sexta-feira, 29 de julho de 2016

I Am a Ghost

"I Am a Ghost" (2012) é um filme independente dirigido pelo estreante H.P. Mendoza, ele explora uma perspectiva nova dentro do gênero terror, ao invés de mostrar a família sendo perturbada por um fantasma, retrata absolutamente tudo sob a ótica do fantasma, que preso a uma rotina repetitiva, não consegue encontrar o caminho que o levará para uma outra etapa. Original, instigante, tenso, inteligente, sem utilizar grandes artifícios ou elementos batidos consegue ser sinistro e ao mesmo tempo dramático.
Emily (Anna Ishida), um espírito problemático, assombra sua própria casa todos os dias, perguntando-se porque não pode seguir em frente. Com a ajuda de Sylvia, uma vidente contratada para livrar casas de espíritos, Emily entra em um relacionamento de paciente e terapeuta, descobrindo mistérios perturbadores sobre seu passado que podem ajudá-la a seguir para "o próximo lugar".
Acompanhamos Emily e sua incessante rotina, mas ela não sabe que está morta, as cenas se repetem inúmeras vezes e a partir do momento em que a conhecemos, vão tomando novas formas, ela está numa espécie de prisão feita de memórias, Sylvia entra em contato com Emily, ela lhe diz sobre sua condição e pelas conversas não é a primeira vez que entra em contato, pelo jeito ela fica atormentada pelo fato de estar morta. Só escutamos a voz de Sylvia, já que a história é sob o olhar da fantasma. A família contratou a vidente, pois barulhos são ouvidos constantemente na casa. Emily acorda, prepara o café da manhã, sai para fazer compras, olha para a fotografia da família, são situações que se repetem e nos deixam atônitos, desesperados, essa sua condição é sufocante e a direção soube perfeitamente incutir o desconforto.
Sylvia entra em contato sempre no quarto, ela lhe diz que precisa aceitar que está morta e enfim fazer a passagem, mas antes Emily necessita descobrir como morreu, ela fala que foi assassinada bem no tapete daquele quarto, porém existe uma consciência a ser despertada, e quando esta começa a surgir não é nada agradável, descobrimos a vida anterior da fantasma e o quanto ela foi perturbada. As conversas entre Sylvia e Emily são interessantes e gera um certo pavor, o mistério, o desconhecido gera o medo e traz questionamentos sobre a morte.
A ambientação retrô, antiquada juntamente com a montagem e edição de cenas aumentam a aura medonha, a trilha sonora também é um grande componente, e a lentidão com a qual a narrativa é conduzida amplifica o suspense, a explicação para as repetições é muito bem elaborada e com o passar das sessões com Sylvia, parece que o descanso para Emily fica cada vez mais longe.

"I Am a Ghost" é aterrador justamente por nos proporcionar esse olhar para o desconhecido, o que vem depois da morte, será que nossas frustrações e recordações irão conosco prendendo-nos a uma condição cíclica? Quando Emily se dá conta e toma consciência é ainda mais angustiante. 
É um filme que permite pensar pelo viés espiritual, mas também pelo psicanalítico, aflige, perturba, tem um roteiro excelente e interpretação magnífica de Anna Ishida, sua confusão perante seu estado, olhares...
H.P. Mendoza compôs um longa simples, mas de execução impecável, utilizou sua criatividade e produziu um filme de terror atípico.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

A Excêntrica Família de Antonia (Antonia)

"Assim como essa crônica nada se conclui."

