quinta-feira, 30 de agosto de 2018

O Autor (El Autor)

 "O Autor" (2017) dirigido por Manuel Martín Cuenca (Canibal - 2013) é uma adaptação de uma história do escritor Javier Cercas, que retrata a saga de um homem comum, mas ambicioso que busca inspiração para escrever um livro de alta literatura, só que por mais que tente nada o ajuda a criar, o fracasso insiste em acompanhá-lo. Da onde surgem as inspirações? Será que são epifanias em momentos de ócio ou os estudos e ler continuamente ajuda na elaboração? Como saber se o que está escrevendo é original e não fruto de algo que tenha lido ou ouvido? Por isso, a realidade é muitas vezes usada para inspirar escritores, os passantes e suas angústias secretas, uma gama de possibilidades que atraem qualquer mente criativa, e é por aí que o protagonista começa a desenvolver seu livro, só que ao invés de apenas observar faz dos seus personagens peças num tabuleiro, manipulando-as como bem quer sem se importar, ele espia, se intromete e obsessivamente as leva para o destino que sua história pede.
Álvaro (Javier Gutiérrez) sonha em ser escritor, de alta literatura, não um picareta como o escritor de bestsellers que sua esposa Amanda (María León) gosta. Quando ele encontra a mulher o traindo, ele decide largá-la e sair do emprego para tentar alcançar seu sonho. Ele começa a provocar conflitos reais para então poder escrever sobre eles, mas ele é a principal vítima dos seus atos.
O filme mistura uma sutil sátira ao drama do protagonista que anseia obstinadamente escrever seu livro, mas não qualquer um, como os de sua esposa (María León), uma escritora de bestsellers adorada, ele claramente tem inveja de seu sucesso e sua escalada no meio, mas fecha-se nessa bolha de alta literatura, a narrativa brinca com a questão do processo de criação e se o talento é inerente ou se pode ser adquirido, Álvaro faz um curso para aprimorar técnicas de escrita e se apequena diante a sua jovial e bela mulher que está nos holofotes, até que ele vê ela o traindo e sem manifestar nenhuma emoção vai embora para outro lugar, se acomoda num apartamento onde coloca sua mesa, computador e cadeira num absoluto branco, tal qual uma página, e o emprego é praticamente esquecido, decidido tem certeza que escreverá. Ele é um sujeito comum, sem muitos atrativos e quando lê em voz alta seu conto para o professor, vivido pelo excelente Antonio de la Torre, este o coloca no chão criticando seu modo americanizado e repleto de soluções fáceis, ele diz coisas terríveis a Álvaro, que se não fosse pela sua obsessão cega certamente teria esquecido a ideia de escrever um livro. Mas ele reúne algumas falas do professor em sua mente e inicia sua busca por inspiração no cotidiano, utilizando as pessoas do seu prédio como personagens e suas vidas como enredo, mas ele não se contenta em apenas observar para então criar, ele quer de fato saber o que acontece dentro dos apartamentos, daí começa a gravar com seu celular as conversas do casal de mexicanos ao lado, seduz a síndica com o interesse de saber mais sobre os outros moradores, aliás, Adelfa Calvo é incrível em cena, principalmente quando canta com paixão, coisa que Álvaro não possui, ele não demonstra paixão pelo que está fazendo, parece que vive dentro de um sonho egoísta.

Seu livro vai tomando forma à medida que descobre sobre alguns moradores, os vai moldando a partir das fofocas retiradas da síndica em troca de noites de amor, vai se infiltrando em suas vidas, mentindo e articulando para que coisas ocorram e dessa forma sua história ganhar corpo, só que ele não tem limites e não se interessa pelo ser humano em si, ele manipula e despreza, provoca conflitos, e nessa sua loucura não contou que talvez algo pudesse dar errado, que seus personagens de carne e osso se voltariam contra ele. Uma reviravolta que não cogitou em momento algum.

