sexta-feira, 27 de julho de 2012

Alma

"Alma" é uma espécie de conto natalino sombrio, uma criança passa pela vitrine encantadora de uma loja de bonecas e se sentindo tentada entra e conhece um mundo fantasioso. O mundo infantil é tratado de forma muito peculiar neste curta, misturando elementos de ingenuidade com a sombria e misteriosa loja de bonecas. O curta animado é em 3D e o roteiro contém referências claras ao estilo de Tim Burton, e também lembra bastante o filme "Coraline".
A história é simples, um conto infantil macabro em que o final gera uma sensação de claustrofobia. Observar os olhinhos daquelas bonecas sinistras e imaginar que ali dentro há uma alma presa para toda a eternidade é no mínimo aterrorizante. O encantamento da garotinha pela boneca, a necessidade de ir até ela, e o momento crucial em que a toca e acontece o inesperado é genial. "Alma" é criativo e surpreendente.

Rodrigo Blaas é um animador espanhol, "Alma" é o seu primeiro curta-metragem. Apesar disso ele não deixa nada a desejar. Blaas é veterano da animação. Trabalhou por 10 anos na Pixar e seu nome está presente nos créditos de inúmeros filmes, por exemplo, "Procurando Nemo", "Os  Incríveis", "Carros" e "Wall-E". Não foi só o talento que o levou a conceber o curta, o bom relacionamento que manteve no meio o fez reunir em "Alma" profissionais reconhecidos e experientes. Mas é evidente seu talento e criatividade com apenas um curta de 6 minutos. Ele recebeu vários prêmios, entre eles a vitória no LA Shorts e em outros festivais internacionais, além de ganhar a admiração do mestre Guillermo del Toro.

A atmosfera do curta é impressionante! Assistam!

 

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Osama

Antes de qualquer coisa "Osama" (2003) nada tem a ver com o terrorista Bin Laden. Este é o primeiro filme rodado depois da guerra e conta a história de uma menina de 12 anos, sua mãe e um garoto do vilarejo que quase não sobrevivem a uma pacífica passeata organizada por mulheres oprimidas pelo regime Talibã, que termina brutalmente. Após testemunhar um tratamento tão desumano, a mãe se dá conta de seu próprio calvário, enquanto ela e sua filha tentam manter-se vivas. Com a morte do pai e do irmão da jovem, elas têm que encontrar um meio de sobrevivência mantendo isso em segredo do sistema rígido Talibã, que ordena que nenhuma mulher trabalhe ou mesmo saia de casa sem a companhia legítima de um homem.
Mãe e filha tomam conta de pacientes num hospital clandestino, administrado por estrangeiros. Depois de uma invasão do Talibã, o hospital é fechado e a duas ficam sem renda alguma. Desesperada, em busca de qualquer trabalho, a mãe é obrigada a cortar os cabelos da filha e vesti-la como um menino, para que ela possa ganhar algum dinheiro pelo menos para se alimentar. A mãe suplica a um comerciante, dono de uma mercearia que a ajude empregando a menina em sua loja, pois ele havia conhecido seu marido. Ele concorda e tenta protegê-la, agora disfarçada de garoto, a ensina a ser mais convincente. Numa tarde, a polícia religiosa do Talibã obriga todos os homens a irem até a mesquita para orar. A menina, que desconhece a forma como os homens praticam sua fé, comete diversos erros e levanta a suspeita de um dos policiais do Talibã, que está inspecionando o ritual. Ele se aproxima do comerciante depois das orações e o interroga. Ela é tomada de pavor, mas o comerciante consegue dissipar as desconfianças do oficial. No dia seguinte os garotos da vila são levados a uma madrassa, um tipo de escola religiosa, que também serve como centro de treinamento militar do Talibã. Passando a frequentar esta escola, a masculinidade da garota é constantemente posta em discussão.
Um jovem que pede esmolas na primeira cena do filme, sabendo do segredo intercede a seu favor e a protege, endossando a sua verdadeira identidade, declarando que seu nome é Osama. Depois de crescentes suspeitas entre os estudantes e os instrutores do Talibã, a menina é punida por não ser capaz de finalizar uma tarefa e provar a sua masculinidade. No final, suas características físicas a delatam, revelando sua verdadeira identidade. Como resultado de sua mentira imperdoável, ela é levada a julgamento perante a corte do Talibã e sentenciada a casar-se com um velho Mulá. Ao chegar na casa descobre que ele tem outras três esposas e é forçada a juntar-se a elas, em seu miserável mundo.

"Osama" dirigido por Siddiq Barmak, tem o objetivo de discutir o papel e a situação em que vivem as mulheres do Oriente Médio, sobretudo, as que vivenciaram o regime Talibã. A sociedade afegã adota como símbolo de diferenciação de poder entre os homens e mulheres a vestimenta; as mulheres cobrem o corpo e rosto com a burca, em respeito na tradição de que seu corpo é sagrado e, portanto, mostrá-lo em público seria profaná-lo. Aos homens afegãos ficam determinados trajes normais e tem como acessório o kipá quando usado em contexto religioso. Em outras palavras, para aquele povo a mulher é um ser inferior em relação ao homem, por esta razão, ela deve ser protegida. Na falta desta proteção se relega a mulher o isolamento, aprisionando-a num corpo social determinado, a companhia infinita do homem.