"Antonia" (1995) dirigido pela holandesa Marleen Gorris (O Último Lance - 2000) é um filme de personagens grandiosas que exemplificam o empoderamento feminino, a obra disserta sobre o tempo e de forma poética e leve aborda diversos assuntos.
Definido como uma celebração da vida e da morte conta a história de uma encantadora geração de mulheres. Comandada por Antonia, a saga familiar atravessa várias gerações, falando de força, de beleza e de escolhas que desafiam o tempo. Nesse universo conhecemos curiosos personagens, como o filósofo pessimista, a netinha superdotada, a filha lésbica, a avó louca, o padre herege, a amiga que adora procriar, a vizinha que sofre abusos sexuais e os muitos amigos que são acolhidos por sua generosidade.
Antonia (Willeke van Ammelrooy) retorna ao vilarejo que nasceu e cresceu ao lado de sua filha Danielle (Els Dottermans) para visitar a sua mãe, que está para morrer. A partir de então, Antonia começa a reviver com os vizinhos e as recordações. Ela é uma mulher diferente e encara a vida com outros olhos, é forte e generosa, mas como ela própria diz foi acolhida no lugar "como uma colheita ruim, uma criança deformada, ou um manifesto da onipresença divina". Antonia é uma matriarca e a sua família vai se constituindo na base do amor e respeito, e ela ainda coloca debaixo de suas asas as mais diferentes pessoas, desde a menina com deficiência que foi estuprada pelo irmão, mas que acaba encontrando seu amor, que Antonia também protege, a mulher que uiva para a lua, a parideira e o filósofo pessimista.
O filme quebra paradigmas e mostra uma liberdade de ser, Antonia, por exemplo, nega o pedido de casamento de seu vizinho, que diz que seus filhos precisam de uma mãe, mas Antonia completa de que ela não precisa dos filhos dele. Mais tarde ela aceita ser amante apenas. Em dado momento Danielle decide querer ter um filho, só que não deseja passar por todas as convencionalidades, pulando as "etapas", vai com sua mãe à cidade e transa com o irmão de Letta, a personagem que adora procriar. São temas pertinentes e que empolgam o espectador, como a hipocrisia da igreja, os discursos moralistas e machistas, além do sentido da vida e morte.
Thérèse, a filha de Danielle é extremamente inteligente e precisa que a professora dê atenção extra a ela, já que a sala de aula a entedia. É aí que Danielle se apaixona e a professora integra também a comunidade de Antonia. Thérèse está sempre às voltas do filósofo Kromme Vinger, eles discutem vários assuntos e adoram citar Nietzsche e Schopenhauer, o tempo passa e Thérèse engravida, Kromme Vinger aconselha ela não ter a criança, pois o mundo está uma calamidade, porém ela dá à luz a Sarah.

"Antonia" representa toda a complexidade e diversidade que existe na sociedade humana, mas como a personagem principal demonstra, quando se há respeito pela liberdade do outro, tudo flui. Também mostra um viés pessimista, de que a vida é feita de sofrimentos e tragédias, mas por outro lado feita de pequenos momentos que engrandecem nossa existência. A filosofia de Schopenhauer permeia toda a trama e a frase "Quem não tem medo da vida também não tem medo da morte" é uma das tantas que se encaixa perfeitamente à história.
Sara, bisneta de Antonia certa vez lhe diz: "Não é triste que nada exista?" E Antonia responde: "Por isso há tanto." 

"Nada morre para sempre. Alguma coisa sempre fica de onde outra nasce. Assim a vida começa, sem saber de onde veio ou por que existe[...] a vida quer viver."

Um filme lindo, filosófico, feminista, que coloca em destaque a passagem do tempo e passeia por inúmeros temas importantes, é sensível, poético e proporciona grandes momentos de reflexão. 
O tempo é implacável, chega sem se importar, mas como Antonia diz à bisneta que a questiona se existe um céu: "esta é a única dança que dançamos."

"As estações se repetiam, o tempo trouxe a vida de novo... e com completa satisfação produziu nada além de si mesmo."

terça-feira, 26 de julho de 2016

Olmo e a Gaivota

"Olmo e a Gaivota" (2015) dirigido por Petra Costa (Elena - 2012) e codirigido pela dinamarquesa Lea Glob é um filme metalinguístico de extrema sensibilidade que desmistifica toda a aura mágica em torno da gravidez, acompanhamos a trajetória da protagonista desde a descoberta até o nascimento de seu bebê, os medos, as angústias, as fragilidades, a solidão e as limitações são exploradas de maneira realística, apesar de que os atores Olivia Corsini, que está grávida mesmo, e Serge Nicolai nos confunda em muitos momentos, pois eles são atores de teatro na verdade e aceitaram documentar esse período da vida deles, então não sabemos em qual parte entra a ficção.
O casal se prepara para interpretar a peça "A Gaivota", de Tchekhov que breve sairá em turnê, mas tudo muda quando Olivia descobre estar grávida e que não conseguirá trabalhar por conta de ser uma gravidez de risco, ela precisa repousar e fazer o mínimo de esforço possível. Acontece que Olivia é uma mulher que ama o que faz e durante a fase de recolhimento surge pensamentos dos mais variados sobre esse momento. Ela se vê entediada e sozinha, Serge continua com a sua rotina e não compartilha de fato com os sentimentos vividos por ela. Olivia diz que o presente é dos dois, mas quem carrega é ela, a falta de percepção do homem diante essa realidade, que aliás concretamente não muda nada, são sensações distintas e muitos diálogos exemplificam isso. Em uma cena Serge pergunta para Olivia o que fez no dia, ela explica, talvez as orelhas, o fígado, pois consumiu toda minha energia. É um retrato bem interessante da gravidez, sem floreios ou hipocrisias. Não é agradável ver seu corpo se modificar, se dar conta de que um ser cresce dentro de você e te consome. As dores, as angústias e as limitações impostas. "Sinto que há um Alien dentro de mim, que se nutre de mim e me impõe as regras."
O fato é que esse filme não pende para isso é o certo, ou isso é errado, engravidar ou não engravidar, mas simplesmente mostra o lado real que muitas mulheres não pensam, seja por influências, idealizações ou tradições. 