"O Autor" é um exemplar original que mescla ironia e sensibilidade, retrata um homem comum e sem brilho, até aí tudo bem, na maior parte todos somos, mas ele alimenta sentimentos como inveja, indiferença, arrogância, prepotência, ou seja, nada aberto para inspirações, por isso nunca consegue concluir seu sonho, pois é medíocre e pensa que está acima dos outros, quando na verdade, está à sombra, sempre acariciando o fracasso. Seu desfecho é um tanto desapegado aos clichês e para quem procura por filmes diferenciados dentro do catálogo da Netflix é uma boa opção!

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

O Conto (The Tale)

"O Conto" (2018) dirigido pela estreante em longas-metragens Jennifer Fox (Flying: Confessions of a Free Woman - 2006) é um filme que aborda um tema espinhoso, o abuso infantil, é angustiante e repulsivo, mas a sensibilidade faz parte de todo o desenrolar e é de uma importância gigantesca. Por ser baseado na própria vida da diretora faz ser ainda mais pesado, porém enxergamos exatamente a visão de alguém que passou pelo abuso e o como a mente mascarou e a blindou para que pudesse seguir em frente, Jennifer se mistura a sua personagem, que faz o resgate quando sua mãe encontra um conto que escreveu quando garota, um começo e um ressurgir de memórias e do como a negação fez parte de toda a sua vida. É um drama potente e necessário para a compreensão de todos os fatores envolvendo o abuso infantil pelo próprio olhar da vítima. Jennifer Fox retrata com muita transparência e não deixa de lado momentos do mais puro horror.
Jennifer (Laura Dern) tem uma ótima carreira como documentarista e professora e um relacionamento repleto de carinho e respeito mútuo com seu noivo, Martin (Common). Porém, quando sua mãe (Ellen Burstyn), encontra uma história que ela escreveu para escola quando tinha 13 anos contando sobre um relacionamento que teve com dois adultos, ela é obrigada a revisitar um passado traumático e reconciliar suas lembranças com o que de fato aconteceu com ela.
O filme retrata com muita precisão o como as memórias enganam ou como nós mesmos moldamos elas para que certas coisas não nos machuquem e assim seguir em frente, Jennifer é uma mulher por volta dos 48 anos, muito bem-sucedida e independente, sua vida se transforma quando começa a vasculhar seu passado através de um conto que escreveu quando criança, daí memórias ocultas ressurgem fazendo com que compreenda de fato o que aconteceu naquela época, de início é interessante notar que ela se recorda  de uma Jenny de 17 anos, quando na verdade ela tinha apenas 13 anos. Somos absorvidos pela trama, a cada memória ativada é uma descoberta perturbadora. Durante o verão Jenny passava fins de semana no campo, onde aprendia hipismo com o auxílio de Jane (Elizabeth Debicki) e praticava corrida com o auxílio do treinador Bill (Jason Ritter), Jane  e Bill eram amantes e encantaram a menina, Jenny foi acolhida e passava muito tempo junto deles, ela admirava Jane e tinha na companhia de Bill um alívio para sua carência, já que em casa era invisível, recebia elogios e se sentia livre para poder ser quem era, a confiança foi depositada e os dois a tinham nas mãos, ela foi atraída para aquele mundo e não se dava conta de que estava se submetendo a coisas traumáticas, Jenny acreditava que tinha um relacionamento com Bill, um homem de 40 anos, só que suas memórias quando vasculhadas e quando vai atrás de pessoas que conviveram com ela mergulha em algo mais profundo e decide encarar e compreender. Os acontecimentos foram distorcidos em sua mente, ela não enxergou que estava sendo abusada, pois estava apaixonada pelos adultos, ali ela supria sua necessidade de carinho, o que é um alerta vermelho intenso que o filme dá, pois não se discute muito sobre a paixão pelo abusador, nem toda criança se sente mal, elas mascaram a tristeza e o vazio e acreditam que o que recebem é atenção. Jenny adulta quando vai pesquisar e entrevista as pessoas que estavam com ela naquela época sempre diz que teve um relacionamento com Bill, só que ela não imaginava o quão sórdido era o que os adultos faziam não só com ela, mas com outras que ali passavam.

