segunda-feira, 20 de abril de 2015
Bekas - Para o Alto e Avante (Bekas)
"Bekas" (2012) de Karzan Kader é um filme iraquiano extremamente belo, simples e puro.
Dois irmãos desabrigados, Zana de 7 anos e Dana de 10 anos, vivem no limite da sobrevivência. Eles tem um deslumbre do Superman através de um buraco na parede no cinema local, daí decidem sair de sua aldeia curda e ir para a América acreditando que, uma vez lá, o super-herói poderá resolver todos os seus problemas. Zana começa a fazer uma lista de pessoas que ele vai pedir para o Superman punir (uma delas é Saddam Hussein). Dana, por outro lado, pensa no que eles precisam para chegar lá: dinheiro, passaportes, transporte e uma maneira de atravessar a fronteira. Infelizmente, eles não têm nada disso. Graças ao seu trabalho árduo como engraxates conseguem juntar dinheiro suficiente para comprar um burro (que eles chamam de Michael Jackson) e com o qual eles decidem partir para realizar seu sonho. Por trás desta cativante odisseia encontra-se um retrato íntimo do conflito curdo no Iraque.
O diretor Karzan Kader explica a intenção de seu filme: "O Curdistão está em guerra há tanto tempo que se tornou o estado normal lá. Eu quero que esta história seja uma voz do povo curdo para o resto do mundo."
A trama se passa na década de 1990, o auge da perseguição de Saddam Hussein aos curdos. Os irmãos órfãos Zana e Dana passam por muitas dificuldades e tentam sobreviver em meio ao caos. A imaginação é uma grande aliada, Zana se encanta com o Superman quando o vê através de um buraco no cinema, e depois daí deseja ir atrás dele na América (EUA) e fazer alguns pedidos, como ressuscitar seus pais e se livrar de Saddam Hussein. Zana convence o irmão de que tudo pode melhorar ao chegarem lá. Conseguem algum dinheiro engraxando sapatos e compram um burro que os levará para o tão sonhado lugar, porém precisarão de muita sorte e o caminho fará com que percebam que o amor entre eles é o maior poder que existe, além da determinação e sensibilidade.
As cenas são dotadas de simplicidade e ingenuidade, Zana fala gritando o filme todo, o que acaba irritando, mas é completamente autêntico e natural, o menino segura o filme todo, sua imaginação e inocência misturada a miséria e ignorância gera sentimentos diversos, já Dana tem um jeito mais sereno, por ser maior é difícil crer que também embarcaria nessa viagem, mas os dois não tem nada a perder, e por mais que tudo seja impossível e irreal buscam e vão sem medo, nunca são retratados como coitadinhos, há firmeza, decisões e uma cumplicidade que emociona.
Com atores amadores, o filme é inspirado nas experiências vividas pelo próprio cineasta quando fugiu com sua família nos anos 90 para a Suécia.
Cativante, triste e inspirador, "Bekas" nos faz relembrar de valores essenciais e do que realmente importa na vida. Sozinhos somos frágeis e é fácil nos quebrar, mas quando estamos juntos de alguém que nos ama somos mais fortes, e o caminho para os sonhos se tornam mais especiais.
É um retrato emocionante e por vezes bem-humorado da inocência, da amizade, e do elo formado por essas duas crianças que vivem em um local marcado pela guerra e pela pobreza.
quinta-feira, 16 de abril de 2015
Pais e Filhos (Soshite Chichi ni Naru)
"Pais e Filhos" (2013) de Hirokazu Koreeda (Boneca Inflável - 2009) questiona os laços de sangue, algo que damos tanto valor e que na verdade diz tão pouco, até porque o amor e o carinho nasce por diversos aspectos. No filme acompanhamos Ryota (Masaharu Fukuyama), um arquiteto de uma grande empresa, workaholic acaba deixando sua família em segundo plano, sua esposa Midori (Machiko Ono) e seu filho Keita (Keita Ninomiya). Eles têm tudo, uma vida boa, um grande apartamento, mas falta o essencial, o calor, o afeto. Ryota é narcisista, obcecado com o dinheiro e pelo futuro do seu filho, cujo já traçou e leva isso rigidamente, mas o menino é ingênuo e tem uma personalidade serena, o que acaba afastando-os mais ainda. Um dia Midori e Ryota ficam sabendo que houve uma troca de bebês no hospital após o nascimento de Keita, e que este não é filho deles, então começa uma busca e encontram a família da qual o filho biológico está. Segue-se uma confusão psicológica, Midori não se conforma em não ter desconfiado e Ryota diz que agora percebe o porquê do filho ser tão diferente dele. O outro casal Yudai (Lily Franky) e Yukari (Yoko Maki) pertencem a outra camada social, aparentemente não ficam tão aterrorizados com a notícia, pretendem tirar o máximo de dinheiro do hospital e conforme o desenrolar aceitam as propostas de Ryota. É uma família feliz, grande e calorosa.