A menina não vive sua infância e é destinada a uma vida desgraçada por causa do regime Talibã, perdoada pelo juiz, casa-se com um velho e percebe que nunca terá sua dignidade. Observar seus olhos sempre com lágrimas é dilacerante, toda a pobreza que a condena. A imagem dela pulando corda: um sonho perdido, sua infância roubada por um sistema fanático, sem propósito. As mulheres são tratadas como animais, as viúvas condenadas, algumas apedrejadas diante de centenas de pessoas, outras mendigando alimentos para sobreviver. É um retrato cruel desta cultura. Esse longa é poderoso e nos faz sentir pequenos diante dos acontecimentos.
A interpretação da garota é de arrepiar, ela encarnou a personagem divinamente, a delicadeza em seu rosto duro e amedrontado, seu jeito de andar, etc. A perda da inocência é triste e revoltante. A única coisa que elas desejam é o direito de ser mulher, nada mais.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Amanhã (Morgen)

O primeiro longa do romeno Marian Crisan conta a história de Nelu, que mora na fronteira entre a Romênia e a Hungria, ponto de entrada para muitos imigrantes, segurança num supermercado e pescador amador, ele é uma pessoa simples e sem grandes exigências da vida. Tudo isso muda quando um dia lhe aparece um turco que tenta chegar a Alemanha, fugindo da polícia da fronteira. Sem saber o que fazer ou como o ajudar, Nelu dá-lhe de comer, roupas e promete-lhe que no dia a seguir - em alemão, morgen - o tentará levar à fronteira.
A amizade entre Nelu e Behran é silenciosa, pois a língua desconhecida é uma barreira, porém aos poucos isso se torna algo efêmero. Nelu entende a tristeza daquele homem só de olhá-lo. A princípio, Nelu coloca-o no lugar onde fica a comida da casa, uma espécie de porão, lá é frio e escuro, Nelu o ajuda de sua própria maneira, o desenvolvimento da amizade é fenomenal, Behran é um cão fiel, ajuda nas tarefas da casa, dá-lhe todo o dinheiro, e incansavelmente fala, Nelu apenas responde: Amanhã! Engraçado que ele não entende uma única palavra, mas a capacidade de sentir a dor alheia é algo que Nelu, um homem simples, com uma vida monótona, consegue fazer muito bem.
Ele é um ser humano passivo, todos de certa forma mandam nele, na sua casa, no trabalho, e pela autoridade local que insiste em perturbá-lo. A presença de Behran acaba fazendo com que Nelu se rebele e mostre que tem suas convicções e que pode fazer o que deseja. Torna-se um fugitivo, arrisca tudo e leva Behran ao outro lado da fronteira. Do mesmo modo Behran, um homem sempre oprimido, se esquivando, junto de Nelu encontra algo simples, porém eficaz. A alma daquele ser humano demonstrava gratidão, amizade e lealdade por um desconhecido que se arriscou para ajudá-lo.
O filme é calmo, aos poucos vamos compreendendo as atitudes dos personagens, a história e as paisagens se complementam. Sem um pingo de sentimentalismo, mostra o quão a amizade é algo sublime entre dois seres díspares que se entendem à sua maneira. Realmente esse tipo de amizade parece acontecer somente nos filmes, não vejo gratidão nas pessoas, ajudar alguém que não conhecemos e que não tenha vínculos é a maior prova do quanto o ser humano pode ser nobre, é a riqueza interior. As pessoas simples, assim como Nelu geralmente se submetem mais a esse tipo de experiência, e o mais incrível ainda é o outro retribuir com carinho e lealdade naturalmente.

"Morgen" não dá lição de moral sobre amizade, apenas a retrata, o longa está a fim de mostrar os problemas da fronteira desse país, e o faz de forma bem feita, por exemplo, os policiais e o como tratam as pessoas. Eles impedem os sonhos das pessoas e isso é brutal.
O filme tem um grande valor social e político. Se quiser desfrutar de um bom cinema, que traz valores esquecidos, simples, mas de grande importância, este é com certeza uma belíssima escolha!

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Um Conto Chinês (Un Cuento Chino)

"Um Conto Chinês" (2011) dirigido por Sebastián Borensztein mescla comédia e drama na medida exata, a história é bizarra e conta que em algum lugar da China, uma vaca caiu do céu provocando uma tragédia, matando a noiva de um chinês, que por sinal é muito simpático. A seguir conhecemos Roberto (Ricardo Darín), um sujeito solitário, mau-humorado, veterano da guerra das Malvinas e cheio de manias, uma delas é recortar notícias esquisitas do jornal e colá-las em um álbum de recordação. Mas sua vida muda quando por acaso decide ajudar Jun (Ignácio Huang), que foi jogado de um táxi, depois de ser assaltado, e é a partir dessa situação inusitada que a vida dos dois começam a mudar.
Roberto oferece moradia ao chinês perdido até que encontre seu tio em algum lugar da Argentina, o fato de um não saber a língua do outro só reforça a inteligência do roteiro, que nos conecta aos personagens de maneira natural. Um gesto altruísta dá início a uma dramática e divertida luta de ambos por seus sonhos, enquanto um quer encontrar um parente para começar vida nova, o outro só deseja recuperar a liberdade da velha vida e a tão amada solidão. Mas tem a Mari (Muriel Santa Ana), amiga de Roberto que com sua felicidade e predisposição para amar, de repente pode até ser vista de uma outra maneira. O choque de cultura é gigantesco, o aprendizado se faz difícil através da convivência forçada entre eles, pois Roberto não consegue conviver com outro ser, rabugento, tem suas regras e manias diárias.
É bem verdade que o longa obtém êxito na transferência da sensação de incomunicabilidade, especialmente pela opção de não legendar as falas em mandarim. O humor que surge são de situações que não necessariamente precisam ser engraçadas. É sutil e particular, isso só ressalta a qualidade dos atores. A expressão "um conto chinês" é utilizada pelos argentinos para se referir a uma grande mentira. Contudo a história mostrada no filme é absurdamente real, e é totalmente crível do início ao fim.
Jun pintou uma vaca na parede no final do filme, e Roberto concluiu que o incrível acidente que achava sem sentido, mas que para o chinês foi uma tragédia, não aconteceu por acaso. Então de certa forma, a vaca mudou a vida de Roberto, assim como Jun dizia: "Tudo tem um motivo para acontecer."