"Eu gostaria de começar essa história contando algo tão bonito. Conheci duas pessoas muito especiais que passei a amar muito. Imagine uma mulher casada e um homem divorciado. E imagine só, eu faço parte dos dois. E sou sortuda o suficiente para ser capaz de compartilhar desse amor."

Quanto mais ela avança em seu conto mais memórias vão lhe surgindo e depois de tanto tempo vai aos poucos arrumando e tendo a compreensão exata da complexidade dos sentimentos que vivenciou, outro ponto crucial que ela encara é a figura da mãe, o que ela representava e o como ela se comportava, e dessa forma também se confronta com ela mesma, com a Jenny de treze anos, olhando para si mesma tenta preencher as lacunas, trazer à tona memórias que se espalharam e que se esconderam para não torná-la frágil, é incrível o poder da mente em distorcer acontecimentos por medo de traumas, quantos relatos de abuso ultimamente têm sido expostos, depois de anos mulheres têm se confrontado e entendendo que não se pode guardar e disfarçar, é preciso falar para conseguir se livrar e ter paz, e desse modo ajudar outras pessoas a se libertarem também.

"O Conto" é um filme delicado, mas não se esquiva dos momentos terríveis, quando as memórias chegam as cenas se tornam difíceis de encarar, a sensação de incômodo dessas cenas advém de todo o contexto e da personalidade de Bill, corajosamente bem interpretado por Jason Ritter, sempre sorridente e solícito, por mais estranho que possa parecer Jenny mesmo assim cedia, pois acreditava que era especial pra ele, mas quando adulta entrando e encarando como pensava, no fundo de tudo ela estava sofrendo. A cena final é dilacerante e não poderia retratar melhor a gama de sentimentos que a envolveram, a negação, a distorção de memórias, realmente muito honesto e poderoso.  

terça-feira, 28 de agosto de 2018

A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata (The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society)

"A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata" (2018) dirigido por Mike Newell (O Amor nos Tempos do Cólera - 2007), baseado na obra homônima de Annie Barrows e Mary Ann Shaffer, retrata o poder dos livros em unir as pessoas e o como as histórias conseguem abraçá-las em suas solidões, a afinidade criada a partir da literatura enquanto o caos reinava é o mote principal e em seguida conhecemos uma outra parte, que também sofreu perdas por conta da guerra e que através do destino se uniu a essa família.
Juliet Ashton (Lily James) é uma escritora na Londres de 1946 que decide visitar Guernsey, uma das Ilhas do Canal invadidas pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, depois que ela recebe uma carta de um fazendeiro contando sobre como um clube do livro local foi fundado durante a guerra. Lá ela constrói profundos relacionamentos com os moradores da ilha e decide escrever um livro sobre as experiências deles na guerra. O clube, criado antes de existir de fato, foi formado de improviso, como um álibi para proteger seus membros dos alemães. O que nenhum dos integrantes da Sociedade imaginava era que os encontros pudessem trazer consolo e esperança e, principalmente, auxiliar a manter a mente sadia. As reflexões e as discussões a respeito das obras os livraram dos pensamentos sobre as dificuldades que enfrentavam.
Juliet é uma escritora em ascensão, apesar de estar sendo reconhecida pelo seu segundo livro, seu maior orgulho é o primeiro livro, uma biografia crítica de Anne Brontë, a guerra também levou parte de si, ela perdeu os pais, mas segue firme e busca inspiração para seu novo livro, e é através de algumas cartas trocadas com um desconhecido que a encontra, Dawsey Adams (Michiel Huisman) pede auxílio sobre um exemplar de contos infantis de Shakespeare de Charles e Mary Lamb, Juliet entusiasmada com a história da Sociedade descrita por Dawsey lhe dá o livro de presente e logo se convida para conhecê-los, Juliet arruma as malas e no dia de sua partida seu noivo Mark (Glen Powell), a pede em casamento e coloca um anel em seu dedo, ela aceita e vai em busca do que seria seu próximo livro, porém não é bem isso que acontece, ao chegar lá todos a recebem bem, mas existem coisas das quais só pertencem a eles, segredos e tristezas que só essa família formada a partir da dificuldade e do amor aos livros entendem.
O que se sucede é que Juliet se torna uma curiosa compulsiva e acaba até irritando com tantas perguntas, faltou um pouco de sensibilidade e delicadeza, talvez pela preocupação da personagem em escrever seu próximo livro a fez se comportar assim. Com o passar do tempo o convívio e a experiência do lugar a fez se sentir como se fosse parte deles, mas esse sentimento dela não é tão natural, pelo menos não transpassa desse modo ao espectador. A motivação e o elo que ela forma com todos ali não causa empatia, o que salta aos olhos são outros personagens, que infelizmente não são tão bem explorados, como a maravilhosa Isola (Katherine Parkinson), que confecciona seu próprio gim e se torna uma companheira para Juliet, ela é dona de cenas inspiradas, alegres, mas que contém grande melancolia, o gentil Eben Ramsey (Tom Courtenay) e outro que pouco aparece e que gera interesse é o editor de Juliet, interpretado pelo ótimo Matthew Goode. 

