terça-feira, 29 de novembro de 2016

Moolaadé

"Nenhuma menina será mais cortada!"

"Moolaadé" (2004) último filme dirigido por Ousmane Sembene (Faat Kiné - 2001) é um grito de liberdade contra uma suposta cultura religiosa, uma realidade cruel e bruta da qual meninas passam em prol da "purificação", a mutilação genital não é uma prática exclusiva do Islamismo, que aliás não está no Alcorão, é uma prática sem fundamento e selvagem que inferioriza a mulher. Em alguns lugares se a mulher não for circuncidada são excluídas da sociedade, este filme levanta questões importantes e impacta pela violência que essas mulheres passam, e certamente um meio de promover a rejeição a este ato.
Numa aldeia africana, o costume da mutilação genital feminina, uma operação dolorosa, é temida por todas as garotas. Seis delas devem passar pelo ritual num determinado dia. O pavor é tanto que duas afogam-se num poço. As outras quatro buscam a proteção de Collé (Fatoumata Coulibaly), uma mulher que não permitiu que a filha fosse mutilada, invocando o "moolaadé" (proteção sagrada). Mas vários homens pressionam o marido de Collé para que retire a proteção, nem que para isso ele tenha de chicoteá-la.
Nesta aldeia a única que enfrenta fortemente as Salindana, as mulheres que cortam as meninas, é Collé, tanto que não permitiu que sua filha passasse por isso, com a ajuda das outras duas esposas de seu marido, principalmente a mais velha, acolhe quatro meninas em sua casa e invoca o moolaadé, onde uma fita colocada no portão impede a entrada. A cada dia a situação se complica, os homens do vilarejo não aceitam que desmereçam o poder deles e mandam que o marido de Collé a chicoteie a fim de proferir as palavras que quebrem o moolaadé, mas ela aguenta firme e permanece lutando. A união das mulheres se intensifica quando a morte de uma criança se dá durante essa prática, da qual a própria mãe a sequestrou durante o açoite e a levou. Usando qualquer tipo de faca e feito no meio do mato, sem nenhum tipo de assepsia muitas não suportam e morrem, as outras sobrevivem com traumas físicos e psicológicos horrorosos. São cortados os pequenos e grandes lábios, além do clitóris em alguns casos, por estética e também por acreditarem que assim a gravidez será mais fácil. A cena em que Collé morde o dedo de tanta dor durante a relação sexual com o marido, devido as consequências da violência sofrida quando pequena é uma das mais fortes, juntamente com a que é açoitada.

É o retrato de tradições misóginas que vão sendo perpetradas por ignorância, mas graças a mulheres como Collé estão aos poucos sendo extintas. Em vários países em que esta prática é comum está sendo ilegalizada. É complicado redefinir uma cultura, há o embate entre direitos humanos e o valor antropológico, quando mulheres se opõem a este ritual são excluídas pelos homens por não terem sido purificadas, são rejeitadas pelo fato de rejeitarem um costume ancestral. Sem informação dificilmente se toma consciência, como demonstrado no filme o rádio foi um grande aliado, os homens até tentaram impedi-las, mas com o companheirismo e a busca por maior expressividade acabou se formando uma aliança capaz de resultados significativos. A cena final exemplifica um começo da liberdade feminina com o canto e a coragem.

"Moolaadé" é um levante feminista, a personagem Collé tão resistente e consciente é uma figura para se inspirar.
Ousmane Sembene compôs uma narrativa bela, envolvente, direta, prioriza o discutir de ideias, um filme político rico, lúcido e necessário.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Michael Kohlhaas - Justiça e Honra (Michael Kohlhaas)