"Um Conto Chinês" é uma produção original, o cinema argentino consegue atingir o público com histórias divertidas, mas igualmente inteligentes. É pra aplaudir de pé o cinema do hermanos.
O que encanta neste filme é a comunicação precária entre esses dois personagens tão distintos, entre gestos e expressões faciais somos conduzidos juntos de Roberto a decifrar o que Jun quer expressar e também entender. 
E toda essa bizarrice de vacas caindo do céu foi baseada em fatos reais, o que deixa tudo muito mais curioso e interessante.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Eu Matei a Minha Mãe (J'ai Tué ma Mère)

"Eu Matei Minha Mãe" (2009) dirigido por Xavier Dolan (Amores Imaginários - 2010) conta a história de Hubert (Xavier Dolan), ele não ama a sua mãe, as roupas bregas e pequenos detalhes como a forma que ela come, são motivos para enxergá-la com desprezo. Os mecanismos de manipulação e a culpabilização empregados por ela também não lhe passam despercebidos, e Hubert se vê progressivamente tomado por uma relação de amor e ódio fora de seu controle. Confuso, ele vaga por uma adolescência ao mesmo tempo marginal e típica, repleta de descobertas artísticas, experiências ilícitas, amizades e sexo.
Xavier protagoniza de maneira histérica seu relacionamento com a mãe, a obra é semi-autobiográfica e retrata a dificuldade na comunicação entre mãe e filho. O roteiro não tem nada de especial, tudo gira em cima do mesmo assunto, mas mesmo assim não deixa de ser interessante, pois o que se vê ali, acontece e muito. Os adolescentes veem os pais, principalmente, a figura da mãe como se fosse de outro planeta, no caso de Hubert, as roupas bregas, o modo como a mãe come e age, são alguns dos motivos para ele implicar, mas a mãe também não é uma mulher com grandes qualidades, a maneira que lida com o filho fica evidente que está de saco cheio daquela situação, porém há amor, estranhamente o afeto existe.

O título "Eu Matei Minha Mãe" é uma forma simbólica de explicar que Hubert está naquela fase em que os laços necessitam ser cortados para que a relação dos dois seja mais saudável. Chega um ponto em que as discordâncias de pensamentos e rumos tomados se destoam tanto que o distanciamento psíquico ou físico é a melhor opção. No psíquico seria ampliar o olhar sobre aquele ser que o gerou, a transformando em uma pessoa normal, vista de fora, cortando o laço materno, o cordão umbilical. E isso se torna mais penoso quando a relação é exclusivamente mãe e filho, sem outra figura, seja masculina, ou de irmãos e irmãs. Chantale (Anne Dorval) está cansada, e com o tempo o amor pelo filho foi sendo guardado, pois ele crescia e também se fechava. Na sua imaturidade não contou a mãe sobre sua homossexualidade e se refugiava na casa de seu namorado, cujo ambiente era liberal, mas culpar a mãe que julgou que o filho poderia andar com as próprias pernas e já não sentia necessidade de contar seus pensamentos, ou Hubert que julgou que sua mãe não entenderia seu lado é uma situação difícil. Tudo se transforma em caos devido a falta de diálogo.

O filme retrata um período efervescente, ser adolescente, dono da verdade, rebelde, impetuoso, mas que no fundo ainda carece de cuidados e proteção.
Xavier Dolan é um jovem cineasta brilhante, tem personalidade e originalidade. "Eu Matei Minha Mãe" não é um grande filme, mas dentro da proposta apresentada se torna uma obra primorosa.

"Imagino que, às outras pessoas, odiar a mãe pareça um pecado. É uma hipocrisia. Estou certo de que também odiaram as suas mães. Talvez um segundo ou todo um ano."

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Habemus Papam

Ao fim do pontificado de um antigo Papa, um novo precisa ser escolhido. É nesse momento que o conclave se reunirá numa sala onde ficará trancado, até que a decisão seja tomada. O Papa em questão é interpretado pelo magnífico ator francês Michel Piccolli. Um homem que, eleito Papa, entra em crise e não toma coragem de assumir o cargo. O Papa sofre de uma crise existencial, e em contraponto temos a instituição católica pragmática com um grande problema nas mãos. A situação é inusitada e todos sabem que há um Papa eleito, mas não sabem seu nome, pois na hora que ele deveria saudar o povo na sacada do Vaticano, entra em pânico e recua. Como ele já aceitou o cargo, o pesado protocolo da Igreja Católica cai num impasse.
A imprensa de todo o mundo pressiona para saber o nome do eleito. O porta-voz chama um médico, depois, o psicanalista (interpretado pelo próprio diretor Nanni Moretti). A entrada deste estranho no ninho do Vaticano é o principal deflagrador de situações cômicas, já que o terapeuta é declaradamente ateu no meio de um imenso grupo de cardeais de vários países. Como ninguém conhece o Papa eleito, este decide fugir e refrescar a mente, nesta fuga o Papa frequenta lugares normalmente inacessíveis ao Sumo Pontífice, uma lanchonete simples, uma loja de departamentos, um hotel modesto, um teatro em que uma trupe interpreta "A Gaivota", de Anton Tchecov. O Papa demonstra interesse por ser ator e sabe falar as frases de cor.
No Vaticano, encena-se a vida que não existe, com outro homem no lugar do Papa, pago apenas para balançar cortinas. Os cardeais e demais religiosos sentem-se felizes, reguardados, enquanto têm naquela mera encenação barata uma certeza: o Papa está bem.
Tudo termina quando o Papa é encontrado no teatro. E ao fim, o inesperado, definitivamente o cargo era demais para aquele homem, não que sua fé não fosse suficiente, mas era pesado demais, em seu discurso na janela do Vaticano, para uma infinidade de pessoas, ele recusa e sinceramente nega o papado.
O longa é uma sátira em cima do catolicismo e seu grande ritual: a eleição de um Papa. Neste filme, nenhum dos personagens desejam o papado, eles sussurram o tempo todo: "Por favor Deus, eu não". Não deixa de ser interessante, mostrando um homem visto quase como divino, apenas como um alguém com suas crises e medos.