Os traumas da guerra, o amor à literatura, o reconhecer-se no outro, são temas que são abordados com carinho e uma pitada de bom humor, somos introduzidos ao horror que eles vivenciaram, escolhas que tomaram, como o caso de Elizabeth (Jessica Brown Findlay) tida como uma filha para Amelia (Penelope Wilton), que é atormentada pelas perdas, Juliet vai a fundo e de pouco a pouco descobre o que aconteceu com Elizabeth e decide que o que escreverá sobre eles não será publicado.
O filme é um pouco longo e perde o ritmo em algumas partes, mas possui cenas dotadas de sensibilidade, conversas afetuosas e tomadas espetaculares da natureza do local, a fotografia é linda e exuberante, um verdadeiro deslumbre. 

"Nosso clube do livro nas sextas à noite se tornou nosso refúgio. É uma liberdade particular perceber que o mundo se torna cada vez mais escuro à sua volta, mas que só é necessária uma vela para enxergarmos novos mundos se revelando. Foi isso que encontramos na nossa sociedade."

"A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata" tem seus enfeites, mas no todo é um filme delicado que tem no vínculo da amizade e na admiração pelos demais seu maior triunfo, o romance fica em segundo plano e se concentra lá pelo final, mas não anula o que importa, a inspiração da figura feminina, Elizabeth e sua determinação, suas escolhas em tempos tão terríveis, a exaltação à literatura e o poder dos livros em unir as pessoas, no aconchego das histórias, nos aprendizados e na riqueza que elas proporcionam.
Destaque para os personagens do clube da casca de batata, principalmente, Eben, o criador da torta, Isola e suas especiarias para fazer seu gim e os debates acalorados sobre os livros, e o bônus dos créditos finais em que recitam trechos de algumas obras, como "Ao Farol", de Virgínia Woolf, "A Ilha do Tesouro", de Robert Louis Stevenson, "A Tempestade", de Shakespeare, "Jane Eyre", de Charlotte Brontë e "A importância de ser Fiel", de Oscar Wilde. 
Disponível no catálogo da Netflix!

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Desobediência (Disobedience)

