terça-feira, 31 de julho de 2018

November

"November" (2017) escrito e dirigido pelo estoniano Rainer Sarnet (Idioot - 2011) é baseado no livro "Rehepapp Ehk November", de Andrus Kivirähk, completamente fiel ao folclore da Estônia retrata lendas e tradições que acabam demonstrando o pior do ser humano, num ambiente desolado e falido acompanhamos a rotina de alguns camponeses que fazem pacto com o demônio e pedem auxílio dos espíritos, a corrupção faz parte da vida de todos e o horror faz com que percam sentimentos nobres. Um filme estranhamente atraente e poético.
A história é ambientada em uma aldeia pagã estoniana onde lobisomens, a peste e espíritos vagam. O problema principal dos aldeões é como sobreviver ao inverno frio e escuro. E, para esse objetivo, nada é tabu. As pessoas roubam umas das outras, dos seus senhorios alemães, dos espíritos, do diabo e de Cristo. A personagem principal é uma jovem fazendeira chamada Liina, que está desesperada e apaixonada por um garoto da aldeia chamado Hans.
O horror retratado não advém especificamente das criaturas, mas sim da atmosfera pesada que circula nesse vilarejo, as atitudes dos habitantes que roubam uns dos outros, e que preguiçosos tentam enganar até o diabo ao levar groselhas em troca de um Kratt, que é feito a partir de utensílios domésticos, eles sempre precisam estar trabalhando, são escravos dos humanos, este que deveria dar o sangue, a alma em troca, pois os Kratts são almas roubadas. Na mitologia estoniana são descritos como uma criatura mágica criada por utensílios domésticos ou feno pelo seu mestre que então daria três gotas de sangue para o diabo trazer uma alma a ele. No livro de Andrus Kivirähk sugere que muitos usavam groselhas para enganá-lo e assim salvar suas vidas. O Kratt faz tudo que o mestre manda, trabalha, rouba e até voa para isso, caso o trabalho não surgisse ele se tornaria violento se revoltando contra seu dono, uma artimanha para se livrar de um Kratt, era sugerir um trabalho impossível de realizar e que de tanto tentar pegaria fogo ou se desmancharia. A maioria dos camponeses fabricam seus Kratts, que constantemente são vistos trabalhando em meio a floresta, os homens terminam folgados e vingativos, eliminando qualquer rastro de um bom sentimento para com o outro.
Em meio a um cenário gélido tanto pelo clima quanto pelo modo de se relacionarem há Liina (Rea Lest), que ama intensamente em segredo Hans (Jörgen Liik), que por sua vez ama a baronesa (Jette Loona Hermanis), Liina faz de tudo para que Hans a note e Hans faz de tudo para que a baronesa o ame, ambos desesperados utilizam feitiços, meios que talvez pudessem de alguma forma trazer o coração do amado para perto dos seus. O pai de Liina a prometeu em casamento para um velho do vilarejo, desnorteada ela tenta até matar a jovem baronesa, que todas as noites sobe até o telhado e quando está para cair sempre é salva por alguém, Hans recorre ao diabo e troca sua alma por um Kratt, dessa vez o diabo não se engana com as groselhas e dá vida a um Kratt que conta histórias de amor, alimentando ainda mais a sua paixão pela baronesa. 

O filme é um primor não só em sua narrativa, o visual é um deslumbre, a fotografia em preto e branco, na maior parte do tempo prevalecendo um branco translúcido e a paisagem gelada com sua floresta densa hipnotiza e gera angústia, porém mesmo assim o humor está presente em variadas situações bizarras e nos maneirismos e nas incríveis performances físicas dos atores, o belo está continuamente de mãos dadas com o horror. Excepcional em todos os quesitos, como os ruídos da natureza, o vento e o fogo, ou o barulho das passadas na neve, roupas, mastigação, além da trilha fúnebre que anuncia o mal ou o sofrimento. O conto nos transporta para um mundo fantástico, habitado tanto por demônios, espíritos, bruxas, criaturas pagãs e Cristo, mas também conversa com o realismo ao expor o lado traiçoeiro, ganancioso e mesquinho do ser humano, e claro, a tragédia, um clássico das histórias de amor.

"Eu fecho os olhos e finjo que as palavras que ele diz a ela são para mim."

"November" é uma fábula fascinante e que não se detém a sentimentalismos ao retratar as lendas estonianas, expõe-se preconceito, miséria, angústias e corrupção, além de agradar aos olhos com seu visual estonteante. O humor nada convencional permeia muitas das cenas, citando uma delas, quando a peste chega ao vilarejo na forma de um bode e os habitantes tentam se desvencilhar enganando-a colocando as calças na cabeça, que pelo cheiro não saberia identificá-los, a peste volta depois sob a forma de um porco, realmente estranho, mas efetivo ao demonstrar os comportamentos das pessoas sempre agindo para de algum modo se beneficiarem. Para quem busca por filmes fora da caixinha é mais que indicado, há beleza, lirismo e crueza. Filmaço!

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Severina

"(…) as vidas dos indivíduos consistem em certas coisas classificáveis, divididas entre as reais, que são raras e valiosas; as simples, que são ordinárias e normais; e as fantasmas, ou ‘névoas’ — como febre, dor de dente, terríveis decepções…"