Sempre enxerguei os cardeais lá no Vaticano como uma máfia, em suas coisas escusas e mergulhados em seus segredos, sempre achei a igreja católica hipócrita e nos olhos dessas pessoas uma falsa bondade. Tudo encenação. Não é à toa que o Papa fujão queria ser ator, a sua grande frustração da juventude. 
A figura do psicanalista dá um tom leve e irônico ao filme, mas em nenhum momento ele desrespeita a igreja. A história sobre o Papa que nega seu posto é hilária. Moretti é um gênio, seu humor é inteligente e os atores estão maravilhosos. Uma obra super interessante que retrata um pouco deste ritual que mexe com a instituição católica e ainda mostra o medo de um ser humano ao enfrentar uma missão que ele acredita não ser para si.

terça-feira, 17 de julho de 2012

O Príncipe do Deserto (Black Gold)

"O Príncipe do Deserto" (2011) pode aparentar ser uma fábula fantasiosa devido ao título, mas não é bem assim, o título original "Black Gold" dá a deixa de uma história de ideologias e tradições. Não deixe esse filme passar despercebido.
Retratando a descoberta do petróleo em um tempo longínquo (o petróleo foi descoberto no Oriente Médio, área que mais contém o recurso disparadamente até hoje). Após terminar uma grande guerra, cuja Nassib (Antônio Banderas) acabou ganhando, ele aceita ficar com os filhos de Ammar (Mark Strong), até que a maioridade seja atingida a fim de selar um acordo de paz para que a ordem seja mantida. A única condição imposta foi que a terra chamada de "faixa amarela" entre os dois reinos não pertencentes a ninguém, continuasse daquela forma sem donos. O acordo então é selado. Anos se vão e o rei Nassib se vê em meio a uma epidemia de cólera e falta d'água, mas aí surge uma promessa de riqueza através do petróleo, só que este está na terra de ninguém, ou seja, justo na "faixa amarela".
Nassib aceitou que extraíssem petróleo, e daí começou a instabilidade com Ammar novamente. A briga entre eles é interessante, pois Nassib quer enriquecer seu povo, trazer alternativas mais modernas para a região, já Ammar se apega a suas tradições, dizendo que o dinheiro só traz desgraça e ambição ao ser humano. A religião islâmica é mostrada com respeito e de forma muito bonita, ao contrário do que vemos sempre, com seus fanatismos e fundamentalismos. Há um debate entre o novo e o velho, o que diz o Corão pode ser interpretado de diversas maneiras. Pode se enxergar a guerra, como também a paz, depende dos olhos e do coração de quem o lê.
Auda (Tahar Rahim) é o filho mais novo de Ammar deixado quando criança a Nassib como acordo. Inteligente, observador, sempre mergulhado em seus livros, se tornará um homem que liderará o futuro desta história. Suas mudanças em relação ao que acontece são bem naturais, revelando que há um líder dentro de si. Há também romance em meio a tudo isso, mas em nenhum momento torna o filme piegas ou melodramático. Antônio Banderas segura bem o seu personagem, ele é um revolucionário, tem ideias para o bem-estar de seu povo e com o lucro do petróleo consegue muitos benefícios, mas não se priva de comprar coisas para si. Não há vilões nesta história, apenas pontos de vista diferentes, não há o certo e o errado. Ammar interpretado pelo talentoso Mark Strong enfatiza o poder da tradição de seu povo, e cria bastante empatia, cheguei a concordar com vários aspectos citados por ele em algumas partes, sobre o capitalismo, o consumismo e toda a ambição criada pelo dinheiro.

"O Príncipe do Deserto" é um ótimo entretenimento e nos manda uma mensagem sobre lealdade, princípios, progresso, fé, e a tradição de um povo sempre visto como vilão.
"Se Alá não quisesse a prosperidade de nosso povo, porque então colocaria petróleo na nossa terra", esse é um dos questionamentos que Auda faz ao pai e ao povo que é contra as mudanças. Jean-Jacques Annaud nos traz um filme épico não convencional.
As mudanças depois da descoberta do "Ouro Negro", e os dogmas versus prosperidade, tudo isso contribui para ser um filme único, e também hipnotizante pela sua beleza paisagística, é incrível como o deserto pode ser fascinante e ao mesmo tempo tão cruel.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Adeus (Goodbye Solo)

O longa começa com um homem por volta dos 70 anos tentando fazer um acordo com um taxista senegalês nos EUA. O homem quer pagar adiantado mil dólares para, no dia 20 de outubro, ser levado a uma região montanhosa, onde há uma famosa rocha gigantesca e muito vento. O motivo nunca será revelado com palavras, mas sim deduzido pelo público e pelo motorista de táxi ao longo do filme. Surge uma amizade inusitada entre William (Red West) e Solo (Souleymane Sy Savane).
Solo quer ajudar William, mas este não quer ser ajudado, está por algum motivo desiludido da vida e parece que nada poderá fazê-lo mudar de ideia. Já Solo anseia viver, cultiva o sonho de ser comissário de bordo, e estuda muito para poder realizá-lo. Casado com uma mexicana espera pelo seu primeiro filho, mas sua mulher não compartilha dos sonhos dele, o que traz muitos imprevistos e chateações. Solo tem uma relação extraordinária com sua enteada, ele a trata como filha. Uma amizade sincera e protetora. Os dias vão passando e Solo tenta se aproximar de William para descobrir o que se passa, mas ele não quer se envolver, porém ele é um homem bom, mas por algum motivo ficou enclausurado dentro de si mesmo. Erros do passado, arrependimentos, não se sabe, mas há muita amargura na feição desse senhor.
Uma amizade mostrada por um viés diferente, Solo é negro, de origem senegalesa, William é um americano sulista, Solo está em um território onde sofre preconceitos, mas o filme não está a fim de mostrar isso, ele traz a visão das relações humanas e como o acaso contribui para aproximar certas pessoas. "Adeus" é um respiro na indústria cinematográfica que anda por um único caminho, este longa nos surpreende e emociona, nos faz respeitar o próximo e as decisões que são tomadas, por mais que gostemos de alguém, nem sempre podemos mudar o rumo que elas decidem seguir. Solo tenta entender os motivos, ter uma ideia do que William passa, mas as respostas são vagas, quase nulas.
A grande sacada do filme é o poder que a trama nos dá de imaginar o que acontece e, principalmente daquilo que os personagens não dizem, nos dá a capacidade de interpretar os pensamentos deles.