"Serge sempre diz: 'Não se preocupe porque um filho nos dará muita força'. Sinto culpa porque tenho a impressão de torná-lo a solução para minha incapacidade de solidão. Tenho medo da agressividade que me habita. Do tigre e do dragão dentro de mim. Podem ser os hormônios, mas neste momento, eu os vejo."

"Olmo e a Gaivota" é poesia minimalista que te deixa refletindo sobre a existência e a constante busca pela felicidade e liberdade. Olivia lida com as limitações impostas pela gravidez, o criar raízes (Olmo), que a faz se afastar do teatro, o seu grande amor, e que lhe daria a liberdade (Gaivota) para voar para onde bem quisesse. O filme é feito de camadas múltiplas, uma maneira belíssima de refletir a vida e o como vivemos, somos nós mesmos vivendo de acordo com nossos pensamentos e desejos, ou deixamo-nos levar pelo mesmo caminho de tantos por medo e insegurança devido papéis que a sociedade determina?
Petra Costa compõe uma obra instigante e corajosa, não é fácil colocar em pauta um assunto tradicionalmente fincado na mente das pessoas, a maternidade em dado momento surge como um peso na vida da mulher, chega uma idade em que perguntas do tipo: "e quando você vai engravidar?", "seu relógio biológico não despertou ainda?", são uma constante. Como se fosse uma obrigação e de que a mulher nasceu apenas para gerar. Desconstruir esse pensamento é necessário, porque muitas mulheres se arrependem da maternidade, mas por receio e culpa mentem para si mesmas. Faltava esse olhar sobre a gravidez que, claro, tem as suas belezas, a mulher se redescobre, mas o não falar das coisas ruins deixa a mulher só, tendo que lidar com as angústias sozinha, não há mal nenhum em se lamentar e se sentir esgotada e com inúmeros sentimentos negativos. 

"Olmo e a Gaivota" é uma experiência sensorial original e imprescindível que nos traz lucidez, portanto, para as mulheres que desejam ser mães, para aquelas que já são e para as que não desejam a maternidade, assistam. Aos homens também, pois é uma forma mais real de se entender o que acontece nesse processo biológico.
A sinceridade do longa é linda e mostra que não é fácil lidar com a gravidez, e que a atenção voltada para ela é superficial e fantasiosa. A maternidade simboliza realização para muitas mulheres, há a máxima de que se torna mais completa quando vive-se a experiência, porém é preciso repensar sobre, e principalmente, eliminar a mentalidade clichê e os mitos sobre o tal "instinto materno", de que a mulher nasceu para ser mãe.
O fato é que existe os instantes ruins na gravidez, é um momento delicado e de readaptação a si mesma e a nova vida, as mulheres não precisam se sentir culpadas por isso, falem e exponham esse lado, é um passo para a reflexão e a lucidez.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

A Terra e a Sombra (La Tierra y la Sombra)