"Severina" (2017) dirigido por Felipe Hirsch (Insolação - 2010), baseado na obra do guatemalteco Rodrigo Rey Rosa é um filme brasileiro/uruguaio delicado e imersivo, um exercício metalinguístico sedutor e que consegue captar perfeitamente a atmosfera literária. Melancólico, agradável, um delírio fascinante que traz um sabor amargo e ao mesmo tempo prazeroso. 
Dono de livraria (Javier Drolas) se encanta com uma mulher (Carla Quevedo) que visita sua loja e volta dia após dia para cometer furtos. Inicialmente ele não reage, mas numa das vezes, mais interessado em puxar conversa do que recuperar o prejuízo, ele a encurrala. Ela passa então a pegar livros em outros estabelecimentos, porém ele não está disposto a se libertar da misteriosa obsessão.
Somos introduzidos a um ambiente dominado por um ar literário, as ruas clássicas de Montevidéu repleta de sebos, prédios antigos, um charme romântico único, a fotografia escura acentua o clima de elegância e melancolia. Dividido em capítulos, a narrativa flui exatamente como se estivéssemos lendo um livro, as cenas são páginas que mesclam realidade aos devaneios do protagonista que se apaixona de forma obsessiva por uma moça misteriosa que entra em sua livraria e rouba livros, o livreiro consumido pelo tédio e que sonha em escrever um romance vê nela uma chance de quebrar a monotonia e viver um amor. R. promove encontros de leitura em sua livraria, lá é ponto de encontro dos bibliófilos, e num dia aparece uma moça e vasculha as prateleiras e pega alguns livros e enfia debaixo da blusa, R. a olha com admiração e espanto e nos dias que se sucedem ele parece não se importar com os roubos, mas sim em querer vê-la novamente e puxar assunto, assim quando ela volta e rouba mais alguns livros ele a prende no local e a faz devolvê-los e, por consequência, conhecê-la, mas a moça é misteriosa e não permite muitas perguntas, quando ela quer dizer algo ela diz sem a necessidade de perguntas, diz se chamar Ana e que mora com o pai em uma pensão, que rouba os livros para consumo deles próprios, pois são amantes de histórias e das muitas vidas que pululam delas.

Ana é sua musa de carne e osso, antes ele nutria-se e livrava-se do tédio com o que lia, com a enigmática moça que rouba livros se vê enredado numa narrativa que ele mesmo quer tecer, sua curiosidade é aguçada a cada visita que ela faz e seu interesse torna-se obsessivo quando ela se afasta após um sarau, eles se amam e ele a acompanha para a pensão, crê que está namorando, quer conhecer o pai/namorado e Ana diz que é complicado e que a vida é uma merda. R. desesperado por perder sua musa num impulso pega suas malas e muitos livros e se hospeda na mesma pensão a fim de encontrar Ana, no dia seguinte seus livros desapareceram junto de sua amada. O mistério cresce e o livreiro começa a procurar pistas, vai até o sebo de Ahmed (Alejandro Awada), um muçulmano ateu com grande conhecimento sobre a doutrina cristã, ele o avisa que ele não foi o primeiro a se apaixonar e que era frequente os roubos, contou algumas coisas que poderiam ser ou não verdades e que demoraria até o inverno para a moça regressar. 

Ana é um mistério, ao lado de um homem (Alfredo Castro) cuja identidade é uma incógnita vai de lá para cá, assume vidas diferentes, mas sempre roubando livros e seduzindo os livreiros, R. se apaixona pelo mistério que Ana provoca, tirando-lhe da monotonia e o transformando num desses personagens de romances clássicos com seu amor obsessivo. A trama conduz o espectador para situações que bambeiam entre realidade e surrealidade, colocando em dúvida sobre o que de fato é ou não é, seria tudo produção da mente do livreiro, ou realmente essa mulher fascinante existe? 
O filme entrelaça literatura e cinema de um jeito delicioso e deixa no espectador o sabor de um livro lido, o encanto de contemplar uma história de amor, fonte inesgotável, tanto para as criações de obras literárias quanto cinematográficas. A união dessas artes resulta num filme melancolicamente charmoso em todos os quesitos. 

"Severina" como o próprio personagem diz é um "delírio amoroso", um conto entre uma ladra de livros e um livreiro aspirante a escritor, uma ode à literatura. 
Não tem como não se apaixonar pelos lugares retratados, as ruas por onde os personagens passam, ou os interiores das livrarias remetendo à épocas passadas. Traz a magia das palavras escritas, tão esquecidas nos dias de hoje em que tudo é pressa e imagem, há uma nuvem de decadência pairando sobre esses lugares abarrotados de livros, prateleiras que guardam verdadeiras relíquias e histórias atemporais, cujas fronteiras entre realidade e imaginação são invisíveis, como outro personagem diz, "livreiros são como alquimistas". 
É um abraço apertado e gostoso entre cinema e literatura. Um mimo adorável para os bibliófilos e os cinéfilos!

"Não quero ser cruel, mas direi sem rodeios o que considero seus defeitos. E espero sinceramente que te influencie. Como a maioria das pessoas, você não é capaz de enfrentar mais de um medo na vida. Você também passa todo o seu tempo fugindo do seu primeiro medo para a sua primeira esperança. Tenha cuidado para não cair na sua própria armadilha, e terminar sempre na mesma posição em que começou. Não aconselho a passar a sua vida cercado de coisas que você chama de necessárias para a sua existência, independentemente de serem - ou não - interessantes. Acredito com sinceridade que apenas aqueles homens que podem combater dentro de si próprios uma segunda tragédia, e não a primeira repetidamente, são dignos de serem chamados de maduros. Quando você acha que alguém está indo em frente, certifique-se que este alguém não esteja, na verdade, parado no mesmo lugar. Para seguir em frente, você precisa deixar para trás coisas que a maioria das pessoas reluta em deixar. Sua primeira dor, você a carrega consigo como um ímã em seu coração. Porque toda a ternura vem daí. Terá de carregá-la por toda a sua vida, mas não pode viver em círculos em torno dela. Terá de desistir da busca daquelas coisas que servem apenas para ocultar sua face de você. Terá a ilusão de que elas são diferentes e múltiplas. Mas são sempre as mesmas. Se você está apenas interessado em uma vida segura, talvez estas palavras não sejam para você."

sexta-feira, 27 de julho de 2018

11 Filmes + 2 Séries Sobre Medicina

Segue uma lista de 11 filmes e 2 séries que têm como tema a medicina, histórias que destacam os bastidores, as descobertas, as dificuldades e a paixão pela profissão.