Sonhos e angústias, o embate entre o velho e o novo, esperança e desilusão, a fragilidade da vida, e especialmente a ideia de um amor impessoal, que é revelado por uma amizade precoce e conflitante entre essas duas personalidades de origens tão diferentes. Um filme expressivo, cujo final, inevitavelmente, nos deixa com um nó na garganta.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Ovo (Yumurta)

"Ovo" (2007) é o primeiro filme da trilogia turca do Semih Kaplanoglu, este longa mostra Yusuf em fase adulta, tendo que retornar à família por causa da morte de sua mãe. O poeta Yusuf volta para sua cidade natal, onde não aparecia havia anos e se depara com uma casa abandonada e quase totalmente destruída. As lembranças do passado, a culpa e o remorso também tomam conta deste homem. Mas ele encontra conforto e alívio com a presença de Ayla, uma jovem garota que o espera no local para dar assistência.
Em Istambul Yusuf trabalha em um sebo, a imagem ultrapassa a tela, uma mensagem desesperada e apenas ruídos. Essas características apresentam-se recorrentes. Os diálogos são poucos e porque não, inúteis, já que objetos e pequenos gestos são mais importantes e falam por si só. A narrativa é lenta, os cenários são resplandecentes e contemplativos. Não há música, e sim ruídos. A câmera anda, procura, observa e para por diversos minutos em algum objeto, cenário ou personagem, mostrando o rosto de Yusuf, onde há uma boa dose de solidão e sofrimento contidos. Quem o assiste vai aos poucos entendendo a proposta delicada e simples, um homem cuja vida está naquele lugar de onde saiu há tanto tempo, a vida lhe espera ali, como símbolo disso tudo está o ovo, ao quebrar a casca, desliga-se do laço materno e começa a viver sem a sombra, um descobrir-se, e por fim formar sua própria família.
A vida de Yusuf nos é mostrada através de belas imagens repletas de símbolos. A cena com o cachorro é uma das mais lindas e estranhas, há uma volta às tradições, como o pedido da mãe antes de partir, o sacrifício de um carneiro, do qual Yusuf não crê, mas rende-se, um pedido que não é explicado, mas nos faz sentir e de alguma forma entender tudo aquilo. É um filme enriquecedor que aguça nossa percepção, que nos faz ver além, o sentimento chega a ser palpável, são detalhes subjetivos. Yusuf é um poeta, ele ganhou um prêmio por ter escrito uma poesia chamada "O Poço", da qual é inserida em vários momentos de forma metafórica.
A linguagem é introspectiva e a fotografia é uma obra de arte que fascina, nos absorve para dentro da história, há ternura nas cenas, uma ingenuidade peculiar perpassa os instantes, e é de certa forma libertador.

Para quem optar assistir a trilogia de trás pra frente, começando por "Bal" (Mel), "Süt" (Leite) e Yumurta (Ovo) se faz mais esclarecedor do que pela sequência original.
Para os apaixonados pela sétima arte, este filme turco tende a agradar bastante, o final apesar de ser aberto, dá indícios de que o personagem encontra um caminho, uma evolução interior. A natureza caminha junto, e por diversas vezes se torna a protagonista e mostra-se em símbolos casando com o momento em que o protagonista está passando.
Assista, admire, contemple, este é um filme para encher os olhos e o coração, uma história para ser guardada, e com certeza compartilhada. Bela trilogia!

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Leite (Süt)

Yusuf é filho único e vive com sua mãe, Zehra, em uma pequena cidade do interior da Turquia. Juntos os dois trabalham vendendo leite, única fonte de renda da família desde que o pai de Yusuf desapareceu. Zehra mantém um relacionamento discreto com o chefe da estação de trem local, enquanto Yusuf, recém-formado da escola, se divide entre o trabalho no negócio familiar e a paixão pela poesia, conseguindo publicar seus poemas em revistas de literatura obscuras. Entretanto, a venda de leite não parece suficiente para garantir o futuro da família.
O longa é feito de maneira lenta, o pensamento toma conta da tela, Yusuf tem o sonho de ser poeta, mas na realidade em que vive, isso parece estar cada vez mais longe, oprimido pelas circunstâncias, suas decisões acabam como a de todos, trabalhando pesado.
Uma crítica ao trabalho social, que ameaça os nossos sonhos, que causa uma crise de identidade, sem nos dar opção de escolha. Yusuf tem um grande apego a sua mãe, mas isso é mostrado apenas através de olhares, quando ela começa a se envolver com o chefe da estação de trem, ele se sente perdido, a imagem da mãe parece se desfazer, e várias cenas demonstram um desolamento do personagem. O leite é o símbolo de tudo isso. O meio de sustento da família, representando o bem, e o laço materno. A impressão para quem assistir o filme solto, sem acompanhar a trilogia, é de espera constante, uma lentidão sem fim, porém se for assistido em sequência, nos é mostrado um modo de vida simples, repleto de questionamentos, laços, pensamentos, sentimentos e contemplação.
A beleza paisagística é algo sublime, o céu, as árvores, os animais, a natureza acompanha de forma metafórica todos os sentimentos do nosso protagonista, dimensionar o quanto é poético e ao mesmo tempo simples é impossível. A inocência de Yusuf aos poucos vai embora, ele tem que tomar decisões, desenvolver-se interiormente. Seus olhar por vezes é vago, em outras é expressivo e aparenta dor e desespero. É preciso se agarrar aos detalhes e o que eles querem nos dizer, logo no início somos pegos de surpresa por uma cena totalmente simbólica, uma cobra é retirada do interior de uma mulher através do leite, ou seja, o bem retirando o mal. A cobra é inserida no contexto de um presságio ruim, por exemplo, quando Yusuf se depara com uma cobra em sua casa, e a partir daí as coisas começam a desandar, Yusuf é obrigado a tomar decisões importantes em relação a sua vida. E o final nos arrebata ao mostrar a decisão que fez. A câmera focaliza seus olhos resignados, porém assustados, como se estivesse consciente de que a vida não é feita de poesia e que a esperança já não existia mais para ele.