"Michael Kohlhaas" (2013) dirigido por Arnaud des Pallières (Parc - 2007) é uma adaptação da obra homônima, lançada em 1810, de Heinrich Von Kleist, onde aborda questões políticas da época, as injustiças cometidas pela nobreza e também pela igreja. O tema é a honra e retrata que a linha que separa a justiça da vingança é muito tênue, o bom cidadão na ânsia de reparar a sua dignidade não demora a ser corrompido pela maldade.
No século XVI, na região de Cévennes, no centro-sul da França, vive o vendedor de cavalos Michael Kohlhaas (Mads Mikkelsen). Ele tem uma vida tranquila e próspera, até sofrer uma grande injustiça de um nobre poderoso. Michael, homem religioso e íntegro, não vai medir esforços para conquistar novamente sua honra, mesmo que seja preciso iniciar uma guerra por todo o país.
O barão (Swann Arlaud) que diz ter permissão da rainha quer que Kohlhaas entregue a seus homens dois de seus melhores cavalos como garantia, já que ele não tem documentação para entrar nas terras, logo fica sabendo que foi enganado e que seu amigo Cesar (David Bennent) foi atacado pelos cães do barão, ao reaver seus animais os encontra em um estado deplorável, indignado recorre à justiça, mas o barão usa de sua influência e vence o caso, Kohlhaas sente a necessidade de ter sua honra restaurada e quando decide apelar para a rainha, sua esposa dá a ideia de que ela vá e peça, já que diante de uma outra mulher, talvez compreenderia a situação. Mas dá tudo errado e sua esposa é assassinada, aí Kohlhaas cego por todas as injustiças monta um exército e vai à guerra.
Por onde ele passa deixa rastros de morte, o que era para ser apenas a recuperação de seu sustento, desencadeia numa luta de classes. Em dado momento os homens de Kohlhaas não sabem mais porquê estão lutando, fica evidente que a exagerada vontade dele vencer é algo pessoal e não necessariamente tratar das representações de poder.
A violência chama a atenção da princesa que propõe anistia, mas com a condição de que cessem o caos. Desfaz o exército, porém o descontrole já havia sido instaurado e mais uma vez se vê envolto em intrigas e traições, quando menos espera é preso e o desfecho surge de maneira dúbia, conseguindo a tão almejada justiça para si e sua filha, a devolução de seus cavalos em estado impecável, mas ao mesmo tempo condenado à morte.

"Você vive tanto pelo amor como pelo medo que você inspira. Se inspirar apenas medo todo mundo despreza você. Só o amor, é sinal de fraqueza."

Mads Mikkelsen como Kohlhaas é magnífico, contido e ambíguo, uma figura imponente que desperta sentimentos variados. Friamente observamos as suas ações, honra e justiça acaba se tornando apenas vaidade.
A narrativa é lenta e tensa, as cenas enfatizam a beleza do local e mesmo sendo uma obra simples tem um quê de épico. Kohlhaas coloca tudo a perder em busca de vingança, um meio de acabar com as injustiças do império. O protagonista se vê em dúvida em muitos momentos sobre suas decisões e segue até o fim nessa dualidade.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

A Hora e a Vez de Augusto Matraga

"Sapo não pula por boniteza, 
Mas porém por precisão." (provérbio capiau)

"A Hora e a Vez de Augusto Matraga" (2011) dirigido por Vinícius Coimbra (A Floresta Que se Move - 2015) é baseado no conto homônimo do livro "Sagarana", do escritor Guimarães Rosa, o filme narra a história de Augusto Matraga (João Miguel), fazendeiro mineiro valente e mulherengo, à beira da falência, que ao buscar vingança por sua mulher tê-lo trocado por Ovídio Moura (Werner Schunemann), quase morre após cair em uma emboscada armada pelos capangas do Major Consilva (Chico Anysio). "Renascido", depois de ter sido cuidado por um casal, Matraga dedica o resto da sua vida à sua fé e ao trabalho, esperando "sua hora e sua vez" chegar, até fazer amizade com o rei do sertão, Joãozinho Bem-Bem (José Wilker), e seu bando de jagunços.
A história já foi adaptada em 1965, dirigida por Roberto Santos, tanto essa primeira versão como a segunda são obras maravilhosas que evidenciam o povo sertanejo, a vivência rural, as lutas entre fazendeiros, a violência e o misticismo. Conhecido como Nhô Augusto e também como Augusto Matraga, João Miguel encarna perfeitamente um sujeito rude que é capaz de qualquer coisa, executa maldades por pura crueldade e não se importa com a sua fazenda que está arruinada e tão pouco com a mulher e a filha, haja vista a decadência do marido, dona Dionóra (Vanessa Gerbelli) decide ir embora com Ovídio Moura levando a filha Mimita, enquanto isso seus capangas colocam-se a serviço de seu inimigo Major Consilva Quim Recadeiro (Chico Anysio), restando o frouxo, mas fiel Quim (Irandhir Santos). Nhô Augusto sabendo disso resolve se vingar matando todos, no caminho é pego em uma emboscada pelos capangas do Major que o esfolam, mas no momento em que iam matá-lo se joga de um penhasco. Dado por morto, Quim inconsolável vai até a fazenda do Major buscar vingança, mas o coitado termina sendo morto. Contudo, Nhô Augusto é encontrado por um casal de negros velhos, a mãe Quitéria e o pai Serapião, que cuidam com paciência deste homem que aos poucos se recupera, mas agora ele é outro homem, aparentemente. Religioso, se submete ao trabalho duro, a penitências e a rezas, espera ser perdoado pelas suas crueldades e deseja ir para o céu encontrar com Deus. Nhô Augusto tem notícias de sua família, mas prefere ficar aonde está. Um dia, Nhô Augusto oferece estadia a Joãozinho Bem-Bem, jagunço de larga fama, acompanhado de seus capangas, faz tudo o que pode para agradá-los e vendo a destreza de Matraga, Joãozinho o convida para acompanhá-lo, mas ele recusa e prefere continuar só.
Recuperado, Augusto põe-se a viajar sem destino num jumento, ele sente que chegou a sua vez quando reencontra Joãozinho Bem-Bem e seu bando prestes a executar uma vingança contra um assassino que fugira. Neste momento ele opõe-se e começa a matar os capangas de Joãozinho, e no fim entra em um peculiar duelo.