11- "Moscati - O Doutor Que Virou Santo" (Giuseppe Moscati - 2007) Itália
Giuseppe Moscati, um médico ainda muito admirado na Itália pelo trabalho que fez com os pobres no final do século XIX e inicio do século XX, é um dos poucos leigos a ser canonizado pela Igreja Católica, tornando-se assim um santo. Vemos nesse filme sua trajetória e sua ajuda no tratamento de pessoas necessitadas pela epidemia da Cólera, das que sofreram da erupção do vulcão Vesúvio e na condução das investigações que levaram a descoberta da insulina como cura para a diabetes.

10- "Nise: O Coração da Loucura" (2015) Brasil
Ao sair da prisão, a doutora Nise da Silveira volta aos trabalhos num hospital psiquiátrico no subúrbio do Rio de Janeiro e se recusa a empregar o eletrochoque e a lobotomia no tratamento dos esquizofrênicos. Isolada pelos médicos, resta a ela assumir o abandonado Setor de Terapia Ocupacional, onde dá início à uma revolução regida por amor, arte e loucura. Saiba+

09- "Quase Deuses" (Something the Lord Made - 2004) EUA
A historia de dois homens, um branco, cardiologista, e seu assistente negro, que lutaram contra os preconceito dos anos 50. Juntos revolucionaram a medicina e foram pioneiros em cirurgia cardíaca. Nashville, 1930. Vivien Thomas (Mos Def) é um hábil marceneiro, que tinha um nome feminino pois sua mãe achava que teria uma menina e, quando veio um garoto, não quis mudar o nome escolhido. Ele é demitido quando chega a Grande Depressão, pois estavam dando preferência para quem tinha uma família para sustentar. A Depressão o atinge duplamente, pois sumiram as economias de 7 anos, que ele guardou com sacrifício para fazer a faculdade de medicina, pois o banco faliu. Thomas consegue emprego de faxineiro, trabalhando para Alfred Blalock (Alan Rickman), um médico pesquisador que logo descobre que ele tem uma inteligência privilegiada e que poderia ser melhor aproveitado. Blalock acaba se tornando o cirurgião-chefe na Universidade Johns Hopkins, onde está pesquisando novas técnicas para a cirurgia do coração. Os dois acabam fazendo um parceria incomum e às vezes conflitante, pois Thomas nem sempre era lembrado quando conseguiam criar uma técnica, já que não era médico.

08- "Histeria" (Hysteria - 2011) UK
Em 1880, a Inglaterra ainda tem dificuldade em abandonar velhos hábitos, em especial na medicina. Nessa época, que não se acredita na existência de germes e bactérias, ainda são usados métodos iguais para qualquer tipo de doença. Mortimer Granville (Hugh Dancy) é um jovem médico de pensamentos modernos que sofre para conseguir ajudar as pessoas ao seu redor, e para manter um emprego fixo, já que ninguém gosta de suas inovações. Quando começa a trabalhar com o Dr. Robert Dalrymple (Jonathan Pryce), Mortimer conhece a "doença" chamada Histeria, que estaria afetando metade das mulheres de Londres. O jovem também conhece as duas filhas do velho doutor, a comportada Emily (Felicity Jones) e a revoltada Charlotte (Maggie Gyllenhaal). Ao mesmo tempo que os tratamentos para a Histeria evoluem, Mortimer começa a ver com outros olhos o papel das mulheres na sociedade em que vive e a duvidar se a Histeria realmente é uma doença. Saiba+

07- "Síndromes e um Século" (Sang Sattawat - 2006) Tailândia/França/Áustria
A primeira parte se passa numa clínica rural da Tailândia. Depois de atender um velho monge budista, a Doutora Toey entrevista Nohng, um médico que começa a trabalhar com ela. Na sala de odontologia, o Doutor Ple conversa com um jovem monge que queria ser DJ. Eles falam de vidas passadas e do amor. A segunda parte acontece num moderno hospital de Bangcoc. Toey volta a entrevistar Nohng... Nas duas partes, as espelhadas narrativas, no passado e no presente, repetem-se. Rotinas que se manifestam na memória e nas sensações de felicidade, despertadas por coisas aparentemente insignificantes.

06- "Sob Pressão" (2016) Brasil
Durante um dia tenso no centro da sala de emergência, sala de trauma e cirurgia seguimos o cirurgião Evandro e sua equipe em três casos que necessitam de cirurgias de alto risco: um traficante de drogas, um policial e um filho de uma família rica, todos feridos durante um tiroteio em uma favela perto do hospital. De frente para a emergência, as condições limitadas do hospital e a pressão de familiares e outras pessoas ligadas aos pacientes, Evandro se vê diante de escolhas difíceis, fazendo o que é possível e tentando o impossível.

05- "O Físico" (Der Medicus - 2013) Alemanha
Inglaterra, século XI. Ainda criança, Rob vê sua mãe morrer em decorrência da "doença do lado". O garoto cresce sob os cuidados de Bader (Stellan Sarsgard), o barbeiro local, que vende bebidas que prometem curar doenças. Ao crescer, Rob (Tom Payne) aprende tudo o que Bader sabe sobre cuidar de pessoas doentes, mas ele sonha em saber mais. Após Bader passar por uma operação nos olhos, Rob descobre que na Pérsia há um médico famoso, Ibn Sina (Ben Kingsley), que coordena um hospital, algo impensável na Inglaterra. Para aprender com ele, Rob aceita não apenas fazer uma longa viagem rumo à Ásia mas também esconde o fato de ser cristão, já que apenas judeus e árabes podem entrar na Pérsia. Saiba+

04- "150 Miligramas" (La fille de Brest - 2016) França
Irene (Sidse Babett Knudsen) é uma médica especializada em tratamento de doenças pulmonares. Ela começa a suspeitar das recentes mortes e relacioná-las com a prescrição de remédios específicos. Suas investigações a levarão até uma empresa farmacêutica que controla a produção da droga - e que ela acredita que esteja envolvida direta e deliberadamente com as mortes.

03- "A Morte do Sr. Lazarescu" (Moartea Domnului Lazarescu - 2005) Romênia
Sr. Lazarescu (Ion Fiscuteanu), um homem solitário de 63 anos, passa mal e chama a ambulância. Quando a ajuda chega, os parmédicos decidem levá-lo ao hospital, mas ao chegarem lá, decidem mandá-lo para outro hospital e, em seguida, para mais outro. À medida que a noite vai se desenrolando e eles não conseguem achar um hospital para o Sr. Lazarescu, a saude dele fica cada vez pior.