"Leite" é um filme realista e porque não dizer pessimista, o seu final nos mostra a desesperança estampada no rosto do personagem.
A idade do personagem Yusuf é a idade que para os turcos representa grande pressão. Além da crise de identidade, de não saber se pertencem ao oriente ou ao ocidente, eles são cobrados a tomar uma decisão e dar rumo a suas vidas. Nesse momento a mãe tem papel fundamental numa sociedade masculina como a turca, pois é um momento de rompimento duro para os jovens. O diretor Semih Kaplanoglu nasceu em 1963, na Turquia, e formou-se em cinema e televisão na Universidade de Dokuz Eylül em 1984. Este é o segundo filme de sua trilogia sobre Yusuf, sendo o primeiro "Yumurta" (Ovo) e o terceiro "Bal" (Mel). É uma trilogia sobre as transformações econômicas e sociais de regiões rurais da Turquia.

terça-feira, 10 de julho de 2012

A História Secreta, de Donna Tartt

Em "A História Secreta" os eventos se desdobram grandiosos e inexoráveis, como em uma tragédia grega, Donna Tartt surpreende pelo talento com que combina a densidade psicológica e o vigor poético de um texto clássico, com uma trama complexa em um ritmo alucinado dos melhores romances policiais contemporâneos. Quem conta a história é Richard Papen, garotão da ensolarada Califórnia que consegue ser admitido na seleta Hampden, uma universidade em Vermont frequentada pela elite norte-americana. Richard imagina ter atingido o Olimpo ao entrar para o currículo mais privilegiado daquela universidade. Cinco alunos, sofisticados e originais, selecionados por um mestre erudito e carismático, dedicam-se ao estudo da Grécia antiga. A eles junta-se o narrador, para participar da busca da verdade e da beleza, entre festas orgiásticas e finais de semana numa antiga casa de campo, regados a muito álcool e discussões filosóficas. A loucura desmedida certa vez termina numa orgia cujo ponto culminante é um ato de violência inominável e o suposto aparecimento do próprio Deus Dionísio (Deus do Vinho), numa de suas diversas manifestações.
Quando descobre a terrível verdade, Richard envolve-se numa cadeia de segredos e cumplicidades, e num encadeamento de medos e inseguranças que leva o grupo a cometer um ato ainda mais terrível, capaz de abrir as portas para o mundo das sombras, o Hades das narrativas de Homero cuja, Henry e seus amigos tanto admiram.
"A História Secreta" cativa desde a primeira linha e nos leva as profundezas da mente de jovens ingênuos, arrogantes e mimados. Melancólico e irônico, este é um romance feito de terror e prazer, remorso e decepção. Com ele, Donna Tartt revelou-se uma grande escritora já em seu livro de estreia. Com suas setecentas páginas é um livro que se lê de maneira agradável, cheio de suspense e mistério. No entanto, não pense que é uma leitura inócua, o tema abordado é inquietante e deixa-nos a refletir sobre a facilidade com que se comete um crime e sobre as consequências que um ato criminoso acaba por ter na vida de um ser humano. São personagens que surgem do escuro, aparecem repentinamente de lado nenhum, fazem perguntas embaraçosas, desaparecem em momentos críticos e respondem sempre de uma forma enganadora. Seja em gestos, palavras, olhares desviados ou insinuações sibilinas; tudo serve para enfatizar o mal-estar generalizado, a frieza e a desconfiança.

Um estudo do remorso e seus efeitos na mente do homem "bom" que mata, "A História Secreta" é um livro comovente e profundo. Como Thriller é um dos melhores que li, e como romance é realmente espantoso. Donna Tartt vai muito além da conhecida combinação de sexo, drogas e rock'n roll: ela mergulha tão fundo quanto qualquer tragédia grega no desespero e na decepção humana.
A leitura de "A História Secreta" me fez recordar de um dos personagens mais incríveis do mundo literário: Raskólnikov, de "Crime e Castigo", de Fiódor Dostoiévski. De fato encontrei muito de Raskólnikov em Henry, mas também em Camilla, Charles, Francis e Richard. Li por duas vezes este livro e de certo modo me fascina aquele mundo tão absurdo e tão real, pois observa-se o que há de mais negro na alma humana. O que somos capazes de fazer com o outro para nos livrar de algo sórdido?

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Medianeras: Buenos Aires da Era do Amor Virtual (Medianeras)

"Buenos Aires cresce descontrolada e imperfeita. É uma cidade superpovoada em um país deserto. Uma cidade onde se erguem milhares e milhares de prédios sem nenhum critério. Ao lado de um em estilo francês, tem um sem estilo. Provavelmente estas irregularidades nos refletem perfeitamente, irregularidades estéticas e éticas. Esses prédios que se sucedem sem lógica, demonstram total falta de planejamento. Exatamente assim é a nossa vida, que construímos sem saber como queremos que fique... É certeza que as separações e os divórcios, a violência familiar, o excesso de canais à cabo, a falta de comunicação, a falta de desejo, a apatia, a depressão, os suicídios, as neuroses, os ataques de pânico, a obesidade, a tensão muscular, a insegurança, a hipocondria, o estresse, o sedentarismo, são culpa dos arquitetos e incorporadores. Estes males, exceto o suicídio, todos me acometem..."

É com esta narração que "Medianeras" se inicia, feita por um dos personagens centrais, nela já percebemos a forma com que a cidade e sua arquitetura serão usadas no desenvolvimento do filme como metáfora para as questões existenciais. A desorganização da cidade é apresentada não como sintoma, mas como provável causa do caos da vida moderna, a cidade de Buenos Aires se torna quase um personagem, dada sua importância na trama e nos rumos que ela toma. Explora-se a solidão e a melancolia da vida em uma metrópole, onde ao que parece o acaso é a única força determinante.
"Medianeras" mostra a vida de duas pessoas, um homem e uma mulher que vivem nos dias de hoje, quando a internet e a globalização, ao mesmo tempo em que rompem fronteiras e possibilitam um maior acesso a informação, podem aprisionar as pessoas com suas atrações imediatas, como jogos, vídeos e redes sociais. Cenas de Buenos Aires são intercaladas com reflexões sobre a evolução da cidade. A forma não planejada como a cidade cresce é comparada a vida de cada personagem, repleta de muitos acontecimentos fortuitos. Os apartamentos e prédios da cidade são mostrados em uma espécie de análise sociológica.
Martin (Javier Drolas) é um web designer que mora sozinho em uma quitinete intitulada como "caixa de sapatos", no centro de Buenos Aires. Ele passa a maior parte de seu tempo trabalhando ou navegando por sites e chats sobre os mais variados temas, sua fobia social, que está sendo amenizada pelo tratamento psiquiátrico, o impediu durante muito tempo de sair e de se relacionar com pessoas fora do mundo virtual. Ao que tudo indica, sua situação teria se agravado depois que sua noiva viajou para os Estados Unidos, a viagem dela que deveria durar um curto período acabou se tornando definitiva, o relacionamento terminou quando ela entrou em contato e avisou que não voltaria mais. Do envolvimento entre eles só sobrou um cachorro. A vida nas redes sociais se torna uma espécie de fuga para Martin, uma vez que suas manias e preocupações excessivas o tornaram ainda mais antissocial, e portanto incapaz de estabelecer laços duradouros.