"A Terra e a Sombra" (2015) longa de estreia do diretor César Augusto Acevedo é sensível ao abordar um tema bastante pertinente, principalmente aos países subdesenvolvidos latino-americanos, o trabalho exploratório na zona rural.
A trama começa com o retorno de Alfonso (Haimer Leal) ao pequeno rancho da família, localizado perto de um imenso canavial onde trabalha sua ex-mulher (Hilda Ruiz) e sua nora (Marleyda Soto), e também seu filho Gerardo (Edison Raigosa), que agora sofre de uma grave doença no pulmão devido a exposição à queima da cana-de-açúcar, depois de 17 anos ausente, Alfonso volta para cuidar de seu filho e vê que nada ali é mais como era antes, a única coisa que continua intacta é a antiga casa. Ele é um estranho, aos poucos vai se entrosando com o neto, a nora e o filho. A sua ex-mulher sente raiva por ele ter ido embora, mas não deixou de o amar. A situação dessa família é crítica, Esperanza e Alicia trabalham pesado na colheita e o salário está atrasado, além de terem que lidar com o ar pesado que cobre constantemente o ambiente por conta da queima de cana-de-açúcar.
O filme é duro, dolorido, comovente, e especialmente crítico ao capitalismo desumano que se aproveita da pobreza e humildade das pessoas para explorá-las, não há respeito e não dão condições dignas e básicas, e a partir do momento que não servem e não produzem mais lucro os descartam. Os rostos sofridos, os silêncios, essa naturalidade que transborda faz do filme verdadeiro e íntimo.
A relação entre os personagens vai se estreitando novamente, os laços são renovados, o companheirismo e a preocupação toma conta de Alfonso, ele deseja que eles saiam de lá, porém Alicia tem amor por aquela terra, da mesma forma que negou sair a 17 anos atrás quando a casa começou a ser cercada pela monocultura da cana, condenando de certa forma o filho. Quando Alfonso chega fica com a missão de cuidar de Gerardo, que está debilitado e precisa ficar dentro do quarto com as janelas fechadas, as cenas em que ele varre o chão da frente da casa cheio de cinzas e limpa as folhas das plantas é de enorme sensibilidade. Quando ensina o neto o canto dos pássaros também, são cenas estonteantemente lindas e de grande carga emocional. Mas o que acontece a essa família, sobretudo às mulheres é de doer o peito, elas trabalham e ultrapassam os seus limites para tentar ganhar um pouco a mais, a exaustão física e psicológica é pesada e o filme tem o poder de nos fazer mergulhar na vida destas pessoas.
A fotografia é um fator primordial para esta imersão, o poder das imagens é gigante e o jogo de luz e sombra é perfeito para criar a atmosfera de sufocamento, tanto pela fumaça constante, quanto pelo desespero e sentimentos reprimidos.

É um filme contemplativo, o silêncio nos diz muito e é preciso sentir cada cena para que possa ser absorvido por completo. É uma sensação de desesperança ao ver os personagens sem um mínimo de dignidade, eles se perdem em meio a poeira. É uma produção impactante e retrata sutilmente essa questão sociopolítica vivida por parte da população colombiana, e que não se difere muito da nossa.
"A Terra e a Sombra" é uma história de sofrimento, de confronto com o passado, mas também com uma possível esperança de alçar novos voos, o neto de Alfonso dá esse vislumbre, já Alicia não consegue se desvincular de sua terra.

O elenco faz um trabalho lindo e autêntico, com exceção de Marleyda Soto, todos são estreantes, a imagem se sobrepõe e o ambiente é o principal personagem, a fotografia é um primor, sentimos fortemente o efeito e adentramos numa história simples, humilde e devastadora, impossível ficar imune a esta beleza do cinema latino. Imensa gratidão ao diretor por conceber uma obra tão singular e sensível.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Demon