"Sorte nunca é de um só, é de dois, é de todos…Sorte nasce cada manhã, e já está velha ao meio-dia…"

"A Hora e a Vez de Augusto Matraga" é um filme feito com minuciosidade, apuro e vigor, a estética é linda e captura nosso olhar a cada frame, a trilha sonora remete ao faroeste e complementa perfeitamente o clima da história. As magníficas interpretações de João Miguel e Irandhir Santos, este que o pouco que aparece se sobressaí, especialmente é de reverenciar, João se entrega e suas expressões nos conduzem a dualidade de sua alma, a transformação da qual passa é brusca, de um homem mal para religioso e passivo, ele é ambíguo, complexo. Brilha também José Wilker e Chico Anysio, ambos falecidos, foi o último trabalho deles no cinema. O filme ganhou diversos prêmios, mas teve alguns problemas burocráticos na distribuição e com alguns anos de atraso a produção chegou ao circuito comercial, mas sem grande visibilidade, infelizmente.

Fiel à prosa de Guimarães Rosa, é um deleite a sonoridade dos jogos com as palavras, o lúdico e mítico, os maneirismos expostos encantam e reverenciam a obra. 
"A Hora e a Vez de Augusto Matraga" é irretocável, um belíssimo exemplar nacional que merecia ser exaltado pelo capricho que foi concebido.

"E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi."

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O Lamento - The Wailing - Goksung

"O Lamento" (2016) dirigido por Hong-jin Na (O Caçador - 2008) é mais um exemplar da exímia capacidade dos sul-coreanos em compor thrillers. É um filme que exige um pouco de atenção, tanto por ele aparentar ser confuso e por ser repleto de camadas, como também pela sua longa duração. Mas, inevitavelmente, ao fim o choque que ele causará irá compensar e muito a experiência. 
A chegada de um misterioso estranho (Chun Woo-hee) em uma aldeia tranquila coincide com uma onda de assassinatos cruéis, causando pânico e desconfiança entre os moradores. Quando a filha do oficial de investigação Jong-Goo (Kwak Do-won) cai sob a mesma magia selvagem, ele chama um xamã (Hwang Jung-min) para ajudar a encontrar o culpado.
Ambientado em Goksung, aldeia pacata aos arredores de Seul, um local que emana algo de misterioso e tenso, de repente se transforma num verdadeiro caos quando pessoas começam a ter acessos de fúria e loucura e matam seus próprios familiares. Para investigar os casos o atrapalhado e preguiçoso Jong-Goo entra em cena, ele nos conduz a esta intricada trama e de modo histriônico vai se aprofundando nas questões que podem estar envolvidas, Jong-Goo desconfia de um estranho japonês que mora só no meio da floresta. As coisas pioram quando a filha do policial parece estar possuída por algum espírito maligno, aí entra a figura do xamã para tentar a livrar disso e também para descobrir o que está acontecendo.
O filme retrata fortemente o mal, são variadas as suas facetas, ele pode surgir em qualquer ocasião e de incontáveis formas, se chegar muito perto dele, talvez seja contaminado, e se ainda tentar eliminá-lo, será consumido. O aspecto místico e religioso está inserido, um pedaço da cultura oriental com representações de guardiões e demônios e tantas outras superstições. 

"Mas atemorizados, pensavam que viam algum espírito. Ele, porém, lhes disse: Por que estais perturbados? Olhai as minhas mãos e os meus pés, apalpai-me e vede; porque um espírito não tem carne ou ossos, como vedes que tenho."

"O Lamento" tem uma narrativa complexa, porém vamos aos poucos descobrindo esses personagens com características ambíguas e decifrando os enigmas da trama, o diretor prima pelas reviravoltas e surpreende o espectador quando tudo parece se esclarecer, ele vai introduzindo cada vez mais perguntas sem respostas, no que desconcerta à medida que a história avança. É um filme imersivo que traz à tona uma incrível quantidade de simbolismos. 
Por ter uma cadência lenta e ser longo às vezes se torna enfadonho, mas nada que comprometa. Outro ponto é o humor que acaba dispersando a atenção, aliás são diversos os subgêneros na trama, mas no decorrer sempre há um lembrete de que é um terror/horror, os elementos utilizados instigam e não são poucas as cenas em que a brutalidade está presente.