"Desobediência" (2017) dirigido por Sebastián Lelio (Gloria - 2013, Uma Mulher Fantástica - 2017), baseado no livro homônimo de Naomi Alderman, aborda a homossexualidade versus o conservadorismo religioso com muita sensibilidade, qualidade maravilhosa desse diretor, suas histórias têm delicadeza e força, jamais estereotipa, há naturalidade no desenvolvimento e suas personagens preenchem a tela, neste Rachel Weisz e Rachel McAdams se entregam inteiramente e presenteia o espectador com atuações belíssimas e intensas.
Ronit (Rachel Weisz) precisa voltar para sua cidade natal após a morte de seu pai distante - um rabino. Mas ela causa um rebuliço no pacato local ao recordar uma paixão proibida por Esti (Rachel McAdams), sua melhor amiga de infância, que atualmente é casada com seu primo Dovid (Alessandro Nivola)
Ronit foi expulsa da comunidade judaica ortodoxa em que vivia em Londres, estabeleceu sua vida como fotógrafa em Nova Iorque e segue sozinha sem nenhuma amarra social, depois de receber um telefonema sobre a morte do pai, o respeitado rabino do local, volta e se depara novamente com o passado e as fortes tradições das quais todos conservam, ela observa de longe, respeita e continua sendo ela mesma, dando suas opiniões e se apresentando como uma pessoa liberal, sua chegada causa desconforto, pois não era de fato esperada, há muito tempo que ela não dava notícias e como tudo é mostrado o rabino não a considerava mais como filha. Sua surpresa acontece mesmo quando percebe que Dovid está casado com Esti, que aos poucos vai ser confrontada com seus próprios desejos, a presença de Ronit na casa a desperta para algo pendente em sua juventude, os sentimentos reprimidos e toda a pressão da qual vive fica insustentável e aí a questão sobre a liberdade de escolha vem à tona.
O filme retrata o como o conservadorismo religioso atravanca, a comunidade sempre está de olho na vida dos outros, julgando os atos, Ronit foi execrada pelo fato de não querer seguir os moldes, casamento, filhos e todo o manual que isso engloba, além do protocolo da religião, na juventude Esti, Dovid e ela eram inseparáveis e as duas eram apaixonadas, quando Ronit foi embora Esti vê na união com Dovid uma alternativa de fuga para esquecer sua vida pessoal e se submeter aos propósitos estabelecidos por Deus. Dovid não teve muito poder de escolha, seu tio lhe deu tudo que foi negado a Ronit e foi escolhido para sucedê-lo na sinagoga, o casamento foi ideia do rabino para que Esti tivesse a possibilidade de ser "curada", Dovid a partir da chegada de Ronit também começa a repensar, o ambiente fechado castra a liberdade de escolha, e veja só, o rabino no início estava falando justamente sobre isso antes de morrer, sobre o livre-arbítrio, Dovid no final também fecha com esse pensamento e o mais valioso é que coloca em prática. 

O passado de Ronit é colocado de forma sutil, compreendemos as razões pelas quais ela deixou a comunidade e o corte da relação com o pai, ao voltar ela se sente deslocada e angustiada, não há vínculos a não ser o primo, que também sofre à sua maneira, a pressão da sucessão, a continuidade da família com filhos, e depois que as fofocas envolvendo Esti e Ronit surgem, acaba também ressoando em sua respeitabilidade como homem colocando em risco seu título como rabino, Esti e Ronit revivem a paixão com intensidade e desespero, elas se complementam, mas não é apenas um reencontro repleto de desejo e uma desobediência às regras, é um encontro consigo próprias para refletirem nas suas decisões sem o peso das amarras sociais e do julgamento da religião. É exercer a liberdade de escolha mesmo que isso não signifique uma grande reviravolta.

"E não há nada tão gentil ou verdadeiro quanto o verdadeiro sentimento de estar livre. Livre para escolher."

"Desobediência" tem sutileza, é cadenciado e não utiliza artifícios fáceis, é espontâneo e também não estereotipa seus personagens ou religião, ele os retrata com cuidado e precisão. Em uma comunidade conservadora repleta de prescrições exercer sua liberdade é um ato de desobediência, na ótima cena em que Dovid está para ser nomeado rabino, angustiado deixa o discurso pronto de lado e num rompante começa a falar sobre o sentimento de se sentir livre e poder escolher, ali perante todos ele se liberta e concede a liberdade a Esti, um aliviante momento e um novo começo se abre tanto para ele, como para Ronit e Esti. 

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

No Coração da Escuridão (First Reformed)