"Demon" (2015) dirigido pelo polonês Marcin Wrona (O Batismo - 2010), que infelizmente suicidou-se em setembro do ano passado, é um filme de terror psicológico que mescla comédia e crítica social, um exemplar rico em sua narrativa e que impressiona pela atuação do protagonista vivido por Itay Tiran. 
Piotr veio da Inglaterra para se casar com a bela Zaneta (Agnieszka Zulewska) e morar na casa do avô da moça numa pequena cidade da Polônia. Os familiares não o conhecem direito, porém ele se mostra um cara sério. Mas ao escavar o quintal da casa, descobre sem querer, uma cova com um esqueleto, daí ele começa a sofrer algumas alucinações e seu comportamento vai se modificando, culminando em crises estranhíssimas em plena festa de casamento.
O filme abre um leque de questões e joga com metáforas, ele penetra em velhas feridas do país, brinca com costumes e tradições. A lenda do dybbuk - um espírito humano que vagueia incansavelmente até encontrar refúgio em um vivo para poder expiar seus pecados, é explorado e o velho professor afirma que Piotr está tomado por um dybbuk. Tudo acontece durante a festa, ele enxerga o fantasma de uma mulher e entra em transe, começa a suar, ter loucas atitudes e some. Enquanto isso, o pai da noiva entope os convidados de vodca e música alta, os deslocando de ambiente em ambiente devido as circunstâncias, realmente uma catástrofe bem engraçada, mas sem deixar o terror psicológico de lado. Cria-se uma tensão gigantesca em torno disso e a comédia só acentua a aura desesperadora. A sátira cultural é intensa e o terror deste filme não é nada comparado ao convencional, ele serve de reflexão e para lembrar que os fantasmas do passado estão por aí, pois o horror vivido não pode ser esquecido. Em dado momento o pai de Zaneta diz que o país foi construído em cima de cadáveres, dado o passado da Polônia que todos sabemos. 
"Demon" permite algumas interpretações, sendo tanto religiosa, como sobrenatural ou social, vários diálogos passeiam por esses temas e cabe ao espectador decifrá-los e entendê-los. Realmente em algumas partes o diretor coloca o dedo na ferida, o lugar, a comunidade que antigamente era um espaço em que viviam judeus e católicos. 
A interpretação de Itay Tiran é sensacional, ele segura perfeitamente o clima claustrofóbico, e suas performances são o ponto alto do longa. De bom moço a possuído, os familiares não sabem o que fazer e para mascarar a situação bebem e dançam feito loucos, algumas figuras se sobressaem nesse ambiente, como o médico que bebe escondido, o ateu que propõe o exorcismo a um padre, que não está dando a mínima e só quer ir embora. 

A trilha sonora composta pelo mestre Krzysztof Penderecki só faz ressaltar o crescente suspense com violinos estridentes. Algumas respostas não vêm sobre o mistério envolvendo a família de Zaneta e o espírito da mulher, é deveras emblemático e repleto de significados.
A mistura de gêneros é hábil, passa pelo drama, comédia satírica e terror sem cair em nenhum momento, a atmosfera caótica assemelha-se a um pesadelo interminável. São situações malucas, mas que mexem muito com nosso psicológico. O terror tem muitas faces e as pessoas o encaram de diversas formas, mas não há nada mais arrepiante e perturbador do que um clima caótico retratado com uma ironia pungente usando temas corrosivos.

"Demon" tem características interessantes e atuações magníficas, destacando além do protagonista possuído, o pai de Zaneta, que fica tentando camuflar a situação embebedando os convidados, que entram num frenesi absurdo e se transformam em mortos-vivos ao final.
 É um filme para sair do lugar comum e se deixar levar por um terror diferenciado que prima por uma aura satírica, mas sem deixar de ser crítico e com certeza aterrorizante dentro de sua proposta.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Marguerite

"Marguerite" (2015) dirigido por Xavier Giannoli (Superstar - 2012) é um longa curioso inspirado vagamente na vida de Florence Foster Jenkins, considerada a "diva do grito", ou apenas a pior soprano do mundo.
Interpretada pela talentosa Catherine Frot somos introduzidos à Paris do início da década de ouro dos anos 20, Marguerite é uma aristocrata apaixonada por óperas, inclusive mantém um círculo de conhecidos da alta sociedade que frequentam a sua mansão a fim de participar das festas beneficentes que dá e também para ouvi-la cantar, já que é o único jeito de encontrá-la, pois vive em reclusão. Ninguém sabe muito sobre esta mulher, exceto o fato de ser rica e de ter dedicado toda a vida à sua grande paixão: a música. Marguerite canta. Canta com toda a sua alma, mas terrivelmente desafinada. Marguerite tem vivido esta paixão dentro da sua concha e o público hipócrita, sempre presente para uma boa gargalhada, age como se ela fosse a diva que pensa ser. Ela coleciona objetos, cenários, figurinos e partituras das mais famosas óperas, e constantemente é fotografada pelo fiel mordomo como se fosse uma grande estrela. Marguerite devaneia e acredita firmemente que é uma intérprete, quando um jovem jornalista provocador decide escrever um artigo entusiástico sobre a sua última performance, Marguerite começa a acreditar ainda mais no seu talento. Isso dar-lhe-á a coragem de que necessita para seguir o seu sonho.
A milionária Marguerite é sonhadora, inocente e carismática, ninguém tem a audácia de dizer que é desafinada, seu marido sempre chega depois de suas apresentações com a desculpa de que o carro sempre quebra no caminho, ele repudia as manias dela. Mas no desenrolar isso muda drasticamente, diante dos acontecimentos ele deseja protegê-la. Marguerite vai em busca de um professor, Atos Pezzini (Michel Fau), que fica incumbido de prepará-la para uma grandiosíssima apresentação no Ópera Nacional de Paris. Ele é um personagem que entende tudo numa pequena fração de tempo e os momentos deles dois juntos garantem ótimas risadas, mas nunca rimos dela, nos afeiçoamos a personagem que é enganada por todos, seja por proteção, como o caso do mordomo Madelbos, ou por maldade, hipocrisia e oportunismo.
A história é agradável, envolvente, a fotografia e design de produção é impecável e a trilha sonora sublime, regada a Mozart, Bach, Vivaldi, Honegger, etc. A primeira vez que vemos Marguerite soltar a voz com a ária "Queen of the Night" é sensacional, a sua postura, expressão, a voz completamente desafinada é fabuloso. Os convidados riem disfarçadamente, outros se escondem, os funcionários colocam tampões nos ouvidos até que termine. Marguerite acredita que os risos é pelo fato de estar alegrando-os e a única coisa que importa é agradar e ser enxergada pelo seu marido.