A maneira com que o longa compara as duas famílias é interessante, pois demonstra o quão importante na vida é manter-se consciente do que está passando para o filho, por exemplo, Ryota vinha de uma criação complicada, sua mãe abandonou o lar por motivos dos quais não são explorados pela história, e seu pai acabou se casando novamente, tempos depois ele foge e quebra o vínculo com a família, isso reflete no como cria Keita, sob punhos de aço, querendo que ele seja um campeão aos cinco anos de idade, não deixando ele ser uma criança. Já Yudai permite que seus filhos brinquem, baguncem, sejam eles mesmos, não pressiona, pois o tempo de fazer escolhas chegará, além de conseguir expressar amor, coisa que Ryota não faz. Os meninos são diferentes entre si, Keita é tímido e ainda vive na inocência, Ryusei (Shogen Hwang) é mais ativo, esperto e questionador.
As famílias vão se organizando e convivendo com seus respectivos filhos, mas o fato é que o laço de sangue não importa, todo mundo sofre. O que foi feito está feito, nada será como antes e o melhor a fazer é lidar com a situação de forma menos egoísta possível, pensando nas crianças.
As sutilezas expostas nos emocionam, é completamente real a situação retratada. Uma das cenas mais lindas é a que transforma Ryota, quando ele olha as fotos tiradas por Keita sem ele saber, daí parece que o coração dele sente realmente o amor.
O longa reflete sobre o quão importante é saber que coisas materiais não significa amar, o maior presente é o tempo, pois mais a frente quando eles se tornarem adultos lembrarão somente dos momentos, como um belo fim de semana acampando, pescando, um sorriso, uma brincadeira, um abraço extremamente afetuoso, uma conversa, enfim, detalhes, miudezas que fazem toda a diferença na formação de um ser humano.
Cada vez menos se convive com os filhos, são inúmeros meios de entretê-los e quando se reúnem a frieza toma conta, é cada um no seu canto, o afeto, o 'eu te amo' é raro. Justamente por isso que é tão gostoso ver a família de Yudai, eles cultivam a simplicidade e a relação se torna descomplicada e natural.
"Pais e Filhos" é belíssimo e serve como reflexão para nos fazer enxergar o que realmente importa para uma criança, questionar laços de sangue e também para valorizar as pequenas coisas cotidianas.
As pessoas vivem estressadas e acabam por descontar em alguém, quase sempre nos filhos e não pensam no que isso pode acarretar, talvez esse filho no futuro faça isso com seu próprio filho e assim por diante. É piegas dizer que o amor continua sendo o caminho mais fácil, mas é a pura verdade, só assim os caminhos se tornam um só e a dificuldade desparece.
quarta-feira, 15 de abril de 2015
José e Pilar
"Todos os tempos têm coisas boas, todos os tempos têm coisas más, mas como comunidade a espécie humana é um desastre."
"José e Pilar" (2010) é um documentário dirigido por Miguel Gonçalves Mendes que registra os últimos anos de vida do mestre José Saramago. A partir do registro do dia-a-dia da relação entre José Saramago e a jornalista espanhola Pilar Del Rio, acompanhamos de forma intimista o casal em sua casa nas Ilhas Canárias e em suas viagens pelo mundo. O ponto de partida é o processo de criação e promoção do romance "A Viagem do Elefante", desde o momento da construção da história em 2006 até o lançamento do livro no Brasil em 2008. A ficção do romance reflete no percurso do próprio autor sendo a dura e custosa viagem do elefante um espelho de seus desafios pessoais, entre a doença, o trabalho e o amor por sua esposa.