02- "Hipócrates" (Hippocrate - 2014) França
Benjamin vai se tornar um grande médico, ele tinha certeza. Mas, para seu primeiro treinamento interno no serviço de seu pai, nada sai como planejado. A prática é mais grosseira do que a teoria. A responsabilidade é enorme, seu pai é claramente ausente e o outro interno, Abdel, é um médico mais experiente do que ele. Benjamin, de repente, enfrenta os limites e medos, tanto os seus quanto os dos pacientes, das famílias, dos médicos e funcionários. Saiba+

01- "Morfina" (Morfiy - 2008) Rússia
Adaptação da história homônima de Mikhail Bulgakov, baseada na experiência real do autor russo, quando, como um médico rural se tornou viciado em drogas, após uma pequena dose prescrita. Balabanov cuidadosamente reconstrói o momento em que Bulgakov cai nos braços da morfina, os anos da Revolução Russa, e mostra com rigor a aspereza da prática da medicina nesse período histórico. Saiba+

Séries: 

"The Knick" (2014 - 2015) EUA
Em Nova Iorque, num tempo tumultuoso de grandes mudanças e progresso, os protagonistas serão os cirurgiões, enfermeiras e funcionários do Hospital Knickbocker, que vão até os limites próprios e aos da medicina para salvar os pacientes, numa época de mortalidade altíssima e anterior à invenção dos antibióticos. Entretanto as barreiras morais de sua época, a equipe médica liderada pelo Dr. John W. Thackery (Clive Owen) explora novas técnicas com o objetivo de ampliar os horizontes da medicina. Além das novas tecnologias, a série também tratará de temas como o preconceito racial, os direitos das mulheres, a imigração, as diferenças de classes sociais, a corrupção e a dependência de drogas. Saiba+

"Diário de um Jovem Médico" (A Young Doctor's Notebook - 2012 - 2013) UK
Situada na Sibéria, no ano de 1917, a história acompanha um jovem médico que mora em uma pequena comunidade convivendo com pessoas com baixa escolaridade, dominadas pelas superstições. Tentando ajudá-las, o médico começa a sentir o peso da responsabilidade, o que o leva ter dúvidas sobre sua capacidade profissional.

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Mary Shelley

"Mary Shelley" (2017) dirigido por Haifaa Al-Mansour (O Sonho de Wadjda - 2012) é uma biografia delicada e fascinante sobre a precursora do gênero de ficção científica, a criadora do romance gótico Frankenstein. Apesar de não ter profundidade e peso a história consegue cativar por seus personagens interessantes e sua atmosfera literária. 
A história do romance entre o poeta Percy Shelley (Douglas Booth) e Mary Wollstonecraft (Elle Fanning), uma jovem de 17 anos que viria a se tornar a aclamada escritora Mary Shelley, autora do livro "Frankenstein ou o Prometeu Moderno".
Mary Goldwin estava destinada às palavras, criada num ambiente intelectual e libertário, filha do filósofo William Godwin e da escritora e feminista Mary Wollstonecraft desenvolveu desde pequena paixão pela escrita, o pai a incentivava a encontrar sua própria voz e seu próprio estilo, e para isso a enviou para o campo, onde conheceu o poeta e seguidor de seu pai Percy Shelley, que mais tarde se tornaria seu marido, quando Percy e Mary se apaixonaram decidiram viver juntos mesmo Percy já sendo casado, seu espírito de amor livre gerou consequências dramáticas, inclusive o suicídio da sua primeira mulher, Mary viveu muitas tristezas e decepções e a partir delas criou sua obra-prima, todas as agruras, desde a perda do filho, as dívidas, o ostracismo, os altos e baixos do relacionamento contribuíram para sua evolução como escritora. E foi num verão tedioso e libidinoso em que passaram na casa de Lord Byron que Mary começa a conceber a ideia de seu romance, lá junto de sua meia-irmã Claire Clairmont, amante de Byron e o médico e escritor John William Polidori têm a ideia de cada um escrever uma história de fantasmas depois de lerem alguns contos de horror. Assim nasce uma poderosa história de horror sobre abandono, uma novidade na época ainda mais para uma mulher, a história foi recusada por inúmeras editoras, não acreditavam que tinha sido ela a autora, uma moça de aparência delicada ter colocado tais palavras sombrias e tristes no papel, então como última alternativa aceitou que o livro fosse publicado anonimamente com o prefácio de seu marido, o que gerou grande interesse dos leitores, mais tarde seu pai descobriu a verdade e conseguiu fazer uma nova remessa colocando o nome de Mary, as outras obras concebidas a partir do jogo na casa de Byron também geraram polêmicas, Polidori criou a primeira história de vampiro inglesa, "O Vampiro", mas foi publicada e creditada a Byron, foi um enorme sucesso e mais tarde Byron viria refutar a autoria, o vampiro descrito por Polidori era um ataque ao amigo, afetado, arrogante, mas que também sabia ser sedutor. Já as outras não tiveram tanta fama, Percy Shelley redigiu "Fragmento de uma História de Fantasma" e a verdadeira história de Byron tão pouco viria a ser comentada, esse verão em que ficaram presos na mansão de Byron por conta de uma tempestade foi cenário de muito ócio e de elucubrações, Mary era uma ouvinte silenciosa e tinha curiosidade na ciência, nas teorias de Darwin e por isso se aproximou bastante de Polidori, a concepção de "Frankenstein" foi uma junção de todos os seus sentimentos e seus interesses.