O filme reflete algo aparentemente simples, mas que na prática se complica, contar a verdade, dizer que alguém não é bom no que faz, naquilo que mais preza em sua vida. Marguerite é muito simpática, uma pessoa adorável, e sendo podre de rica é facilmente enganada, todos querem se aproveitar disso, o jornalista interpretado por Sylvain Dieuaide e seu amigo, por exemplo, ao falar bem dela no jornal ganha a sua amabilidade, e por conseguinte, prestígio na sociedade para qualquer coisa que vierem a fazer, porém com a convivência o carinho se sobressai.
Algo a se acrescentar é o som do pavão que vem para confundir em determinados momentos, é uma das interessantes rimas sonoras que o filme tem.

Pode parecer uma situação absurda, mas é muito comum se calar, fingir que está bom, deixar o amigo, seja quem for, viver de sua ilusão ao invés de ser sincero e falar que o que ele anda fazendo, o sonho que está perseguindo está fadado ao fracasso. Há interesses, orgulho, medo, proteção, uma gama de sentimentos envolvidos. O filme martela o tempo todo nessa questão. A verdade precisa sempre ser dita? 
"Marguerite" é uma comédia dramática delicada e apaixonante coroada por interpretações excepcionais. 

terça-feira, 12 de julho de 2016

Hipócrates (Hippocrate)

"Hipócrates" (2014) é a estreia do diretor e também médico Thomas Lilti, que conta de forma interessante o caminho árduo, mas muito gratificante de se tornar médico.
Benjamin planeja ser um grande médico. Mas, para seu primeiro treinamento interno nada sai como planejado. A prática é mais grosseira do que a teoria. A responsabilidade é enorme, seu pai, um dos diretores do hospital, é claramente ausente e o outro interno, o argelino Abdel, é um médico mais experiente do que ele. Benjamin, de repente, enfrenta os limites e medos, tanto os seus quanto os dos pacientes, das famílias, dos médicos e funcionários. Sua iniciação começa.
Hipócrates, considerado o pai da medicina, foi um pesquisador grego atrelado ao ramo da saúde, e assim como essa figura, Benjamim (Vincent Lacoste) é membro de uma família de médicos que passam seus conhecimentos de geração em geração. Só que Benjamim é um garoto perdido e que carrega um peso enorme por ser filho de um dos grandes médicos e administradores do hospital, Dr. Barois (Jacques Gamblin). Após terminar o curso ele logo é colocado de frente a grandes problemas, o hospital carece de equipamentos, leitos e sua ética é confrontada a todo instante. Não demora para que cometa uma negligência acarretando na morte de um paciente, mas, claro, seu pai o acoberta, daí por diante a medicina se descortina não mais de forma romântica. Ele não está apto para lidar com os pacientes e nem com os familiares destes.
Benjamim é desinteressante, não cativa o espectador, ele passa uma imagem de jovem mimado, sem propósito, sua personalidade não é delineada, mas é compreensível no contexto em que foi jogado. Seu pai não o enxerga, só quer que ele seja o médico que espera. A profissão ser passada de geração em geração sem ao menos saber se existe aptidão é comum em muitas famílias, isso é algo superficialmente retratado na história. Conforme o desenrolar Benjamim sente na pele as dificuldades, pensa em desistir, mas percebe que precisa superar e ir adiante.
Apesar do protagonista ser Benjamim, quem se sobressai é o residente Abdel Rezzak (Reda Kateb), um médico argelino experiente que se submete ao cargo para fazer carreira, ele é um personagem que abre espaço para outras questões serem abordadas, como o preconceito aos argelinos, o cuidado que precisa ter para ser aceito no país, e, principalmente, o acompanhamento do paciente visto com humanidade e não como um número. Em dado momento Abdel se dá mal ao realizar uma eutanásia, mesmo sendo um pedido da paciente e com consentimento da família, o filme também trata de maneira vaga problemas de administração e greves. Juntos Abdel e Benjamim são donos das melhores cenas, por exemplo, quando Benjamim pensa em desistir e diz que a medicina não é um trabalho para si, e Abdel completa dizendo que medicina não é trabalho, mas uma maldição.