Na mesma rua que Martin, em um outro prédio, mora Mariana (Pilar López de Ayala), que tem muito mais em comum com ele do que ambos poderiam imaginar, eles não se conhecem, apesar de frequentemente se esbarrarem na calçada em outros pontos da vizinhança. Mariana se formou em arquitetura, mas nunca exerceu a profissão, ela ganha a vida como decoradora de vitrines. Ela terminou um relacionamento que durou quatro anos depois de descobrir que não conseguia se encontrar nele, e que a pessoa com quem estava lhe era um completo estranho. As expectativas frustradas e a solidão a tornaram arredia e propiciaram o surgimento de fobias, como o medo de elevadores e de estabelecer contato com as pessoas. Os dois solitários, não por uma opção consciente, mas sim, vítimas de um fenômeno social que tem se tornado cada vez mais forte, principalmente nas grandes cidades, envolve a superficialidade e fragilidade dos relacionamentos e o distanciamento afetivo das pessoas. Ironicamente o surgimento e o agravamento deste fenômeno coincide com a chegada da era digital, na qual estamos vivendo.

Com um roteiro inteligente, ágil e moderno, cria-se monólogos bem reflexivos, por vezes dá-se um tom de ironia, e por fim, se torna num longa de altíssima qualidade. O título "Medianeras" se refere àquela parte traseira dos edifícios, onde não há janela e onde às vezes colocam-se anúncios comerciais. Seria quase o lado avesso dos prédios.
O filme é o desdobramento do curta homônimo realizado em 2005 pelo diretor Gustavo Taretto, estreando na direção de longas, com o mesmo ator principal.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Apocalypto

"Apocalypto" (2006) dirigido por Mel Gibson proporciona uma viagem a um local nunca visto antes, oferecendo sinais jamais vistos até hoje, de excepcional vivacidade e poder. O longa, que mostra o declínio do império Maia, foi rodado no México e é falado no idioma Maia, tem em seu elenco muitos atores índios e latinos e em sua maioria desconhecidos.
Em "Apocalypto" acompanhamos a vida idílica de uma pequena tribo, cujo cotidiano se resume a caçar e procriar. Também centra o foco naquele que será o protagonista: o jovem Pata de Jaguar (Rudy Youngblood), veloz e impetuoso caçador. O ataque de uma tribo rival, mais poderosa e violenta, dá partida ao segundo ato, e é também quando se inicia o festival de atrocidades e imagens violentas. Os vilões torturam, matam e estupram, sem poupar mulheres nem crianças. Antes de ser preso, Pata de Jaguar consegue esconder a mulher grávida (Dalia Hernandez) e o filho pequeno em uma gruta. Todo o trecho intermediário mostra a jornada dos prisioneiros restantes à vila da tribo vencedora da batalha, com cultos pagãos, pirâmides e feiras livres. E então, a longa parte final é composta por 45 minutos de correria e violência na selva, depois que Pata de Jaguar escapa seguindo os preceitos de uma profecia que ele desconhece, é perseguido por um bando de guerreiros sedentos de sangue.
Um dos grandes mistérios que cercam a derrocada da civilização Maia é o motivo de seu fim. Em "Apocalypto" Gibson trabalha com algumas causas possíveis, como fome, doença, seca e guerra. Um dos motivos de o longa ter agradado tanto foi o respeito pelo desconhecido, assim como pelos fatos históricos. É preciso boa vontade para perceber o aspecto político do filme, enfatizado pela epígrafe da abertura (do historiador Will Durant), o texto diz que uma civilização só é conquistada por outra depois de devidamente apodrecida por dentro. Essa citação só faz sentido ao final, e mesmo assim não se revela completamente, pois nem com esforço dá para traçar um paralelo consistente entre as ações que se vê na tela e a chegada dos conquistadores espanhóis à região. Mel Gibson foi elogiado pelo rico e fiel nível de detalhes com que retratou as tribos maias, na arquitetura, roupas, armas e apresentação física, incluindo pinturas, cicatrizes e piercings.

Uma época histórica pouco explorada pelo cinema, pois trata-se de um assunto perigoso. O que se sabe da cultura existente na América Central antes da chegada dos europeus é baseado em livros. O filme é fiel as teorias atuais de arqueólogos e historiadores que acreditam que, por volta do século XV de nosso calendário, os Maias sofriam com uma grande seca causada pelo desmatamento em torno de suas cidades, trazendo com isso fome e epidemias. A degradação social também se refletia em um governo corrupto, crenças religiosas fanáticas envolvendo uma grande quantidade de sacrifícios humanos e guerras civis. Assim, no filme temos a distinta ideia que aquele era um povo de grande avanço cultural, mas que atingia seu fim.
A maior ousadia de fato foi a de ser usada uma língua quase morta em toda a projeção, tornou-o um filme peculiar e surpreendente.

"Eu vi uma fossa no Homem, profunda como uma fome que nunca saciará. É ela que o torna triste e que o faz querer mais. Ele vai continuar a tomar mais e mais até o dia em que o mundo dirá: Já deixei de existir e nada mais tenho para dar."