A sensação que o filme causa é poderosa, o mistério, o horror atmosférico, as perguntas, o jogo que é feito conosco é sarcástico. 
Um dos maiores pontos a se destacar é a mudança do personagem principal, ele começa como um policial bonachão e vai se transformando, ganhando nuances, um ser humano dúbio que bambeia na linha tênue que separa a justiça da vingança.
"O Lamento" é permeado de cenas interessantes e que contêm pistas, é preciso estar imerso na trama para compreender, por exemplo, na cena de abertura, o japonês pescando com dois anzóis já é um aviso. Um grandioso filme feito para rever e cada vez mais formular interpretações. 

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A Lei de Herodes (La Ley de Herodes)

"A Lei de Herodes" (1999) dirigido pelo mexicano Luis Estrada (A Ditadura Perfeita - 2014) é um filme de humor ácido que retrata todos os possíveis e impossíveis artifícios utilizados no meio da política para atingir o poder, expõe sarcasticamente a corrupção e o que o poderio faz com o ser humano. Carrega uma forte crítica social com personagens caricatos e inescrupulosos. Representa de forma mordaz o poder e a corrupção política no México durante o longo mandato do Partido Revolucionário Institucional (PRI). O longa foi produzido em 1999, portanto, o país ainda estava sob domínio do partido. Uma importante obra para evidenciar e denunciar essa ditadura. 
A história se passa durante o mandato de Miguel Alemán Valdés, em 1949, e conta a história dos habitantes da localidade mexicana de San Pedro de los Saguaros, um povoado rural habitado por nativos indígenas, que lincham e decapitam o prefeito local com um facão quando na tentativa deste fugir do povoado com o dinheiro público. O período eleitoral se aproxima e o governador Sánchez (Ernesto Gómez Cruz), não disposto a ver arruinada sua posição por um escândalo político, ordena que Fidel López (Pedro Armendáriz Jr.) o secretário de governo, nomeie um novo prefeito para San Pedro. López decide que o mais indicado até que se realizem as próximas eleições é Juan Vargas (Damián Alcázar), um inofensivo funcionário da limpeza e antigo militante do PRI, que seguramente não será tão corrupto como seu antecessor. Juan chega à aldeia sem lei, ou melhor, apenas com a lei da corrupção. Vários métodos são experimentados e o crime parece o único a resultar. O outrora simples e honesto Juan transforma-se no mais abominável político pronto para fazer de tudo e conseguir extorquir dinheiro do povo.
Juan tem ideias para fazer crescer o povoado, mas sem verbas fica difícil e vendo a situação piorar decide pedir dinheiro ao governador, que recusa as propostas, então Juan quer renunciar, mas é aconselhado e ainda ganha uma pistola e a Constituição, onde há tudo que precisa saber, nessa parte o diálogo é primoroso e reflete muito bem o momento em que Juan começa a ser corrompido. A lei de Herodes o toca, pois como se diz: "Ou te calas ou te prejudicas". Ao voltar Juan já não é mais o mesmo, a partir do momento que descobre os benefícios que tem ao cobrar impostos abusivos se transforma num tirano, a pistola serve para amedrontar a população e a Constituição permite que ele crie mais impostos e aplique multas. As situações que se desencadeiam são hilárias e cada vez mais Juan ultrapassa os limites da moral, a interpretação de Damían Alcázar é magistral, antes um homem de coração puro que segue a boa conduta, se envolve nas teias da corrupção e a ganância o torna violento, passando por cima de qualquer um. Os impostos do povoado aumentam e novos são criados, até o bordel é tomado para si, quando promete eletricidade no local, vemos que somente o poste é erguido, as farsas, as mentiras, todos os podres que permeiam o antro político são explicitados sem receio algum.

Satisfatório assistir um filme inteligente e com humor certeiro, parece ser atemporal também, já que passa-se os anos e o cenário continua praticamente igual. São filmes como esse que elucidam que quem tem o poder nas mãos nunca vai ser um alguém bom. O ser humano apodrece-se em vida pela ganância, atropela os demais para atingir seu objetivo, mesmo que para isso precise utilizar a violência. Juan percebeu que era fácil se dar bem ali no povoado, mas quando alguém tentava atrapalhar seus planos não pensava duas vezes, arquitetava um meio de colocar a culpa em outro e até matava se fosse preciso. 

"A Lei de Herodes" é um filme que demonstra as manobras da corrupção no México, mas que acaba se tornando universal. Com um humor cortante, personagens desprezíveis e um roteiro envolvente consegue retratar a realidade das falcatruas políticas. Luis Estrada se configura como um dos cineastas contemporâneos mais interessantes, ele é um exímio diretor, suas obras contêm uma enorme força e são essenciais, pois tratam de temas pertinentes, principalmente envolvendo política e sociedade com um tom satírico. Grande filme, grande diretor!

