilusória da felicidade tem as suas consequências. É incrível a que nível de estupidez chega o ser humano e que por tão pouco seja capaz de atos inescrupulosos.

"O Homem ao Lado" caminha a passos lentos, mas contém um suspense do qual ficamos presos o tempo todo. Com belíssimas atuações, diálogos riquíssimos, fotografia que prima por ângulos estratégicos e uma direção apurada que dá legitimidade à obra, o longa é um exemplar digno do cinema argentino que é expert em mesclar inteligência e humor.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Pedalando com Molière (Alceste à Bicyclette)

"Pedalando com Molière" (2013) dirigido por Philippe le Guay conta a história de dois atores que se reúnem para ensaiar a peça "O Misantropo", neste processo a ficção se confunde com a realidade. Gauthier Valence (Lambert Wilson) é um ator conhecido, principalmente por uma série em que interpreta um médico, decidido a fazer algo fora da mídia, vai até a pequena e isolada ilha de Ré, onde seu amigo, um ator aposentado, Serge Tanneur (Fabrice Luchini) mora, e o chama para interpretar "O Misantropo", de Molière. Serge inicialmente se recusa, não quer mais saber de atuar, mas ao mesmo tempo se sente tentado a interpretar o clássico personagem da história, este que tem tudo a ver com sua atual condição. Serge faz uma proposta a seu amigo, durante uma semana ensaiarão a primeira cena da peça e depois disso dará a resposta se irá aceitar ou não o convite. Durante esses dias acontece um jogo de poder e manipulação entre os dois. Serge e Gauthier ensaiam vorazmente as falas e cada um tenta ser melhor que o outro, inclusive trocando os papéis, ora Gauthier é Alceste e Serge é Philinte e vice-versa, só que por mais que Gauthier queira ser o protagonista Alceste, Serge é o que mais cabe ao papel. Ele assim como o personagem perdeu a fé na humanidade e é revoltado com a hipocrisia da sociedade.
São diálogos ricos, deliciosos e recheados de trechos da peça, todas as cenas contém um tom cômico, sarcástico, do qual dá uma força imensurável ao filme. Todos os detalhes e as pequenas coisas são importantes, como o passeio de bicicleta que fazem. Há momentos densos que nos tiram o ar, mas também alívios cômicos que dão dinâmica ao filme. É notável o respeito que os dois amigos nutrem pelo texto de Molière, a cada palavra pronunciada, seja nos modos contidos de Gauthier, ou no modo explosivo de Serge. É um duelo saboroso. Gauthier deseja comprar uma casa na ilha, e Serge lhe arranja um corretor, em meio as visitas que fazem conhecem Francesca, uma italiana que está se divorciando e por isso os trata mal. Porém, dias depois ela pede desculpas e uma amizade acaba nascendo entre os três, nesta parte o orgulho tanto de um quanto do outro começa a aflorar.

O modo como a arte é vista por ambos é o grande diferencial. Serge se aposentou por não conseguir suportar o meio que só viabiliza lucro, já Gauthier é o ator que todos amam, devido a série da qual protagoniza. Um papel medíocre na opinião de Serge, que em dado momento assistindo a série na sala despreza e sai atender o telefone. Gauthier se sente extremamente mal com isso. Por mais que os dois sejam diferentes, há uma grande amizade, mas que é rodeada de orgulho, vaidade e ressentimentos.
O final é incrível e completa a obra de maneira amarga, representar um papel exige-se muito mais que decorar falas e utilizar vestimentas elegantes, é saber retirar a essência do personagem e senti-la em si mesmo para o ser de forma natural, Serge tinha isso de sobra, mas infelizmente as coisas não funcionam por este lado.

É uma obra impecável, uma comédia francesa inteligente que soube dosar drama e comédia na medida exata, e ainda brincar com o texto de Molière, usando o personagem Serge que mistura-se ao Alceste. É um estudo sobre a amizade e todos os sentimentos que a envolvem, como admiração, enfrentamento, orgulho, vaidade, inveja, alegrias e tristezas.
As atuações são perfeitas e nos brinda com diálogos ágeis e instigantes, além da belíssima fotografia. "Pedalando com Molière" é um filme leve, mas que carrega uma crítica satírica em relação a sociedade e o quanto o ego pode ser destruidor.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Em um Mundo Melhor (Hævnen)