"First Reformed" (2017) dirigido por Paul Schrader (Cães Selvagens - 2016) é um filme potente e que deixa um apanhado de questões para refletir, o existencialismo é pontiagudo e fere, nos faz mergulhar profundo em nós mesmos e remexer em tudo que se acredita ou não e perceber o quão perdidos estamos.
Um ex-militar capelão (Ethan Hawke) é torturado pela perda do filho que ele encorajou a se alistar nas forças armadas. Ele é ainda desafiado após fazer amizade com Mary (Amanda Seyfried), uma jovem paroquiana e seu marido ambientalista radical. Ele logo descobre segredos escondidos da cumplicidade de sua igreja com empresas inescrupulosas.
O reverendo Ernst Toller é solitário e dependente do álcool, está a frente de uma pequena e importante centenária igreja protestante, que atualmente é praticamente uma atração turística e que está agregada a uma organização, que mais tarde ele descobre estar ligada a ações negativas, ou seja, nada relacionado ao conceito humanitário da qual a religião diz pregar. Observamos que Toller é um sujeito reservado e que está sofrendo de alguma doença, além da tristeza do seu passado, ele está se dedicando a escrever um diário do qual destruirá no final do ano, sua escrita é perturbada e recheada de perguntas, mas todos da comunidade o têm em alto valor por ser o líder e, portanto, ele também é uma espécie de conselheiro, e é a partir do encontro com Mary que sua confusão interior se torna ainda maior, ao pedir a ele que converse com Michael (Philip Ettinger), seu marido, questões sobre depressão, a destruição do meio ambiente, interesses econômicos, o rumo que o homem está dando ao planeta sem nem se importar surgem, o marido de Mary luta pela causa e está cansado de ser taxado como um lunático, ele exibe ao reverendo provas do caos e acende nele questionamentos acerca do aquecimento global e todo o sofrimento entre as espécies, Michael se recusa a colocar um filho neste mundo podre e sem futuro, mas a questão é que Mary não quer abortar, Michael parece disposto a agir de forma desesperada para ser "escutado", desolada Mary se aproxima cada vez mais do reverendo e ilumina a vida de Toller, que se atormenta entre dor e dúvidas, sua fé é posta em xeque, a hipocrisia do meio e a dele também o consome, e contaminado por tudo isso decide fazer algo no dia da festa do centenário da igreja.

Paul Schrader construiu um drama sombrio, carregado e que causa desconforto, os diálogos são atuais e pungentes, capazes de nos transformar ao final da sessão, o filme  tem como influências "Luz de Inverno", de Ingmar Bergman e "Diário de um Pároco de Aldeia", de Robert Bresson, além de seu próprio "Taxi Driver", mas apesar de beber de várias fontes o filme é original e causa impacto, impossível ir dormir tranquilo após assisti-lo, o sentimento crescente de desolação, a descrença, os conflitos internos, a obra aponta para muitas questões, para cada um pesará de um jeito, por exemplo, a degradação do meio ambiente provocada pelas mãos do homem em prol de seu bem-estar, até quando o planeta irá aguentar, que futuro terão as próximas gerações? Ninguém se importa se terá recursos naturais, a imensidão de lixo predomina, todo o equilíbrio já está comprometido, aquecimento global, devastação de florestas, extinção de espécies, rios contaminados, etc.

"First Reformed" é um filme introspectivo e inteligente na abordagem, o desenvolvimento do personagem é maravilhoso, ele de início mesmo sendo descrente se dispõe a ajudar, mas as conversas e o desfecho de Michael só aumentam os seus conflitos internos, sua visão se amplia e acaba desesperançoso não só consigo mesmo, mas com tudo ao redor, com o ser humano; a única luz, o resquício de pureza e esperança é Mary, mas seus sentimentos em relação a ela se misturam e sua hipocrisia vem à tona, assim como seu egoísmo. Ethan Hawke está sublime, completamente absorvido por um personagem complexo, cuja descrença vai alcançando vários níveis, o acompanhamos seja em seus silêncios, em seus pensamentos postos em seu diário, ou nos diálogos primorosos repletos de reflexão.
Paul Schrader é um exímio argumentista e marcante como realizador, em "First Reformed" conseguiu transcender-se, uma obra de atmosfera meditativa, incômoda e que passeia por vários assuntos importantes dos quais a maioria prefere se esquivar. 

terça-feira, 14 de agosto de 2018

A Próxima Pele (La Propera Pell)