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Abutres (Carancho)

"Abutres" (2010) de Pablo Trapero é um drama urbano, uma denúncia social, a inteligência do longa surpreende e demonstra mais uma vez que o cinema argentino esbanja vitalidade.
Acompanhamos Sosa (Ricardo Darín), um advogado, cuja licença fora caçada, que vive de explorar a miséria dos outros. Sosa faz plantão em hospitais à espreita de potenciais processos e indenizações de seguradoras. É em uma dessas tocaias que conhece a médica Lújan (Martina Gúsman). Sosa se apaixona e, então, sua rotina passa a ser um obstáculo monstruoso. Trapero concilia com vigor os gêneros a que se propõe trabalhar, produzindo um filme de extrema eficiência dramática, com profundo respaldo social (a legislação argentina sobre indenizações por acidentes foi modificada após o lançamento do longa), e invejável fôlego romântico. No limiar, a história de amor que Trapero queria contar é que dá sustentação à trama. E é pelo desfecho desta história que o espectador irá suspirar.
A violência do trânsito é vista de uma maneira diferenciada. Não apenas as colisões são violentas, mas todo o cenário que envolve as cenas de batidas e atropelamentos. Uma das cenas mais fortes é quando mostra a preparação da simulação de um atropelamento, quando Sosa quebra a perna de um amigo com uma marreta. Pessoas morrem, outras ficam incapacitadas. E ao redor delas, gira muito dinheiro. Seja através da estrutura de socorro, de ambulâncias até hospitais, seja por fundações e profissionais que correm atrás de indenizações para as vítimas e seus familiares. É uma história intricada, violenta, cheia de nuances, sordidez e algo de romance e esperança.
Sosa não só segue ambulâncias que vão socorrer vítimas de acidentes de trânsito, como simula atropelamentos para embolsar indenizações. O título do filme não poderia ser mais correto. A metáfora aos necrófagos que aguardam a carniça de animais mortos para deles se alimentarem.
Insatisfeitos com suas vidas e carreiras, Sosa e Lújan buscam se fortalecer juntos, para poder enfrentar o sistema de corrupção dos abutres (amparado pela própria polícia) e tentar uma nova vida. A última sequência é corajosa ao mostrar a busca pela sobrevivência. E ainda que o horizonte pareça cada vez mais complicado, o espectador segue com eles na busca por uma alternativa. Com um ritmo ágil, um roteiro bem amarrado e uma direção atenta aos melhores ângulos, "Abutres" revela mais um grande trabalho do ator Ricardo Darín.

A crítica ao sistema securitário é aguda, e "Abutres" mostra-se um filme sério, forte, tenso e intrigante. 
Advogados inescrupulosos se aproveitam de um sistema corrupto para prosperar literalmente com mortes e mutilações, ficando com a maior parcela e deixando as vítimas com muito pouco. Um grande filme para se respeitar, seus personagens se desenvolvem em uma situação crítica e desesperadora, e causa um certo espanto observar que pessoas lucram diante da desgraça alheia. De forma nua e crua retrata esse problema atroz. É um longa de extrema valia.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A Fonte das Mulheres (La Source des Femmes)

A pequena aldeia na comunidade muçulmana no Magreb, no norte da África, é assombrada pela seca, o desemprego e a corrupção das autoridades locais, que atrasam a instalação da água encanada e da eletricidade, isso sobrecarrega o trabalho pesado das mulheres. Sempre levando baldes nas costas, várias delas grávidas, nesse caminho tortuoso acabam perdendo seus filhos. Depois de um novo aborto de uma delas, a jovem Leila (Leila Bekhti), uma das raras mulheres que sabem ler, lidera uma greve de sexo, procurando forçar os homens locais a se mexerem para resolver os problemas do povoado. Como era de se esperar, as autoridades religiosas intervém, o que dá margem a uma animada discussão sobre aquilo que está ou não previsto no Alcorão. Como em qualquer religião, tudo depende das interpretações, que viajam ao sabor da conveniência de quem se habituou a ser sempre amo e senhor, e não quer ver o fim desse estado das coisas. Mesmo entre as mulheres, as opiniões se dividem. A sogra de Leila (Hiam Abbass), está a frente do bloco ultra-minoritário que hostiliza as neofeministas, especialmente por ser encabeçado por sua nora, que veio de outra região e nunca foi bem vista por ela.
A condução da narrativa é sempre feita de uma forma leve, com bastante humor. Os momentos em que a velha Fuzil intervém são quase sempre deliciosos, os diálogos da personagem são hilários. A atriz Biyouna contribui muito para este sentimento, representando a velha de forma magnífica. Outro destaque são os grupos de mulheres, a falar desanuviadamente enquanto fazem as suas várias tarefas diárias, sem os homens por perto. As conversas que surgem destas interações são maravilhosas e é raro o momento em que não começam todas a cantar. Ainda que tratando de temas sérios, o tom grave é quebrado pelo formato musical. Usando canções, injeta-se um bem-vindo humor em inúmeras situações. Se há um mérito no filme de Mihaileanu é lançar uma luz diferente sobre a cultura muçulmana, quebrando o molde monolítico que o fundamentalismo procura fazer crer que seja a sua única voz e expressão. Diante das sucessivas rebeliões recentes no mundo árabe (Egito, Tunísia, Síria), o filme ganha ainda mais interesse e atualidade.
Em uma cultura dominada pelo machismo, determinada pela religião rígida, baseada no Alcorão, as mulheres são vistas apenas como donas de casa, amantes de seus maridos, parideiras, e ainda por cima, fazem serviço pesado, como carregar água sob os ombros num caminho penoso mesmo estando grávidas, enquanto os homens fumam, bebem chá e falam mal de suas mulheres. Isso é uma imagem que não cabe ao pensamento ocidental, e atualmente não muito nas cabeças das mulheres árabes, elas querem seu lugar como mulher, a sua devida valorização e reavaliar seus costumes. Um exemplo do filme é sobre o véu. O uso do véu era para identificar as mulheres das escravas, estas não o usavam; em uma cena a velha Fuzil contesta seu filho, dizendo que não existem mais escravas, então porque usar o véu?

Abordando de forma interessante os costumes enraizados numa comunidade islâmica radical, como o machismo exacerbado, e o quanto as tradições podem ser reavaliadas e alteradas, o longa nos aproxima de uma das culturas mais distantes e diferentes da nossa, contada feito uma fábula contemporânea nos desperta curiosidade, e nos faz refletir por uma ótica diferente o islã. É sempre prazeroso observar novas culturas e tradições sob um novo aspecto.
"A Fonte das Mulheres" é do diretor Radu Mihaileanu e foi coproduzido pela França, Bélgica e Itália.