"Em um Mundo Melhor" (2010) dirigido pela dinamarquesa Susanne Bier (Brodre - 2004, Depois do Casamento - 2006), traz um drama denso que nos faz refletir sobre diversas coisas, entre elas o comportamento do ser humano em questões corriqueiras, e a conduta em relação ao próximo. O termo olho por olho é exposto de uma forma muito interessante e ainda retrata outras questões, como o bullying, perdas, violência e solidão.
Em uma nação africana devastada pela guerra, o médico cirurgião Anton enfrenta um fluxo constante de perda e tragédia. Enquanto isso, na Dinamarca, sua mulher está preocupada com seu filho mais velho, Elias, que é constantemente perseguido por Sofus, o valentão da classe. Quando Christian entra para a turma, ele e Elias se juntam no ódio a Sofus. Rude e cruel desde a morte de sua mãe, Christian passa por uma fase agressiva, enquanto seu pai Claus, devastado, não consegue lidar com seu comportamento. A partir da amizade conturbada dos dois garotos, as duas famílias criam um vínculo. Anton diariamente lida com pessoas que são vítimas da violência devido a grande pobreza que os rodeia na África, as mulheres e crianças são as que mais sofrem, o líder, Big Man, não poupa nem as grávidas. Seu filho Elias, que também é vítima de violência, apanha de um garoto maior na escola e volta para casa com os pneus da bicicleta furados, prefere omitir, já que a situação em sua casa não é das melhores, seu pai e sua mãe estão prestes a se divorciar. Quando Christian entra na vida de Elias as coisas começam a tomar um outro rumo, ele não se conforma em ter perdido a mãe e culpa seu pai, Claus não sabe o que fazer para amenizar o rancor que seu filho sente. Christian vendo que Elias não faz nada contra Sofus, vai e se vinga pelo amigo, ele bate tanto no garoto que o deixa quase cego.
Christian carrega um semblante fechado, está constantemente revoltado e distante dos outros. É um garoto que no fundo necessita de afeto, e que principalmente precisa descobrir que nem sempre a violência resolve, porém em certas ocasiões ela é necessária e o filme exemplifica isso na figura de Anton, ao ter que enfrentar Big Man, que invade o campo de refugiados procurando ajuda médica.
Os filmes de Susanne Bier são dramas intensos, é impossível não sentir a dor dos personagens, afinal as situações retratadas acontecem conosco. A violência está incutida no ser humano, e por bem pouco ela é despertada, no que se revela em algo grandioso e pode atingir outros que nada tem a ver.

O pensamento olho por olho, dente por dente dá certo para Christian, ele consegue intimidar Sofus e este não perturba mais Elias, isso se intensifica na sua cabeça e tudo para ele se resume a essa ideia. Um dia acontece algo muito trivial, o filho mais novo de Anton se envolve em uma briga no parquinho com outra criança, Anton imediatamente separa os dois e pergunta o que está acontecendo, nisso o pai do outro menino aparece e nervoso o insulta e diz para tirar as mãos de seu filho, não adianta conversar ou explicar que estava separando uma briga, Anton acaba levando um tapa na cara. É algo muito banal para ficar remoendo e o pai de Elias diz que o homem é estúpido e não conhece nada além daquele mundo que o rodeia, a ignorância. Seus filhos o escutam, mas Christian não absorve suas palavras e não se conforma que o pai de seu amigo queira esquecer tal episódio, então o garoto vai em busca de informações sobre o homem para que Anton o ensine de uma vez por todas que o que aconteceu não se faz. Mas o pior acontece, enquanto Anton tenta conversar, o outro homem apenas o xinga e bate em sua cara por mais de duas vezes. Para Christian isso é uma humilhação, pois ele pensa que para se ganhar respeito é preciso agir com violência. Mais tarde, ele começa a arquitetar um plano envolvendo bombas para vingar o pai de seu amigo. Elias de início não concorda, mas inevitavelmente segue seu amigo.
Todos os dramas explorados são consistentes e reais, por muitas vezes nos deparamos com situações que poderiam ser resolvidas à base de conversa ao invés da violência, claro, nem sempre devemos dar a outra face para que estapeiem, mas independente da escolha que fizer as consequências virão.