É um documentário que esbanja amor, respeito e dedicação, Pilar conheceu Saramago em 1986 e desde então ganhou todas as dedicatórias: "O Homem Duplicado" (A Pilar, até ao último instante), "Ensaio sobre a Lucidez" (A Pilar, os dias todos), "As Intermitências da Morte" (A Pilar, minha casa), "As Pequenas Memórias" (A Pilar, que ainda não havia nascido, e tanto tardou a chegar), "A Viagem do Elefante" (A Pilar, que não deixou que eu morresse), "Caim" (A Pilar, como se dissesse água). Acompanhá-los é um imenso privilégio, uma experiência riquíssima, Pilar é uma mulher de fortes opiniões e é uma extensão de Saramago, este que é um ser melancólico e de extrema sensibilidade. Um relacionamento realmente encantador, inspirador e raro. Nada do que Saramago diz é à toa, a cada palavra, pensamento exposto podemos compreender o como ele vê o mundo.
Sabe-se que Saramago começou a se dedicar à escrita tardiamente, aos 60 anos, e só em 1998 com o prêmio Nobel é que o escritor ganhou uma notoriedade maior e com isso veio viagens, palestras, sessões de autógrafos ao redor do mundo, essas coisas contribuíram imensamente para sua enfermidade. Em um momento em que estava bastante debilitado, Saramago diz: "Se todas as pessoas boas, se todas as pessoas amantes da beleza, se todas as pessoas amantes do justo e do honesto, pudessem reunir esforços e oporem-se contra a barbaridade do mundo, o mundo seria capaz de dignificar o Homem ao Ser Humano que somos. E o mundo, quiçá, poderia ter um futuro."
É de se questionar a rotina corrida do escritor e o como Pilar lidava com isso, "A palavra descanso não faz parte do nosso dicionário vital...Teremos toda a eternidade para descansar. Esta é a vida.", diz a jornalista. Pode parecer prepotência às vezes, mas Saramago apesar de sua avançada idade não desejava se prostrar numa cadeira. E ele enfatizava: "Se eu tivesse morrido antes de conhecer a Pilar tinha morrido muito mais velho do que eu sou". José e Pilar são opostos que se complementavam e que precisavam um do outro, "Eu tenho ideias para romances. Ela tem ideias para a vida. E eu não sei o que é mais importante."
Para além do romance que o documentário retrata, o dia a dia, discussões banais, políticas ou filosóficas, projetos, viagens, o que é mais interessante certamente, principalmente para os leitores é quando Saramago coloca suas ideias em voga.
O tema religião é abordado em alguns momentos e ele disserta que muitos pensam que estando velho ou doente mudou sua concepção de Deus, mas para ele Deus simplesmente não existe, este conceito está cravado na cabeça das pessoas por causa do medo de morrer. Claro, quem quiser acreditar, que acredite, mas a verdade é que nascemos, crescemos e morremos, só isso! "Deus não precisa do homem para nada, exceto para ser Deus. Cada homem que morre é uma morte de Deus. E quando o último homem morrer, Deus não ressuscitará."
Sem dúvidas um apanhado de reflexões surgem, um amontoado de ideias e uma vontade imensa de saber mais e mais sobre esse incrível escritor. Certas partes parecem forçadas, mas é preciso pegar o essencial do filme, os diálogos preciosos e passagens dotadas de muita sensibilidade.
"José e Pilar" traz uma figura sarcástica, polêmica, emblemática e questionadora, um homem capaz de nos inspirar. O romance retratado é deveras lindo e único, dois seres contrastantes que se complementam. A oportunidade de ver o processo criativo do escritor é maravilhoso, sua alma desassossegada, sempre com ideias. Algumas passagens são bem emocionantes, como quando chorou ao lado de Fernando Meirelles ao assistir a adaptação do livro "Ensaio sobre a Cegueira".
É uma bela obra que nos aproxima de Saramago, fazemos parte da rotina, do romance, de tudo, somos atingidos em cheio por essa história.
"Um dia desaparece o sol... e acabou. E o universo nem sequer se dará conta de que nós existimos. O universo não saberá que o Homero escreveu a Ilíada."
segunda-feira, 13 de abril de 2015
O Abismo Prateado
"O Abismo Prateado" (2011) dirigido por Karim Aïnouz (Praia do Futuro - 2014) é um filme bem intimista inspirado na canção "Olhos nos Olhos" de Chico Buarque.
Violeta (Alessandra Negrini) é deixada pelo seu marido Djalma (Otto Jr.), que após um mergulho no mar toma a difícil decisão. A informação chega por uma mensagem de voz, fria e com a repetição de um 'não te amo mais', Violeta não consegue seguir com sua rotina, fica sem saber o que fazer e a única coisa que quer é compreender o porquê foi abandonada. Ao chegar em casa diz para seu filho que irá viajar, e o que vem a seguir são momentos de imensa solidão e desespero, dos quais a levam por inúmeros lugares durante a madrugada. Ambientado no Rio de Janeiro, a protagonista vaga pelas ruas, se hospeda num hotel, extravasa em uma boate e anda pelas areias da praia, lugar em que parece se acalmar ao encontrar uma garotinha e seu pai Nassir, um pintor de parede, lá eles trocam algumas palavras e cria-se rapidamente uma empatia.