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Nossa Irmã Mais Nova (Umimachi Diary)

"Nossa Irmã Mais Nova" (2015) dirigido por Hirokazu Koreeda (Boneca Inflável - 2009, Pais e Filhos - 2013) é um filme delicado que coloca em ênfase o cotidiano e a valorização da vida através de acontecimentos tristes. A família é tema recorrente na filmografia do diretor, inspirado em um mangá de Akimi Yoshida, conta sobre três irmãs - Sachi (Haruka Ayase), Yoshino (Masami Nagasawa) e Chika (Kaho) - que vivem juntas em uma casa grande na cidade de Kamakura. Quando seu pai - ausente da casa da família nos últimos 15 anos - morre, elas viajam para o interior para seu funeral, e conhecem Suzu (Suzu Hirose), sua tímida meia-irmã adolescente. Após criar laços rapidamente com a órfã, elas convidam-na para viver em Kamakura. Suzu ansiosamente concorda e uma nova vida de alegres descobertas começa para as quatro irmãs.
É de um episódio melancólico que nasce uma bela amizade, Suzu é uma adolescente madura e que tem carinho pelo pai que acabara de falecer, já as outras o tem como uma figura distante, apenas a mais velha tem recordações do pai. A mãe das meninas há tempos foi embora e os dois lados guardam mágoas e também orgulho para se visitarem. Sachi, Yoshino e Chika são super diferentes entre si, mas se amam e se protegem, moram juntas e se viram como podem na grande velha casa que a família deixou. Com a morte do pai, surge uma aproximação significativa com Suzu, ao convidá-la para morar com elas em Kamakura, Suzu aceita. Daí pra frente os silêncios predominam grande parte da trama, principalmente a respeito dos sentimentos, os diálogos giram em torno do dia a dia, às vezes uma conversa sobre o passado vem à tona e observamos como cada uma lida com os acontecimentos.
Sachi é a mais velha e responsável, tem um comportamento sério, ela é enfermeira e mantém um caso com um médico casado, Yoshino é engraçada e despojada, mas a sua inconstância em empregos e com namorados revela uma faceta triste, ela está sempre tomando cerveja ou umeshu. Chika é excêntrica, risonha, mas silenciosa. A relação entre elas é agradável, apesar das brigas corriqueiras nunca deixam que nada as afete. Suzu chega na casa com curiosidade e esse ambiente novo lhe proporciona um outro olhar, já que suas irmãs têm uma visão diferente do pai. Ela vai à escola, participa dos treinos de futebol e experimenta novas sensações. As conversas são interessantes por mostrar vários ângulos da história, com Sachi é como se fosse uma mãe falando, com Yoshino são conselhos de amiga e com Chika é uma troca, Suzu conta as suas lembranças e a outra imagina que poderia ter sido com ela.

Um ponto da trama a se destacar é a visita da mãe, ela quer conhecer Suzu e ver como tudo está, dar seus palpites, entre tantas desavenças o que predomina no fim é a angústia da distância que há entre elas, Sachi tenta reverter um pouco, uma tentativa para que dali pra frente seja diferente. O diálogo que acontece no cemitério resume a relação entre elas, ao visitar o túmulo da avó de Sachi, a mãe diz: "Por todo esse tempo que não a visitei, minhas desculpas. E por não ser uma boa filha". Sachi a olha espantada, pois reflete perfeitamente na relação delas.
É com encanto que tudo se desenvolve e com espontaneidade e sinceridade que as coisas se transformam, não há grandes eventos ou reviravoltas, é o cotidiano simples que Hirokazu Koreeda tanto preza que se desnovela, é a delícia de viver os momentos mais comuns, e também passar pelas tristezas e sofrimentos com coragem e amabilidade.

"Nossa Irmã Mais Nova" mesmo tendo algo de melancólico, principalmente ao que concerne a dificuldade dos laços familiares, é quase sempre alegre. As emoções são muitas, são contidas, reprimidas, não existe muito contato físico e demonstrações de afeto, a cultura japonesa tem essa característica, mas os olhares e as palavras ditas são suficientes para entender. Para completar a trilha sonora composta por Yoko Kanno complementa com a aura serena e tocante. O longa é deveras uma poesia visual que inebria a cada cena.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Lavoura Arcaica

"...e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é..."