O filme gera discussões acerca de vários assuntos, mas não toma partido nenhum, apenas mostra que tanto um lado como outro tem os seus efeitos. O curioso dos filmes de Susanne Bier é que eles parecem convencionais em princípio, mas conforme o desenrolar percebemos que existe profundidade em suas narrativas e personagens, não ficamos imunes a eles após o término. Por essas e outras, vale a pena conferir "Em um Mundo Melhor".

terça-feira, 13 de maio de 2014

O Homem Duplicado (Enemy)

"Enemy" (2013) adaptado do livro "O Homem Duplicado" de José Saramago e dirigido por Denis Villeneuve (Os Suspeitos - 2013), é um filme de difícil absorção e compreensão, mas que é muito válido, já que retrata a complexidade do nosso eu mais profundo.
A história segue Adam (Jake Gyllenhaal), um solitário professor de História que leva uma vida monótona, apesar de manter um relacionamento com Mary (Mélanie Laurent). No início vemos uma cena em que ele explica a seus alunos sobre os padrões cíclicos, e é em cima da frase: "O caos é uma ordem ainda indecifrável", que o filme se desenrola.
Adam ao conversar com um colega resolve aceitar a indicação de um filme, e ao assisti-lo percebe algo muito perturbador, um dos figurantes é idêntico a ele. Estupefato volta e pausa bem no rosto do ator. Depois dessa estranha constatação, ele entra em paranoia e começa a procurar o nome de todos os figurantes até encontrar o de seu sósia, e então sua vida se resume a querer encontrá-lo. Após descobrir que existe um alguém igual a ele, seu mundo vira de ponta cabeça. Adam tenta entrar em contato com seu sósia, e depois de várias tentativas se encontram em um hotel às escondidas, papo vai, papo vem, inicia-se um jogo de interesses entre eles, em que cada um quer aproveitar um pouco da vida do outro.
O clima do filme é angustiante, a todo momento parece que acontecerá algo inesperado, é um suspense psicológico extremo, faz nossa cabeça pensar em todas as possibilidades, tentar achar respostas das quais o filme não tem pretensão nenhuma de apresentar. O final acontece e ficamos com cara de tacho, sem entender nada mesmo. Várias metáforas visuais se dão, por exemplo, a aranha.
É impossível explicar o contexto da obra, o filme não dá respostas, mas apenas metáforas. A perda de identidade em uma sociedade individualista é o grande ponto, o perder-se de si mesmo e querer ser outros. Mas esta explicação é deveras muito simples, é algo mais complexo e exige uma absorção profunda diante a tantos simbolismos.
É necessário conhecer a obra de José Saramago para poder ter alguma compreensão. O filme se propõe a colocar ideias e nos fazer refletir, principalmente sobre o que há dentro do nosso eu, a tamanha complexidade que ali existe. Diante a tantas influências, pessoas, regras, não se sabe exatamente o que se é na essência, perde-se um bom tanto de si pelo caminho. Outra coisa que acontece é achar que a vida dos demais é perfeita, e assim querer vivê-la. É o caos tomando conta. Por mais que seja incompreensível, é um filme que vale a pena por expor esses conceitos e colocar nossa mente para funcionar. É um baita suspense que envolve o drama em sua teia.

"O Homem duplicado" tem uma direção impecável, a fotografia escura só enfatiza a angústia e o sufocamento, a trilha sonora também compõe perfeitamente deixando o tom do filme pesado. O fato é que estamos acostumados a conclusões e quando isso não acontece ficamos frustrados, por vezes as perguntas são mais importantes do que as respostas, e não adianta tentar achar significados, querer encaixar as metáforas, afinal é sobre o caos que o filme disserta.
É um suspense com um quê de filosofia, o que você faria se encontrasse com seu duplo? Aquele que se difere do apresentado aos outros. Todos temos esse lado, e geralmente o escondemos com medo de mostrá-lo, mas a curiosidade sobre tal existe e uma hora ou outra nos deparamos com ele.

Trecho do livro: "Olharam-se em silêncio, conscientes da total inutilidade de qualquer palavra que proferissem, presas de um sentimento confuso de humilhação e perda que arredava o assombroso que seria a manifestação natural, como se a chocante conformidade de um tivesse roubado alguma coisa à identidade do outro."