O longa toca em pontos importantes e delicados, como o esquecimento do atendimento respeitoso e humano devido a sobrecarga de trabalho, a saúde sendo tratada como negócio e vidas sendo apenas contadas, além das burocracias e disputas de egos.
"Hipócrates" é um exemplar curioso sobre os bastidores de um hospital, pois traz à tona muitos questionamentos acerca da medicina pública, um assunto sempre urgente e que é pouco, ou quase nada retratado, pelo menos com todos os reais problemas que permeiam a profissão.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Floride

"Floride" (2015) dirigido por Philippe Le Guay (Pedalando com Molière - 2011) é um filme com tema difícil e doloroso, mas tudo é tratado de forma leve e graciosa. Retrata perfeitamente a realidade da pessoa que sofre com a perda de memória. O francês Claude Lherminier (Jean Rochefort) completou 80 anos e com o avançar da idade também vem os esquecimentos. Sua filha mais velha, Carole (Sandrine Kiberlain), enfrenta dificuldades para lidar com ele e tudo piora quando o pai toma a decisão de viajar à Flórida.
Claude é um industrial aposentado que mora em uma bela casa, porém a sua saúde mental está cada vez mais fraca, ele é um homem esperto, ágil, de temperamento chato e ao mesmo tempo engraçado, a sua filha está sobrecarregada com a empresa e pelo fato de que o pai não se satisfaz com nenhuma cuidadora, sua vida é toda dedicada ao trabalho e ao conforto do pai. Em dado momento ele acaba se afeiçoando a Ivona (Anamaria Marinca), que ao contrário das outras cuidadoras sabe como funciona a mente de Claude. Ele é instável e frágil em muitos momentos, mas sagaz em outros. 
Claude tem o pensamento fixo em sua filha Alice, que mora na Flórida, e que em breve irá visitá-lo, essa sua obsessão vai aumentando à medida que sua mente se desfaz. Carole prefere não contar a verdade sobre Alice ao pai, e por isso carrega uma tristeza e um peso enorme em sua vida, e ainda por vezes escuta insultos daquele de quem cuida com tanto carinho.
Não é agradável pensar na velhice, na fragilidade do corpo, na instabilidade da mente, as memórias passadas que se tornam o presente, o tempo se despedaçando. Claude tem flashes do passado, confunde, não entende. Aos poucos ele vai perdendo o que temos de mais precioso, as lembranças. É triste acompanhar o como ele enxerga tudo ao redor, a direção é magnífica, pois nos mostra exatamente essa confusão vivida na mente de Claude. 
O filme propõe a pensar no como o tempo devora tudo, e que muitas coisas que fizeram sentido a nós de nada vale no presente, ou que ter pessoas que nos amem verdadeiramente é o maior tesouro que podemos ter. O tempo é uma preciosidade. A atuação do veterano ator francês Jean Rochefort (86 anos) é sublime, maravilhoso em cada cena, diálogo, expressão, nos dá a perfeita noção do que é estar numa condição de dependência, de fragilidade, e ao mesmo tempo ter vontade de vida. A química entre Jean e Sandrine é linda e emocionante, Carole, a filha em nenhum momento pensa em deixá-lo numa casa especializada, ela luta o quanto pode até que não haja mais nada que possa ser feito.