"Lavoura Arcaica" (2001) dirigido por Luiz Fernando Carvalho (Capitu - 2008) é uma adaptação fiel do livro homônimo de Raduan Nassar, uma obra sensível e imensamente poética, uma joia da literatura nacional. Tudo foi transposto com beleza, cada dilema e cada complexidade, textos integrais são ditos pelos atores que se expressaram com total dedicação. É um exemplar maravilhoso e um dos grandes filmes do cinema nacional, foi concebido com delicadeza e nos delicia durante o tempo que nos toma, também é uma experiência transformadora que coloca em evidência as escolhas, a vida em família, a liberdade, a religiosidade, o amor, o tempo, entre tantos outros temas caros à nossa existência. 
"Lavoura Arcaica" narra em primeira pessoa a história de André (Selton Mello), que se rebela contra as tradições agrárias e patriarcais impostas por seu pai e foge para a cidade, onde espera encontrar uma vida diferente da que vivia na fazenda de sua família. Quando é encontrado em uma pensão suja em um vilarejo por seu irmão Pedro (Leonardo Medeiros), passa a contar-lhe, de forma amarga, as razões de sua fuga e do conflito contra os valores paternos.
Sem ordem cronológica, André faz uma jornada sensível a sua infância, contrapondo os carinhos maternos e os ensinamentos quase punitivos do pai. Este valoriza acima de tudo o tempo, a paciência, a família e a terra, fiado na doutrina cristã. Mas André não aceita esses valores. Ele tem pressa, quer ser o profeta de sua própria história e viver com intensidade incompatível com a lentidão do crescimento das plantas. Nesse trajeto, a paixão incestuosa por sua irmã Ana (Simone Spoladore), e sua rejeição, exercem papel fundamental na decisão de fugir da casa da família. A mãe desesperada manda o primogênito Pedro buscá-lo para tentar reconstruir a paz familiar. Trazido de volta para a fazenda, André é recebido por seu pai em uma longa conversa e uma festa que, ao invés de resolverem o conflito, evidenciam a distância intransponível entre as gerações. Por essa razão, a história é muitas vezes descrita como uma versão invertida da parábola do filho pródigo. Ambientado na década de 40, numa comunidade rural formada por imigrantes libaneses, a família de André é comandada com rigidez pela figura do pai (Raul Cortez), que preza pelos valores cristãos, os filhos cumprem uma rotina dominada pelo tédio e pelo trabalho, André se rebela e decide ir embora de lá, principalmente, por estar apaixonado pela sua irmã, Ana. Esta foi a forma que encontrou para expor seu desejo de liberdade. Tomado de angústia ele vai viver sozinho longe de tudo numa pensão suja, sem a abundância que tinha em casa, a sua fuga afeta todos os membros da família, especialmente, Ana. A mãe inconsolável, pede para o filho mais velho, Pedro, que o traga de volta. O encontro dos dois é regado a diálogos intensos e junto a devaneios imergimos no passado de André.
Cheio de poesia visual, "Lavoura Arcaica" causa incômodo, o personagem André é dominado pela angústia e ele a todo instante parece querer expelir isso de si, são cenas que causam desconforto, mas não simplesmente pelas situações retratadas, como a primeira cena em que ele se masturba ferozmente caído no chão, mas pela significância que elas têm para o protagonista. A direção de fotografia, assinada por Walter Carvalho é um primor e ela é fundamental para passar os mais variados sentimentos, tem uma textura seca e suja. A trilha sonora com influências de música árabe é um complemento belíssimo, som e imagem se integram perfeitamente e intensifica as sensações.

"Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições ou na hora dos sermões: O pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinham primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua esquerda vinha a mãe, em seguida eu, Ana e Lula, o caçula. O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as suas raízes. Já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida, pela carga de afeto." 

O filme aborda temas complexos, como a difícil interação entre pais e filhos, a criação rígida em que a figura do pai é que exerce poder incontestável, minando desejos e anseios dos filhos, um pai que ao mesmo tempo é bom, mas ignora que os filhos tenham suas fraquezas. Nesta família patriarcal, a mãe é somente uma figura que carrega as dores dos males que penetram o seio familiar, ela é a que toma os filhos nos braços, algo que só fortalece esse ciclo sufocante de hipocrisia. 
A religião acentua as regras morais ditadas pelo pai, que cego pelas doutrinas não consegue enxergar o que se passa a seus filhos, isso afasta André que não consegue pedir ajuda ao pai, quando volta para casa ele tenta conversar, inclusive a melhor parte do filme e uma das cenas mais belas, André fala de suas dores, mas seu pai é incapaz de compreender.

"– Por que empurrar o mundo pra frente? Se já tenho minhas mãos atadas, não vou, por iniciativa, atar meus pés também. Por isso, pouco me importa o rumo que os ventos tomem. Eu já não vejo diferença. Tanto faz que as coisas andem pra frente ou que elas andem pra trás.
– Não quero acreditar no pouco que te entendo, meu filho.
– Não se pode esperar de um prisioneiro que sirva de boa vontade na casa do carcereiro. Da mesma forma, de quem amputamos os membros, seria absurdo exigir um abraço de afeto. Maior despropósito que isso, só mesmo a vileza do aleijão, que na falta das mãos, recorre aos pés para aplaudir o seu algoz. Fica mais feio o feio que consente o belo… 
– Mais pobre o pobre que aplaude o rico; menor o pequeno que aplaude o grande; mais baixo o baixo que aplaude o alto. E assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam. Acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros. A vítima ruidosa que aprova o seu opressor se faz duas vezes prisioneira.
– É muito estranho o que eu estou ouvindo.
– Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo. Erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente."