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Attila Marcel

"Atilla Marcel" (2013) é dirigido por Sylvain Chomet, conhecido por suas animações, como "As Bicicletas de Belleville" (2003), "O Mágico" (2010). Este é seu primeiro filme em live-action, porém o tom de fábula permanece.
O enredo de "Attila Marcel" centra-se em Paul (Guillaume Gouix), que aos dois anos de idade vê seus pais morrerem. Por conta deste trauma perdeu a fala e a memória, e para piorar foi criado por duas tias controladoras, que só pensam em uma coisa: ver o sobrinho vencer as competições de piano. Sua rotina se resume entre o enorme piano da casa e tocar nas aulas de dança que suas tias dão. Paul não se expressa, só escreve em um quadro grudado na parede para que saibam aonde foi e para quê foi. Sua vida toma um outro rumo quando conhece a madame Proust (Anne Le Ny), que lhe oferece uma espécie de chá alucinógeno acompanhado de uma madeleine. A partir dessas visitas ele começa a se lembrar dos momentos de sua vida na infância.
É um filme caprichado que caminha pelo universo lúdico que Chomet sabe criar muito bem. Paul é um homem de 30 anos que ainda possui traços infantis, o trauma vivido na infância o deixou alheio ao mundo e com amnésia sobre os verdadeiros acontecimentos passados. A madame Proust entra na história com uma vivacidade espontânea, capaz de encantar o espectador já no início, a cada vez que oferece o chá alucinógeno a Paul, ela dá a oportunidade dele mergulhar no passado e lembrar de sua mãe e de seu pai.
Guillaume Gouix compõe um personagem minimalista, tudo é expressado através de seus olhos, já que sua postura é completamente travada, é excêntrico e admiravelmente cômico. O humor passeia pelos moldes de Jacques Tati, onde as miudezas são de grande importância, e consequentemente levam ao riso. De situações dramáticas, como o enclausuramento que as tias o submetem, seja o físico ou mental, há pitadas de um suave humor. Também lembra  o estilo de Jean-Pierre Jeunet, que cria um universo fantástico em situações cotidianas.
As viagens da qual Paul faz com o chá da madame Proust são os momentos mais inventivos, ele se lembra dos instantes de sua infância, e como nos sonhos, não há impedimentos para a imaginação. Com isso ele enfrenta seus medos e consegue clarear um pouco sua mente confusa. Madame Proust é uma personagem encantadora, em seu apartamento cultiva diversas ervas, possui pensamentos amplos e quando aparece tocando seu ukulelê é de uma beleza poética. Aliás, a música pontua perfeitamente o clima do filme.

Aos poucos as peças vão se encaixando na cabeça de Paul, as memórias aparecem e ele se dá conta e descobre que suas tias mantiveram em segredo a tragédia, e que egoisticamente o fizeram se tornar num pianista. As reviravoltas do fim são bem delicadas ao retratar algo tão dramático. As coisas para Paul vão se acertando e como nos contos fabulescos o final feliz é inevitável. Uma bela amostra de um filme de comédia diferenciado. Para quem conhece as animações de Sylvain Chomet sabe do seu grande talento e capricho.

"Achamos tudo em nossa memória: ela é uma grande espécie de farmácia, de laboratório de química, onde encontramos sem querer ora um calmante, ora um veneno perigoso." (Marcel Proust)

segunda-feira, 5 de maio de 2014

A Gravata (Le Noeud Cravate)

"Le Noeud Cravate" (2008) do canadense Jean-François Lévesque é uma animação elaborada em Stop-Motion e com outras personagens trabalhadas em 2D, no tradicional papel. A produção levou 2 anos para ficar pronta.
A história segue um homem solitário que trabalha em um alto prédio de escritórios. O único momento "alegre" em sua vida cinzenta é o dia de seu aniversário, do qual todo ano recebe um cartão e um presente de sua mãe, geralmente é uma gravata, mas inesperadamente ganha um acordeão. Sua vida segue indo de casa para o trabalho, do trabalho para casa, sua função é desamassar papéis com um ferro. Vários anos se passam, e um dia ele descobre o que acontece com os papéis que passa o dia todo desamassando com o maior cuidado. A descoberta o deixa triste, mas o fará dar um outro rumo a sua rotina. Aos 40 anos com seu acordeão redescobre a vida.
O curta expressa muito bem o quanto a rotina é fastidiosa, e que por causa dela perdemos a vontade de fazer coisas que gostamos, o cansaço nos toma, e comumente por um trabalho do qual somos apenas uma peça que mais tarde será descartada. Basta nós entendermos e mudar essa situação, sem medo. Por vezes a rotina vem de mansinho, se infiltra sem nem percebermos, e é perigoso que ao nos darmos conta já tenha se passado tempo demais. Mas sempre há tempo para recomeçar a ver a vida de uma outra forma, e tomar consciência de si mesmo, assim como o personagem do curta.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

O Físico (Der Medicus)