"Floride" é um filme agridoce, sensível e muito familiar, todo mundo conhece ou convive com alguém que está nesta fase da vida, a velhice não é fácil, é repleta de agruras, mas também de descobertas que podem beneficiar a quem está por perto. Aproveitar o máximo de tempo que temos aqui, independente de qualquer coisa, essa é a grande aprendizagem. Somos tão frágeis e a vida é tão linda que não podemos perder tempo, como Claude diz: nem se desentendendo com as pessoas ou com o vinho.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Fique Comigo (Asphalte)

"Asphalte" (2015) dirigido por Samuel Benchetrit (Eu Sempre Quis Ser um Gângster - 2008) é um filme gracioso que coloca em questão a solidão e a necessidade de afeto, cada um de nós tem a sua própria solidão e um modo particular de lidar com ela, mas a verdade é que em determinados momentos ansiamos por contato, uma maneira de preencher nossas angústias do cotidiano.
Em um prédio da periferia de Paris vive pessoas comuns com suas duras rotinas e vidas tediosas, no início acompanhamos uma reunião em que os moradores decidem ajudar para o conserto do elevador, mas Sterkowitz (Gustave de Kervern) se nega a pagar já que mora no primeiro andar e não utiliza o serviço, ele é o único a não se solidarizar, os outros aceitam que ele não pague, contanto que não utilize o elevador em hipótese nenhuma. Mas a vida prega peças, ao invés de ajudar no conserto do elevador, Sterkowitz acaba comprando uma bicicleta ergométrica, uma parecida que viu no apartamento em que foi na reunião, e por excesso de exercícios termina numa cadeira de rodas, sozinho e impotente arquiteta meios de conseguir usar o elevador, sai apenas de madrugada para comprar salgadinhos na máquina do hospital perto do prédio, único local aberto que contém algum tipo de alimento. Lá, ele conhece uma enfermeira que acredita nas mentiras dele, por exemplo, ser fotógrafo da "International Geographic", seria engraçado se não fosse trágico. No começo dá raiva desse ser humano tão mesquinho, mas no desenrolar sentimos empatia.
Acompanhamos várias vidas, em nenhum momento elas se cruzam, o que dá a impressão de estarmos assistindo curtas diferentes, mas com a mesma proposta: a solidão. A sensação de estar só em meio a tantas pessoas, a necessidade de fazer parte, e alguns sentimentos que estão se extinguindo, como a solidariedade e a generosidade. Apesar de estarmos conectados, o convívio parece cada vez mais distante. O drama vivido pelos moradores do prédio surgem com pitadas leves de humor, tudo soa melancolicamente interessante, nos espelhamos em muitas situações, sentimos uma centelha queimar em nosso interior ao visualizar ações de amor, como o caso da personagem de Madame Hamida (Tassadit Mandi), que ao receber o astronauta americano perdido, vivido por Michael Pitt, o trata de forma amável e maternal. "Não entendo uma palavra do que ele fala, mas tem uns olhos tão gentis"Sem entenderem uma palavra do que o outro fala surge a capacidade de compreenderem-se somente com o olhar. Uma situação surreal, mas que se transforma na mais humana das histórias.

Ainda vemos o drama da atriz decadente Jeanne Meyer (Isabelle Huppert), que se apega a um adolescente, Charly (Jules Benchetrit), completamente solitário e desapegado que não titubeia ao falar verdades para ela, demonstra um contraste de gerações, ele acaba ensinando Jeanne a redescobrir-se como atriz. 
O longa é um retrato tocante da frieza das relações e ao mesmo tempo da importância em se ter alguém com quem compartilhar a vida. É simples, mas consegue passar tanto sentimento, uma sensibilidade ao mostrar o como as pessoas lidam com suas solidões.

"Asphalte" é minimalista e nos força a enxergar as pessoas. No dia a dia esbarramos, convivemos, mas tudo de maneira superficial, nada é de verdade e duradouro, o afastamento é devido a frieza, o medo, o egoísmo, o preconceito, a arrogância, a falta de generosidade, etc. No final das contas estamos sozinhos e essa solidão é uma sensação de abandono, uma angústia desesperada que deixa um gosto amargo.
O filme retrata pessoas totalmente diferentes entre si que se relacionam e que se encontram em suas solidões. É melancólico, mas a sensibilidade exibida ilumina e aquece.