As interpretações são sublimes, Selton Mello se entrega vorazmente a seu personagem, se revolta contra à ditadura do pai e se enovela cada vez mais em seus desejos, ele grita, se contorce, se infiltra na natureza, seus pés se esfregando junto à terra é uma constante. Raul Cortez, o pai, dá valor ao tempo e tem a paciência como a maior qualidade, seus sermões antes do jantar exprimem a lei do cabresto, ele é soberano em cena, quando André o contesta não sabe como proceder, a não ser com mais repressão. Simone Spoladore como Ana não diz uma palavra durante todo o filme, mas expressa pelo seu corpo a paixão pela vida, esta que acende em André o desejo pela liberdade. Essa rebeldia de André toma conta de seu irmão caçula, Lula (Caio Blat), que também deseja sair daquela célula familiar e descobrir o mundo. Leonardo Medeiros como Pedro, o irmão mais velho e que vai em busca de André, passa para frente os mesmos valores que o pai ensinou, mas vendo e ouvindo o irmão que está perdido e acometido por delírios e pela epilepsia, se amargura diante a situação. 

É um retrato pertinente da dura relação entre pai e filho, da distância das gerações que causa a falta de diálogos, e o como o conservadorismo religioso danifica ainda mais, pois o amor é distorcido, cria-se regras e castra-se a liberdade do querer e do pensar. O argumento da tradição serve para oprimir e cometer injustiças, as mulheres da casa que o digam, quando o pai é contestado, simplesmente diz-se que é tradição.
"Lavoura Arcaica" é um filme denso, indigesto, lírico, também longo e enfadonho, mas de um valor imensurável para quem aprecia obras poéticas, mergulhar em sua narrativa é uma experiência única de reflexão. A sensação causada não passa após seu término, ao contrário, ela cresce dentro de nós à medida que pensamos nas questões abordadas.

"O tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia a dia para ser vida nos subterrâneos da memória."

sábado, 5 de novembro de 2016

Trabalhar Cansa

"Trabalhar Cansa" (2011) dirigido pela dupla Juliana Rojas (Sinfonia da Necrópole - 2014) e Marco Dutra (Quando Eu Era Vivo - 2014) é um filme que explora no sobrenatural o horror que o cotidiano estressante causa, a trama segue com metáforas explícitas o quanto o trabalho e a rotina incessante acaba influenciando o psicológico das pessoas. Afinal, o trabalho dignifica o homem?
Helena (Helena Albergaria), jovem doméstica, decide montar o seu primeiro negócio: uma mercearia de bairro. Ela contrata Paula (Naloana Lima) para tratar da filha e da casa. Mas quando Otávio (Marat Descartes), o marido de Helena, fica desempregado, as relações entre as três personagens mudam de repente. Acontecimentos inquietantes começam então a ameaçar o comércio de Helena.
Inicialmente a história mostra o sonho de Helena prestes a se concretizar, o minimercado situado num ótimo bairro, ela dá prosseguimento na papelada, visita o local que antigamente já tinha sido um mercado e que ainda guarda as prateleiras e freezers do antigo dono que sumiu misteriosamente. Mesmo que o marido tenha perdido o emprego ela persiste na ideia e finaliza o acordo. Observamos todo o processo antes e depois da inauguração, exige-se muita determinação e vontade, Helena contrata um ajudante, um açougueiro e uma moça que fica no caixa, já logo de cara dá problemas no estoque, faltam produtos, além de que volta e meia surge um cheiro podre que invade os corredores e afugentam os clientes. Esses imprevistos começam a preocupar Helena, todos os dias conta a quantidade de produtos e sempre dá por falta, até que desconfia do ajudante e o despede, a moça do caixa também é fiscalizada corriqueiramente, uma certa obsessão toma conta de Helena, ela não é mais capaz de descansar, em sua casa a filha está mais apegada a empregada e se irrita por tudo estar fora do lugar, pois não é mais ela que limpa e arruma, também sente ciúmes da relação da filha com Paula, esta que trabalha de forma irregular e recebe um salário incompleto, fora que dorme no próprio serviço num quartinho apertado e sem ventilação. 
Nesse meio tempo Otávio procura emprego, em uma das entrevistas marcada com um amigo, é pego de surpresa ao integrar uma entrevista coletiva e desiste por não querer se submeter a uma dinâmica ridícula. Ele leva o currículo em variadas empresas, mas nada acontece. O que resta é trabalhar por comissão em casa como vendedor de seguro de vida. Ele não é muito presente na rotina de Helena, mas o vemos esporadicamente ajudá-la. A tensão aumenta quando a parede que foi recentemente pintada mofa depois do episódio do cheiro ter sido resolvido, Helena tenta disfarçar por algum tempo, mas a curiosidade do porquê a parede estar daquele jeito é maior, daí ela pega uma marreta e a destrói, o que sai de dentro é algo inimaginável. 