No filme o relacionamento de Percy e Mary é retratado com muito romantismo, Percy tinha ideias de amor livre e acreditava que por Mary ter sido criada em meio a ideias liberais também nutria esse desejo, porém ela queria somente Percy e sua paixão era demasiada forte, sofreu muitas desventuras e decepções, a vida dos dois foi marcada por perdas, infidelidades e dívidas, mas se amavam e se admiravam intensamente, além da paixão compartilhavam e se dedicavam ao amor à leitura e escrita. 
A história destaca bastante os outros personagens e cria a curiosidade no espectador em querer saber mais sobre eles, um filme de cada um seria ótimo, Lord Byron, por exemplo, magnifico e repulsivo na pele de Douglas Booth, a animada e carente meia-irmã de Mary, vivida por Joanne Froggatt, que presenciou boa parte dos dissabores, assim como os vivenciou, principalmente ao engravidar de Byron. 

"Mary Shelley" retrata a trajetória de Mary Shelley até sua criação mais famosa e que ainda continua sendo referência do horror gótico e ficção científica, e claro, uma crítica à arrogância e prepotência humana e cuja descrição da solidão e abandono são sentimentos  que conseguem penetrar à alma. 
É um filme de atmosfera romântica, o peso e a decadência são amenizadas, mas os elementos literários cativam e embelezam à obra, para quem quer conhecer mais da autora vivida por Elle Fanning e do fatídico verão na mansão de Byron até a publicação de um dos romances mais famosos e influentes, é um exemplar encantador e poético.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Calibre

"Calibre" (2018) dirigido por Matt Palmer traz uma trama envolvente e tensa em que boa parte das situações poderiam ocorrer na vida real, a partir de um acidente questões morais são levantadas e os personagens à medida que o desespero avança tornam o clima opressivo e de pura desconfiança. O vilarejo, a floresta ao redor e as atitudes das pessoas ajudam na sensação de angústia e cria-se uma atmosfera sobrecarregada, um ótimo suspense que se não fosse pelo final destoante, seria um filme seco, direto e realista.
Dois amigos de longa data, Vaughn (Jack Lowden) e Marcus (Martin McCann), viajam até uma isolada vila escocesa para um final de semana onde possam caçar juntos. Mas nada os preparariam para o que iria acontecer. Atenção: Possíveis Spoilers a Seguir!
Marcus planeja uma viagem até uma vila da qual conhece bem para caçar com o amigo Vaughn, este que se tornará pai em breve, animado com sua primeira vez caçando chegam ao local e já começam a comemorar, bebem a noite toda e enquanto Marcus sai com uma moça, Vaughn segue a madrugada conversando com outra. Os habitantes são experientes caçadores e ficam curiosos sobre o local em que irão caçar. Na manhã Vaughn acorda de ressaca e esquece a sua arma, assim termina usando a de seu amigo mesmo sabendo da ilegalidade, ele encontra um cervo e se posiciona para atirar, só que no momento o animal foge e a bala atinge outro alvo, ele vai na direção e encontra o corpo de um menino, fica desesperado, não sabe como proceder e daí surge o pai da criança que depois de ver seu filho morto aponta a arma para Vaughn, mas a bala vem de outro ponto, Marcus mata o homem. A situação vai numa crescente de emoções, Vaughn fica impressionado com o acontecido e Marcus friamente articula os meios de se proceder, esconde os corpos e saem dali para irem em outro lugar e fingirem estarem caçando. Fica difícil para Vaughn esconder sua apreensão e age de maneira estranha perto dos outros, de madrugada eles seguem para o local e cavam uma cova para os corpos, essa parte é uma das mais aflitivas e que reflete muito sobre a moral diante de fatos acidentais, a linha entre o certo e errado é tênue e acompanhamos o declínio psicológico dos amigos. Depois de alguns dias o pessoal sai em busca dos desaparecidos, eles eram parentes de Logan (Tony Curran), o primeiro homem a recepcionar Marcus e Vaughn e perguntar sobre onde iriam caçar. O medo toma conta de Marcus e ele vai entrando numa certa paranoia, pois é visível a desconfiança do pessoal, eles dão indícios de que algo está errado e na noite em que a vila festeja saem para a floresta junto com os outros na procura, o desconforto e o desespero predomina até o momento em que finalmente encontram os corpos escondidos.

Até esse ponto da história o filme segue direto e apesar de ser mais atmosférico garante instantes de adrenalina por conta das decisões dos personagens, a partir do momento que são descobertos o rumo da trama toma formas um pouco duvidosas, os habitantes da vila decidem não envolver a polícia e sim promover uma vingança, mas não matando os dois e sim dando uma escolha para Vaughn. Esse tempo em que decidem o que fazer perde um pouco da realidade proposta, mas mesmo assim termina bem retratando até onde o ser humano é capaz de ir num momento de desespero para de algum modo resolver seus problemas.

"Calibre" é um ótimo suspense que se desenvolve com muita tensão e consegue fazer penetrar a angústia e a agonia vivida pelos personagens, a culpa e a perturbação gerada por causa das escolhas em frente ao desespero é terrível e triste, mas eles sabiam que as consequências inevitavelmente mais cedo ou mais tarde chegariam. É interessante como o filme lida com as questões morais e coloca o espectador para refletir sobre o que faria se estivesse na pele deles, é fácil dizer que Vaughn foi passivo enquanto Marcus agiu e decidiu encobrir tudo, o fato é que quando algo inesperado acontece o que predomina é o desespero e ações imprevisíveis. A vida está totalmente nas mãos do acaso e num minuto tudo pode virar de cabeça para baixo colocando os princípios e a moral em xeque.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Pela Janela