"A Próxima Pele" (2016) dirigido pela dupla Isa Campo e Isaki Lacuesta é um filme envolto por um clima de mistério, instigante retrata conflitos de relação, questões psicológicas advindas de traumas, as pistas são dadas no decorrer da trama, mas no final não importa muito a revelação e sim todas as situações que envolvem o protagonista.
Por muitos anos, ninguém sabia o que havia acontecido com Gabriel (Àlex Monner), um garoto de nove anos que sofreu um acidente nas montanhas que deixou seu pai morto. Anna, a mãe (Emma Suárez) e outras pessoas suspeitavam que ele estivesse morto, porém, oito anos depois, ele retorna para casa alegando ter amnésia. Retendo apenas memórias básicas, ele busca restabelecer sua conexão perdida com a mãe, mas suspeitas de que ele seja apenas um impostor começam a surgir.
Gabriel foi reconhecido pela mãe após oito anos desaparecido, ele estava morando em um abrigo com o nome de Leo, todas as esperanças estavam praticamente anuladas devido a complexidade do acidente, os habitantes o recebem bem, mas ficam desconfiados, principalmente o tio Enric, que diz na cara dele que sabe que é um impostor, Anna não quer nem saber de exames para comprovar de fato se é seu filho, seu coração lhe dá a certeza, aos poucos ele se acostuma à rotina e o tédio do local, por ele ser diagnosticado com amnésia seletiva, lembrar de algumas coisas e outras não, as pessoas o olham com certo receio, quando vê seu amigo Joan (Igor Szpakowski) lembra dele, mas de outras mais próximas, como o tio não, o que será que acontece com Gabriel? Seria porque bloqueou momentos ruins envolvendo essas pessoas, ou simplesmente é um impostor, um garoto carente e sem perspectivas que encontra em Anna um porto seguro e amor? Essas perguntas ficam martelando o tempo todo e ora temos certeza que ele é Gabriel e ora temos absoluta certeza que não. E isso se deve a maravilhosa interpretação de Àlex Monner, multifacetado e sedutor, que sofre em muitos momentos ataques de ansiedade e outras sofre por se sentir perdido, ele é uma mistura de carência e fúria. Um jovem atraente que coleciona histórias de lugares por quais passou enquanto estava desaparecido, seu amigo Joan o admira e se mostra seguro sobre ele ser realmente Gabriel. Já o tio o quer fora dali, ele não admite que o garoto mude toda a rotina de Anna e, que principalmente, roube o amor, que antes não era dividido com ninguém, ao saber do caso de sua mãe com ele Gabriel se torna mais ríspido e diz que não contará nada se Enric não contar sobre ele, novamente a dúvida e questões sobre os conflitos de relação do passado se tornam mais pungentes, como sobre o pai de Gabriel não ser uma boa pessoa.

É um drama que proporciona refletir sobre relações familiares, traumas e suas consequências, o título "A Próxima Pele" já nos diz muito sobre o protagonista, Leo/Gabriel. Acompanhar o processo dele é doloroso e o final se torna ainda mais tenso, quando confrontado pelo seu tio ele parece relembrar do dia em que desapareceu e os motivos. Mas nada é claro, as respostas não são explícitas, para o espectador cabe pensar em tudo que viu, o comportamento dos personagens, nas situações que desencadearam, nos segredos, nas mentiras, e assim vamos montando um quebra-cabeça.

"A Próxima Pele" é um filme lento e fechado, é todo permeado por dúvidas e muitas coisas não são aprofundadas, mas segue cativante e instigante em todo o seu desenrolar, é um drama denso e que permite ao espectador tirar suas próprias conclusões. 
Está presente no catálogo da Netflix!

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Custódia (Jusqu'à la Garde)

