quarta-feira, 15 de abril de 2015

José e Pilar

"Todos os tempos têm coisas boas, todos os tempos têm coisas más, mas como comunidade a espécie humana é um desastre."

"José e Pilar" (2010) é um documentário dirigido por Miguel Gonçalves Mendes que registra os últimos anos de vida do mestre José Saramago. A partir do registro do dia-a-dia da relação entre José Saramago e a jornalista espanhola Pilar Del Rio, acompanhamos de forma intimista o casal em sua casa nas Ilhas Canárias e em suas viagens pelo mundo. O ponto de partida é o processo de criação e promoção do romance "A Viagem do Elefante", desde o momento da construção da história em 2006 até o lançamento do livro no Brasil em 2008. A ficção do romance reflete no percurso do próprio autor sendo a dura e custosa viagem do elefante um espelho de seus desafios pessoais, entre a doença, o trabalho e o amor por sua esposa.
É um documentário que esbanja amor, respeito e dedicação, Pilar conheceu Saramago em 1986 e desde então ganhou todas as dedicatórias: "O Homem Duplicado" (A Pilar, até ao último instante), "Ensaio sobre a Lucidez" (A Pilar, os dias todos), "As Intermitências da Morte" (A Pilar, minha casa), "As Pequenas Memórias" (A Pilar, que ainda não havia nascido, e tanto tardou a chegar), "A Viagem do Elefante" (A Pilar, que não deixou que eu morresse), "Caim" (A Pilar, como se dissesse água). Acompanhá-los é um imenso privilégio, uma experiência riquíssima, Pilar é uma mulher de fortes opiniões e é uma extensão de Saramago, este que é um ser melancólico e de extrema sensibilidade. Um relacionamento realmente encantador, inspirador e raro. Nada do que Saramago diz é à toa, a cada palavra, pensamento exposto podemos compreender o como ele vê o mundo. 
Sabe-se que Saramago começou a se dedicar à escrita tardiamente, aos 60 anos, e só em 1998 com o prêmio Nobel é que o escritor ganhou uma notoriedade maior e com isso veio viagens, palestras, sessões de autógrafos ao redor do mundo, essas coisas contribuíram imensamente para sua enfermidade. Em um momento em que estava bastante debilitado, Saramago diz: "Se todas as pessoas boas, se todas as pessoas amantes da beleza, se todas as pessoas amantes do justo e do honesto, pudessem reunir esforços e oporem-se contra a barbaridade do mundo, o mundo seria capaz de dignificar o Homem ao Ser Humano que somos. E o mundo, quiçá, poderia ter um futuro."
É de se questionar a rotina corrida do escritor e o como Pilar lidava com isso, "A palavra descanso não faz parte do nosso dicionário vital...Teremos toda a eternidade para descansar. Esta é a vida.", diz a jornalista. Pode parecer prepotência às vezes, mas Saramago apesar de sua avançada idade não desejava se prostrar numa cadeira. E ele enfatizava: "Se eu tivesse morrido antes de conhecer a Pilar tinha morrido muito mais velho do que eu sou". José e Pilar são opostos que se complementavam e que precisavam um do outro, "Eu tenho ideias para romances. Ela tem ideias para a vida. E eu não sei o que é mais importante."

Para além do romance que o documentário retrata, o dia a dia, discussões banais, políticas ou filosóficas, projetos, viagens, o que é mais interessante certamente, principalmente para os leitores é quando Saramago coloca suas ideias em voga.
O tema religião é abordado em alguns momentos e ele disserta que muitos pensam que estando velho ou doente mudou sua concepção de Deus, mas para ele Deus simplesmente não existe, este conceito está cravado na cabeça das pessoas por causa do medo de morrer. Claro, quem quiser acreditar, que acredite, mas a verdade é que nascemos, crescemos e morremos, só isso! "Deus não precisa do homem para nada, exceto para ser Deus. Cada homem que morre é uma morte de Deus. E quando o último homem morrer, Deus não ressuscitará."
Sem dúvidas um apanhado de reflexões surgem, um amontoado de ideias e uma vontade imensa de saber mais e mais sobre esse incrível escritor. Certas partes parecem forçadas, mas é preciso pegar o essencial do filme, os diálogos preciosos e passagens dotadas de muita sensibilidade.

"José e Pilar" traz uma figura sarcástica, polêmica, emblemática e questionadora, um homem capaz de nos inspirar. O romance retratado é deveras lindo e único, dois seres contrastantes que se complementam. A oportunidade de ver o processo criativo do escritor é maravilhoso, sua alma desassossegada, sempre com ideias. Algumas passagens são bem emocionantes, como quando chorou ao lado de Fernando Meirelles ao assistir a adaptação do livro "Ensaio sobre a Cegueira".
É uma bela obra que nos aproxima de Saramago, fazemos parte da rotina, do romance, de tudo, somos atingidos em cheio por essa história.

"Um dia desaparece o sol... e acabou. E o universo nem sequer se dará conta de que nós existimos. O universo não saberá que o Homero escreveu a Ilíada."

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