"Pela Janela" (2017) dirigido por Caroline Leone é um road movie simples, bonito e delicado, o cotidiano comum e tedioso é retratado com zelo e a naturalidade do desenvolvimento e a mudança nas emoções da protagonista preenchem a tela e nos arrebata sem artifícios e grandes acontecimentos. É a vida acontecendo...
Rosália (Magali Biff) é uma dedicada operária de 65 anos que dedicou a vida ao trabalho em uma fábrica de reatores da periferia de São Paulo. Certo dia acaba demitida e é consolada pelo irmão José (Cacá Amaral), com quem vive. Ele resolve levá-la em uma viagem de carro até Buenos Aires com o objetivo de distraí-la e no país vizinho Rosália vê pela primeira vez um mundo desconhecido e distante de sua vida cotidiana.
No início acompanhamos a rotina de Rosália, desde o despertar, o preparo do café, a ida ao trabalho, seu empenho e responsabilidade na fábrica e novamente retornando à casa e seus afazeres domésticos, ela vive com o irmão José, que está indo para Buenos Aires entregar um carro para a filha de seu patrão, nesse meio tempo Rosália é demitida após a empresa se fundir a novos sócios e com isso novas regras, Rosália é despedida sem rodeios, mas ela ainda tenta no outro dia ser útil ao voltar lá, e é aí que ela sente o baque, sozinha e sem saber o que fazer se aquieta e chora em seu quarto, toda a sua vida era baseada na rotina do trabalho, ela foi moldada a partir disso. Então, o irmão muito preocupado acaba levando-a junto em sua viagem, ele também é devotado ao trabalho e se presta a mando do patrão a uma viagem exaustiva para levar um carro até a Argentina.
Rosália não fala nada sobre o assunto da demissão e José tenta distraí-la, mas as mudanças emocionais de sua irmã são sutis e expressadas em pequeníssimas doses, algo começa a mudar em seu interior quando em um hotel visualiza um simples quadro das cataratas do Iguaçu, e principalmente quando José decide levá-la para conhecer as imensas quedas d'água. Nesse momento o filme atinge uma sensibilidade grandiosa, a cena em que Rosália vai se entregando à força da natureza e deixando-se sentir as emoções que há tempos não sentia ou talvez nunca havia sentido carrega tanta beleza e significado que impressiona o espectador.

Rosália vai aos poucos adentrando e a câmera nos leva junto, sentimos o mesmo que a protagonista, somos tocados pela potência das águas, o som ensurdecedor e as nuvens de vapor que se formam, um espetáculo visual que marca o início da mudança de Rosália, depois disso ela está mais aberta e aproveita a viagem, José lhe diz sobre o como a Argentina e o Brasil apesar de estarem bem pertinhos são diferentes, a língua, por exemplo, e ela acha engraçado e sorri. Vai se deixando levar pelas novidades, pelas pessoas por quais passa e por consequência se renovando. A relação de Rosália com o ambiente é interessante e a incomunicabilidade com os locais rende bons momentos, como o diálogo entre ela e uma moradora de um prédio onde está hospedada, elas não se entendem na totalidade, mas existe uma troca importante e que ajuda na abertura de Rosália para a vida.

"Pela Janela" é um retrato sensível de uma mulher já madura que toma consciência de si própria após muitos anos atrelada e moldada apenas a seu trabalho, é uma história introspectiva e sensível que tem em sua protagonista, Magali Biff, a força maior, seu olhar diante os acontecimentos nos faz ter afeto e sorrir a cada pequena descoberta e olhar seu para com o novo, são momentos sutis, mas imensamente preciosos, como quando ensina bordado para uma moça e seu filho e, especialmente, quando canta a canção "Anahi" junto de seu irmão. Envolve por seus personagens reais e situações cotidianas, é simples e direto, mas ainda assim possui uma intensidade em toda a lenta transformação de Rosália.

terça-feira, 17 de julho de 2018

O Culto (The Endless)

"O Culto" (2017) dirigido por Aaron Moorhead e Justin Benson (Spring - 2014) tem na abertura uma citação de Lovecraft, que diz: "A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte de todos os medos é o medo do desconhecido", e é na atmosfera de criaturas lovecraftianas que o filme se inicia, mas não se engane com o que parece ser simplesmente uma seita de adoração a seres extraterrestres, pois a história é uma reflexão contundente sobre a existência, as repetições, a rotina e o conformismo, de maneira intrigante o roteiro vai se desnovelando, porém sem dar respostas concretas, a percepção é individual.
Dois irmãos, Justin e Aaron, foram criados num culto religioso do qual fugiram quando Justin percebeu a possibilidade da ocorrência de um suicídio em massa. Dez anos depois recebem uma mensagem em vídeo bastante enigmática. Nela, um membro do culto fala de uma "ascensão" iminente e então resolvem regressar ao local aonde eram realizados os cultos em busca de respostas. Mas, ao chegarem, descobrem que o "culto" pode afinal não ser o que pensavam e começam a duvidar, inclusive, se serão bem-vindos.
Após anos longe da comunidade, que supostamente envolvia o suicídio em sua seita, o irmão mais novo Aaron contaminado pelo tédio da vida comum resolve depois de receber uma fita em vídeo falando sobre a "ascensão" voltar com o irmão para descobrir algo, ao chegarem se espantam com a aparência dos membros e, principalmente, Aaron decide que quer ficar, pois acredita que o ar puro, a comida e o modo de vida ali dê algum sentido na vida, com o passar dos dias as atitudes estranhas de todos e sinais confusos da natureza deixam Justin receoso, enquanto Aaron deseja permanecer, os dois cada um com uma perspectiva diferente irão explorar o lugar e acabam se deparando com situações inesperadas e intrigantes. 
O filme carrega uma atmosfera mística de terror e há bastante de ficção científica e fantasia, além do drama que o envolve, muitas metáforas permeiam a obra e a dupla de diretores que desdobram em inúmeras funções conseguem transportar o espectador para esse lugar misterioso e envolvente e dele extrair reflexões existenciais. 

O filme caminha para questões filosóficas, não fica somente nos mistérios que envolvem a seita e as criaturas extraterrestres, existe algo mais poderoso, justamente o desconhecido que fascina e amedronta o ser humano, a busca por respostas dos irmãos só acrescenta na narrativa e amplia as percepções quando se abrem as teias de linhas temporais, os ciclos infinitos, o eterno retorno; a rotina. A angústia e o desespero tomam conta dos irmãos que já não sabem exatamente aonde se encaixam nisto tudo, ao mesmo tempo cresce a curiosidade em tentar prosseguir nesse emaranhado e descobrir algum modo de fugir dali. O que se sucede cabe a cada um interpretar.