"Custódia" (2017) dirigido pelo estreante Xavier Legrand é um drama francês que aterroriza tamanha a sua crueza e momentos tensos, é uma história que infelizmente acontece e muito na realidade e é necessária para que se analise as leis que ao invés de dar voz à criança prefere escolher por pura sorte quem dos pais tem a razão. 
O casal Besson se divorcia. Para proteger o filho de um pai que ela acusa de violências, Miriam (Léa Drucker) exige a guarda exclusiva. A juíza encarregada do caso decide pela guarda compartilhada, pois considera Antoine (Denis Ménochet), o pai, desrespeitado. Refém entre seus pais, Julien (Thomas Gioria) vai fazer de tudo para impedir que o pior aconteça.
Muito importante a temática abordada, com seriedade reflete todos os lados de uma separação, que por si só já desestabiliza os filhos, ainda mais quando os adultos não têm inteligência emocional e se há problemas maiores, como abuso e violência, piora. O início já começa impactando e nos colocando como júri, será que a mãe está querendo afastar o filho do pai? A alienação parental tem sido muito discutida e é um terreno perigoso de se passar, pois para se concluir isso, precisaria escutar a criança, coisa que não acontece, as autoridades nunca ouvem o que os filhos têm a dizer, não dispõem profissionais para isso, não levam em consideração, subestimam a criança, e assim julgam o que o pai e a mãe diz a seus advogados, estes que incrementam ou omitem fatos.   
A prepotência da juíza em decidir isso ou aquilo com base em informações que cada um deles disponibiliza para seus advogados, mesmo com a criança dizendo que não quer mais ver o pai por medo, é uma enorme irresponsabilidade para com a vida do maior interessado. Observar Julien em meio ao terrorismo psicológico destrói, causa angústia no espectador, quantas e quantas histórias não conhecemos na realidade em que pais se separam e criam um inferno para a criança, que vai desde a alienação parental, a questões de pensão alimentícia, guarda compartilhada e tantas outras, aqui o que se sucede é mais terrível, o abuso e a violência que advém do pai, que é ignorada pela juíza. Vemos a advogada dele amenizar situações e borrar fatos, no que acaba resultando-o em vítima, então o veredito é a guarda compartilhada. Claro, nesse começo o filme nos confunde em relação as personalidades e o faz de propósito, porque não é algo simples de se resolver, como a autoridade o fez, com arrogância e descaso com Julien, que sim deveria ser ouvido. 

Antoine começa a buscar Julien nos finais de semana e de começo pouco a pouco se intrometer na vida pessoal de Miriam, faz perguntas ao filho sobre ela ter um namorado ou quando descobre que arranjou outra casa vira um monstro ao querer saber o endereço, a filha mais velha como vai completar dezoito anos em breve tem a opção de querer ou não vê-lo e por isso se afasta completamente. Antoine não consegue se segurar por muito tempo e logo se demonstra um homem violento, segue Miriam, invade o apartamento novo, esse que seria um refúgio para ela e os filhos, faz o filho dar o número de celular dela e aterroriza com seus jogos emocionais. O medo dessa mulher é tão evidente que transpassa a tela, quando ela é atormentada na festa de aniversário da filha e a irmã a protege é essa a sensação que temos, de atravessar a tela e também fazer alguma coisa, pois ela está psicologicamente destruída e diante das consequências não é capaz é agir.
A interpretação de Thomas Gioria é visceral, seus silêncios, sua expressão de pavor toda vez que Antoine vem pegá-lo, o desespero de que algo ruim possa acontecer e de sempre ficar mediando os acontecimentos para defender sua mãe, o que faz com que o pai desconte nele quando descobre algo, a ruína psicológica dele é clara e é impressionante o como esses casos são mais corriqueiros do que pensamos, o abusador se torna a vítima, a mulher encurralada por uma decisão judicial fica de mãos atadas e a criança ao invés de ser o centro fica à deriva e acumulando traumas. 

"Custódia" é intenso e não é à toa que está sendo classificado como terror por quem o assiste, pois a sensação que causa é justamente essa, a tensão crescente anuncia seu final, é inegável o caminho que a história irá tomar, o caos, mas o roteiro inteligente e cru nos leva até o ápice com grande aflição e força, a sequência final é interminável, a agonia e o nó na garganta que produz não some depois de seu término seco, persiste e ficamos ali parados com os olhos arregalados e respiração ofegante. Uma obra necessária, uma forma eficaz de se pensar em como a lei é sórdida ao não dar importância ao testemunho da criança, em tomar decisões com base somente naquilo que os advogados contam, em não se levar em consideração relatos de violência. Uma potente história que retrata o terror real e que suscita discussões urgentes.