"O Físico" (Der Medicus - 2013) é a adaptação do famoso livro de Noah Gordon, é uma excelente história que discute a medicina na idade média e todos os percalços de um jovem que em prol do conhecimento científico foi contra a religião. É um romance saboroso repleto de fatos sobre a medicina num cenário efervescente. Antes de colocar o meu parecer sobre o longa, quero enfatizar algo que se discute muito desde o lançamento do livro aqui no Brasil, que é a tradução do título. Pois bem, The Physician = O Médico, assim como Der Medicus, em alemão. Mas, creio que a tradução que não foi ao pé da letra não esteja errada, apenas utilizaram uma palavra anacrônica, no que cabe muito bem ao clima da história, na idade média os médicos eram chamados de físicos. Antigamente a medicina não era considerada uma profissão e a viam como algo espiritual, não havia o lado científico. Para muitos a dúvida sobre a tradução ainda continua, é interessante dar uma pesquisada sobre a medicina na idade média e a etimologia da palavra físico. Rob Cole, o grande personagem da história aos poucos foi descobrindo seu dom e o aperfeiçoando, ou seja, era algo que estava ínsito em seu ser.
É um livro muito difícil de se adaptar, existem várias fases, personagens e cenários, todos muito importantes para o contexto da obra. Não tem como a linguagem cinematográfica se aprofundar, talvez uma minissérie poderia colocar ênfase em todas as partes, vemos passar rápido a grande jornada, os aprendizados sobre o judaísmo e outras coisas mais, porém, ainda continua sendo interessante e satisfatório. Principalmente, para quem leu o livro é uma história muito vívida. Outro ponto positivo é que a adaptação não foi feita por Hollywood, o que nos poupou dos grandes vícios que rodeiam as adaptações literárias. O alemão Philipp Stölzl nos deu um épico luxuoso e muito suculento.
Rob J. Cole é um menino pobre com muitos irmãos, ele é mais velho e por isso cuida dos mais novos. Sua mãe está prestes a dar a luz novamente, certo dia sente as contrações, mas após o nascimento do bebê percebe que há algo errado, pois não consegue se restabelecer. Rob ao colocar as mãos em sua mãe capta que a vitalidade dela está indo embora. Esse é o primeiro indicio de seu dom. Aos nove anos Rob está sozinho no mundo, até que ele conhece Barber (Stellan Skarsgård), um Barbeiro-Cirurgião, do qual lhe dá abrigo e o leva para trabalhar consigo, entre espetáculos, a venda de elixires e a utilização de métodos médicos. 

Rob aprende tudo muito rápido e logo deseja saber mais. Ao levar seu mestre em um médico judeu para operar a catarata, implora para que ele o ensine, mas o judeu se nega a ensinar alguém fora de sua religião. Ao perguntar onde ele conseguiu tais conhecimentos, o judeu lhe diz que foi na Pérsia, por um admirável homem chamado Ibn Sina, o médico dos médicos. Infelizmente para Rob, que era cristão, seria impossível sua admissão na Madrassa. Rob fica tão fascinado que decide partir, e aí acompanhamos sua jornada até a Pérsia, da qual enfrenta muitos males e transformações. O filme dá uma avançada nesta parte, acompanhamos ele já saindo de um navio após meses e o trajeto no deserto, onde conhece uma linda mulher, tudo parece terminar quando acontece uma tempestade de areia. Mas, logo seus sonhos começam a florescer de novo.
O romance entre ele e Rebecca (Emma Rigby), destoou bastante em relação ao do livro, particularmente achei sem sal nem açúcar. O que importa é a grandiosa parte em que ele se encontra com Ibn Sina (Ben Kingsley), e começa a estudar e desenvolver seu dom para a medicina.
Rob necessitava saber como era o corpo humano por dentro e clandestinamente o fez, a igreja, a mesma que matou milhares, via isso como uma difamação. A ciência teve que enfrentar muitos bloqueios da religião para poder crescer. Enquanto o Oriente possuía a intelectualidade e avanços, o ocidente em razão do cristianismo ficava cada vez mais pra trás. Hoje em dia ainda vemos grandes impasses, temos tecnologia e conhecimentos de sobra, porém ainda há dificuldades, um exemplo é o caso das células-tronco.

O filme dá asas à nossa imaginação, nos conta fatos históricos em boas doses de aventura. É uma história mágica que nos fisga pelos seus personagens e cenário. Interessante sua abordagem ao mostrar que para exercer a medicina precisa-se além de muito estudo, amor à profissão. É realmente um dom, é necessário sede de conhecimento e uma ampla visão. 
Impecável, sedutor, uma história grandiosa e completa, para quem ainda não leu o livro de Noah Gordon sugiro que faça o quanto antes. 
"O Físico" é um épico maravilhoso que abrange temas interessantes, é a velha briga entre ciência versus religião. Enriquece por sua narrativa e fascina por sua ambientação. Infelizmente o filme não teve destaque diante a abundância de lançamentos. É uma bela adaptação!