"O Culto" é um interessante filme que não fica apenas na fantasia, é um tanto louco pensar nesse processo cíclico em que vivemos, na rotina tediosa e que apesar de buscarmos formas de quebrá-la sempre retornamos a ela, como uma espécie de força que nos impulsiona para o mesmo. Causando um misto de estranhas sensações somos compelidos a refletir sobre essas questões. Um ótimo exemplar de horror/sci-fi que fisga pela inventividade e potência reflexiva. 

*Há uma conexão com um filme anterior dos talentosos Aaron Moorhead e Justin Benson, o também instigante "Resolution" (2012).

quarta-feira, 11 de julho de 2018

A Noite Devorou o Mundo (La Nuit a Dévoré le Monde)

"A Noite Devorou o Mundo" (2018) dirigido pelo estreante Dominique Rocher é um filme que aborda o apocalipse zumbi de forma realista e intimista, o medo do desconhecido, a solidão, a paranoia, tudo muito bem detalhado para que o espectador sinta todas as emoções vividas pelo protagonista.
Após uma noite de festa com muita bebida, Sam (Anders Danielsen Lie) acorda completamente sozinho no apartamento. Ainda confuso ele descobre um terrível acontecimento: a cidade de Paris está tomada por zumbis famintos. Rapidamente ele começa a proteger o prédio em que vive e elabora estratégias para conseguir manter-se vivo em meio a catástrofe. No entanto, ele ainda não tem certeza se é o único sobrevivente neste cenário hostil.
Sam chega ao apartamento da ex-namorada para buscar seus pertences, mas ao entrar lá se depara com uma festa regada a muita bebida, contrariado ele permanece e termina dormindo num quarto após receber uma pancada no nariz, no dia seguinte percebe algo estranho acontecendo e defronta-se com muito sangue no apartamento, de repente pessoas enlouquecidas estão atacando umas as outras e Sam se fecha no apartamento. Sua personalidade introspectiva faz com que aja com calma elaborando algumas etapas de sobrevivência, ele reflete muito nas possibilidades, o silêncio predomina e o olhar de Sam nos leva da agonia à tristeza, da solidão à ação, logo Sam começa a trancar as portas e se isolar no prédio, não há ninguém vivo além dele, todos em volta são mortos-vivos. A incompreensão do evento gera medo e incertezas, tenta armazenar alimentos e vedar os apartamentos com os "zumbis", em nenhum momento ele os ataca ou vai para fora, não tem a coragem que é tão comum em outros filmes e séries que pululam por aí, por isso o filme acerta e ganha boa parte dos espectadores, ao evidenciar um drama mais realista de quem não sabe de fato o que está acontecendo e o que virá.
As tomadas e ângulos de câmera dão a sensação de reflexão e Anders Danielsen Lie é perfeito para o personagem, seu semblante se encaixa neste tipo de desenvolvimento mais introspectivo, vide o depressivo Anders em "Oslo, 31 de Agosto" (2011). Mas isso não quer dizer que ele tenha apenas uma expressão em sua face, ao contrário, é através delas que percebemos suas alterações emocionais e vibrações, ele também é criativo, devido sua formação musical e por isso garante ótimas cenas em que improvisa com diversos objetos transformando os sons em melodias, além de ter duas ótimas cenas que destrói na bateria. 

O filme não faz questão de entregar respostas ou esclarecer o acontecimento, o que de fato importa é a reflexão que a história proporciona ao colocar uma pessoa totalmente sozinha tendo que lidar com uma situação completamente desconhecida e usando criativamente maneiras de sobreviver, até certo ponto Sam consegue se estabelecer e manter uma rotina, mas com o passar dos dias a solidão extrema entrega indícios de paranoia e desespero, sua mente se torna confusa e sua ânsia de sair do prédio é grande e se manifesta de modo caótico. Há passagens bem tensas de confronto consigo próprio e outras de alucinação aflitivas.

"A Noite Devorou o Mundo" é um estudo sobre a condição humana, do quanto de solidão suportamos, do medo dos acontecimentos que não se explicam, das ações desesperadas, do rompimento com a nossa consciência em horas decisivas, da nossa fragilidade e a nossa necessidade de fazer parte de algo. Muitas questões filosóficas se destacam e são evidenciadas com simplicidade e precisão coroada por uma profunda interpretação de Anders Danielsen Lie. Sem ilusões e floreios é um filme que engrandece e se sobressai dentro da temática mortos-vivos!

terça-feira, 10 de julho de 2018

A Livraria (The Bookshop)

"Entre livros, ninguém pode se sentir sozinho."

"A Livraria" (2017) dirigido por Isabel Coixet (Assumindo a Direção - 2014), adaptado do livro homônimo de Penelope Fitzgerald é uma fábula encantadora sobre o amor à literatura, a ambientação e a atmosfera da história fascina e apesar de carecer de alguma profundidade consegue homenagear lindamente a bibliofilia.
No final da década de 50, uma mulher (Emily Mortimer) recém-chegada em uma pacata cidade do litoral da Inglaterra decide abrir uma livraria. Contudo, sua iniciativa é vista com maus olhos pela conservadora comunidade local, que passa a se opor tanto a ela quanto ao seu negócio, obrigando-a lutar por seu estabelecimento.
Florence é uma viúva que coloca em prática seu desejo de abrir uma livraria numa pacata e retrógrada cidadezinha inglesa, ao mesmo tempo que é uma mulher delicada e paciente é também persistente e corajosa, ela então precisa enfrentar Violet Gamart (Patricia Clarkson), uma aristocrata que fica extremamente incomodada com sua ousadia e faz de tudo para que não consiga sucesso, inventa burocracias e usa de seu poder para isso, só que esse lado da história não é tão relevante, o que é maravilhoso de verdade são os habitantes que aos poucos vão sendo inseridos ao universo da literatura, ao abrir o local as pessoas não acreditavam que fosse dar certo, pois ali ninguém tinha o hábito da leitura, eram pessoas simples, mas conforme os dias a livraria começa fazer enorme sucesso, especialmente, quando um novo romance surge, "Lolita", de Nabokov, as vitrines logo se enchem desses exemplares e a população sente grande interesse pelo polêmico livro. Outro ponto a se destacar é a relação que Florence estabelece com Christine (Honor Kneafsey), uma garotinha esperta que é dona de frases incríveis e que por fim leva adiante o que tanto Florence sonhou, outro personagem interessante, mas não tão bem desenvolvido é Edmund Brundish (Bill Nighy), um recluso senhor e o único leitor do local, que no decorrer se apaixona por Florence e sua determinação e tenta ajudá-la a manter a livraria. Edmund também se encanta pela obra de Ray Bradbury, quando por ocasião Florence envia o exemplar de Fahrenheit 451. A relação dos dois se estreitam à medida que Florence envia os exemplares e Violet decide de fato acabar com seu estabelecimento. O roteiro fica na superficialidade, por exemplo, Violet deseja montar um centro cultural apenas para se aparecer e não porque tem amor envolvido, o poder que ela detém sobre todos e as maneiras mesquinhas com que age para derrubar Florence acaba ficando para segundo plano, pois o que realmente se sobressai é a beleza da ambientação, as estantes repletas de livros, a livraria em si esbanjando charme, a natureza ao redor, a sensibilidade de Florence, a sua inocência em meio a sua coragem, e todas as pessoas que de algum modo foram tocadas por seu sonho.