É uma enorme metáfora sobre o como o trabalho em excesso transforma o ser humano em animal selvagem, o deixando insatisfeito, frustrado, pois como se vê Helena nunca está feliz, apesar de ter realizado o sonho de trabalhar para ela mesma, os problemas só aumentam, quando não é a contabilidade, é a estrutura, e por aí vai. Helena se sacrificou pelo trabalho e só perdeu, o cansaço físico e psicológico a detonou.
O suspense dá o tom à história, estranhos acontecimentos permeiam o cotidiano, é criada uma atmosfera obsessiva onde eventos sobrenaturais se materializam, o filme mescla essas passagens com uma densa crítica social sobre a competitividade do mercado de trabalho, o desfecho ao contrário da aura sinistra, dá um choque de realidade.

"Trabalhar Cansa" é um exemplar interessante do cinema nacional, começando pelo gênero, o terror é inserido com destreza e assemelha-se com um pesadelo, o drama vivido pelos personagens é angustiante, as incertezas e as frustrações em torno dessa busca por encontrar soluções para ter uma vida melhor.
Tudo o que rodeia a esfera do mercado de trabalho está representado no filme, assusta de verdade analisar a transformação do ser humano por conta de conseguir e manter um emprego. Perde-se boa parte de si nessa caminhada. Triste e cruel!

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O Retorno do Idiota (Návrat Idiota)

"O Retorno do Idiota" (1999) dirigido por Sasa Gedeon é um filme tcheco inspirado livremente na personagem da obra "O Idiota" de Fiódor Dostoiévski.
Olga (Tatiana Vilhelmová) ama Emil (Jirí Langmajer), que ama Anna (Anna Geislerová), que ama Robert (Jirí Machácek). O Idiota ama todo mundo. E esse é o seu problema. Ele ama a todos, na mesma proporção. Frantisek (Pavel Liska), o Idiota, não conhece quase nada e nunca experimentou muita coisa. Ele passou grande parte de sua vida em um hospital psiquiátrico, assim tem uma visão muito simples do mundo. Agora está de volta para seus parentes, embora eles não saibam de sua existência. São pessoas que só conhecem sua própria vida e suas relações, que são tão complicadas e enredadas que acabam por afetar Frantisek. Conflitos entre irmãos, amantes e casais são presenciados por ele, em situações estranhas mas às vezes cômicas. Com seu olhar ingênuo, ele é o único a entender essas pessoas, que aparentemente se importam apenas com sua própria felicidade. Apesar de ver de perto as manobras, traições e revelações dolorosas que envolvem a família, ele não julga as atitudes e sentimentos de cada um deles. Porém, somente aquele que for capaz de compreendê-lo, poderá ser capaz de ajudá-lo a... retornar.
O filme é uma comédia reflexiva sobre os problemas humanos, as relações, as hipocrisias, as infelicidades, a perda de sentido na existência. Frantisek por sempre ter vivido afastado da sociedade se deslumbra com pouco, e por inspirar inocência e bondade gera esperança, mas provoca também irritação e piedade. Mas ao observar as situações que se desenrolam, pensamos seriamente quem é realmente o louco.
A fragilidade das relações humanas e os vínculos familiares são vistos sob um ponto de vista ameno e generoso. Sua família praticamente desconhece a sua pessoa, aliás nem nos damos conta de que ele faz parte dela, a história vai nos tragando pelo enredo que entrelaça amorosamente os personagens e ao fim todos são enredados pela confusão, sobrando, claro, para o idiota. A surrealidade faz parte de muitos momentos e os elementos cômicos só enfatizam sentimentos pequenos e mesquinhos que o ser humano se acostumou a sentir. 
O filme demonstra o desespero sob uma ótica mais leve, o personagem dotado de bondade e pureza vai experimentando a vida em sociedade, trata todos com compreensão e jamais julga-os, e é exatamente por esse seu comportamento que é chamado de idiota.

Raro é encontrar pessoas como Frantisek, que não se deixam corromper, geralmente não as encontramos, pois estão muito bem escondidas em seus hospícios.
Loucura é viver em meio a hipocrisias, círculos viciosos, aparências, ganâncias, a existência se torna pesada e esquece-se das coisas simples, de se satisfazer com o que somos, de ser gentis e ampliar o olhar perante a vida. 
"O Retorno do Idiota" exibe uma linguagem interessante, traz sentimentos densos mas alivia com a comicidade, assim refletindo sobre os males da existência.

"No amor abstrato para com a humanidade, não se ama a ninguém, e sim a si próprio."
                                                                                           - O Idiota, Dostoiévski