Aos amantes de literatura fará mais efeito, autores e títulos citados para conhecer, outros tão aclamados que na época eram novidade, as capas, as estantes, isso o filme exala com perfeição e mantém com encanto durante todo o tempo, o idealismo de Florence é também marcante mesmo ela tendo uma personalidade doce, e sua visão para introduzir livros que seriam grandes sucessos potencializa a alma da história. 
Dois personagens se sobressaem, a pequena Christine que possui personalidade forte e garante ótimos diálogos e que é impregnada sem saber pelo espírito de Florence. Um livro em especial é indicado a ela e isso fará com que dê seguimento ao sonho tão almejado de sua amiga. Outro é o coadjuvante James (Milo North), um jornalista desempregado que apresenta maneirismos esquisitos e que de mansinho se alia a Violet, muitos dos personagens não são explorados e suas atitudes se perdem, como no caso de Sr. Brundish, que inicialmente é recluso por conta de seu passado e odiar as fofocas sobre ele, mas que no decorrer se transforma em uma caricatura. 

"A Livraria" é uma fábula agradável, aconchegante e uma linda homenagem à literatura, nos arrebata pelo visual e é impossível não querer ir atrás do livro adaptado e todos os títulos citados, vasculhar alguns sebos e livrarias, arrumar sua estante e apreciar esse hábito tão delicioso que nos faz viajar, refletir e que nos afasta da solidão. 

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Direções (Posoki)

 "A Bulgária é o país dos otimistas. Todos os realistas e pessimistas já foram embora"

"Direções" (2017) dirigido por Stephan Komandarev (O Mundo é Grande e a Salvação Espreita ao Virar a Esquina - 2008) é um filme excelente que retrata com peso as mazelas que assolam a Bulgária, corrupção, desemprego, injustiças, violência, uma crítica sócio-política pungente e humana, somos inseridos em um cenário desesperançoso e doloroso que inevitavelmente conversa com problemas que fazem parte de tantos outros lugares do mundo.
Durante uma reunião com o gerente de seu banco, um taxista descobre que a taxa que deveria pagar para obter um empréstimo dobrou. Ele quer preservar sua honestidade, mas não vê saída para sua situação. Desesperado, atira no gerente e depois em si próprio, desencadeando um grande debate nacional sobre como o desespero tomou conta da sociedade civil. Enquanto isso, cinco outros motoristas de táxi e seus respectivos passageiros se movem pela noite na esperança de encontrar um caminho mais claro. Um road movie sobre a despótica Bulgária contemporânea. 
A crise econômica agravante gera o declínio de valores, o prólogo nos apresenta uma inquietante história que repercutirá e fará com que as pessoas reflitam os seus modos de vida, Mihail (Vassil Vassilev) trabalha como taxista para complementar a renda e conseguir pagar as suas dívidas, mas cada vez mais ele se vê esmagado pelo sistema, confrontado por um agente que pretende penhorar seus bens decide recorrer a um empréstimo, porém o banqueiro exige o dobro da quantia inicialmente pedida como suborno e em um momento de desespero Mihail mata o banqueiro e logo após atira em sua cabeça, essa ação desencadeia debates nas rádios e enquanto isso vemos outros cinco taxistas, que se desdobram para complementar a renda ou mesmo por não ter emprego em suas áreas, passamos por diversas pessoas, a maioria desiludida e insatisfeita, alguns clientes mal-educados, já outros precisando de afeto e ajuda, dos taxistas o que mais se destaca é o professor de educação física que salva um homem do suicídio por achar que sua vida é uma vergonha, outro ainda, o corrupto, que ao ver um passageiro rico adultera o taxímetro e quando lhe diz o valor, o homem enraivecido o ataca e acaba transformando a situação num risível desastre. Há ainda o velhinho que acabara de perder seu filho e sofre por ninguém se importar, uma taxista que encontra um ex-colega que destruiu sua vida e deseja vingança e um padre que ao levar um homem até o hospital para receber um novo coração tenta lhe incutir esperança. 

O filme contém cenas e diálogos memoráveis, retrata com precisão a situação do país e o declínio dos valores, as pessoas sofrem e se viram como podem, as dívidas, a vergonha e a revolta ocasionadas pela crise dá espaço também para a intolerância e infelizmente atinge parte da grande população, a sensação de desilusão é o que impera e poucas são às vezes que a sensibilidade aparece, em alguns personagens ela está mais evidente, já em outros as decepções trataram de acobertá-la. 

"Direções" retrata uma Bulgária falida, mas muitos dos problemas retratados assolam inúmeros países do mundo, a partir do ato de Mihail a população começou a repensar a desigualdade e o como as leis que por mais que mudem nunca os beneficia, só ocasiona dor, raiva e momentos de desespero.