Alessandra Negrini está maravilhosa, uma mulher frágil que expõe todas as fases de sua dor ao ser abandonada sem mais nem menos, pois para ela o relacionamento estava perfeito, principalmente pelo apartamento recém-comprado em Copacabana. A mensagem fria e curta a faz perder o chão e enfrentar um abismo profundo, do qual perde-se por uma noite toda. O roteiro se sustenta nas sensações vividas por Violeta e várias vezes o filme fica vago justamente por ela estar perdida. Nós a acompanhamos nesta jornada incerta desde o primeiro impacto, vemos os seus olhos assustados, sua inquietação, seus questionamentos internos, e a sua ansiedade. Uma das cenas mais lindas é a dança na boate ao som de "Maniac" e também o choro à beira-mar. O silêncio sufoca e nos perdemos junto a ela. Difícil não se emocionar! Mas tudo isso passa, o choro cessa, o dia nasce; ainda é dolorido, mas a vontade de seguir volta e o sentimento de reerguer-se vem à tona.
Um filme poético, intimista e feminino, retrata o drama de ser abandonada e todas as intensidades da dor e do desespero, mas assim como na canção de Chico Buarque o refazer-se acontece.
"Quando você me quiser rever, já vai me encontrar refeita, pode crer. Olhos nos olhos, quero ver o que você faz. Ao sentir que sem você eu passo bem demais."
quarta-feira, 8 de abril de 2015
Uma Vida Comum (Still Life)
"Uma Vida Comum" (2013) dirigido por Uberto Pasolini é um filme delicado apesar de tratar de um tema sombrio, o fim da vida. Com toques de humor negro e sensibilidade a história se torna uma bela reflexão.
Obcecado por organização e meticuloso ao extremo, John May é um inventariante encarregado de encontrar o parente mais próximo de pessoas que morreram sozinhas. Quando o seu departamento é reduzido, John concentra esforços em seu último caso, o que o leva a uma viagem libertadora que lhe permite finalmente começar a viver a vida. O personagem John May (Eddie Marsan) é um ser humano peculiar, esquisito e recluso em si mesmo, seu emprego é encontrar parentes, pessoas próximas de quem acabou falecendo completamente só. Ele vai à casa da pessoa, examina com todo cuidado e traça um perfil e possíveis relações, a maioria sem resultado. De repente, fica sabendo de sua demissão após 22 anos de dedicação, John cuida do enterro e de todos os trâmites e isso acaba sempre dando prejuízo ao chefe que diz que a melhor alternativa é cremar os corpos e espalhar em um jardim.
A vida de John é o trabalho, ele tem um ritual em que come diariamente a mesma coisa, folheia seu álbum de fotografias com os mortos dos quais realizou o enterro e arruma sua coleção de CD's que utiliza nos velórios.Três dias antes de seu desligamento do emprego ele vai tentar resolver o caso Billy Stoke, que descobre ser seu vizinho, um homem que vivia sozinho rodeado por garrafas de bebidas alcoólicas. John coleta pertences que possam ajudar a encontrar a família e avisar sobre o ocorrido. Isso tudo acaba mudando a forma com que vê o mundo, ele precisa viajar e convencer a filha de Billy a se despedir do corpo. A integração com um mundo novo o faz experimentar perspectivas inéditas, a demissão e a busca pela família de seu último caso o modifica. Eddie Marsan está esplêndido, um personagem todo contido, melancólico, mas que mesmo assim ilumina por ser tão sensível.
É triste e até dolorido pensar no medo de ser esquecido, mas o fato é que por mais que sejamos sozinhos deixamos vestígios ao longo do caminho que percorremos, detalhes particulares de nossa personalidade, fotografias e outras tantas coisas que dizem muito sobre nós. Querendo ou não criamos relações e vínculos necessários, familiares, pessoas do trabalho, amigos passageiros ou duradouros, etc...
O maior problema é que a morte não é um assunto que gostamos de falar, mas é inevitável, como dizem: "a morte é a única certeza que temos", portanto aproveitemos as belezas imensuráveis que a vida nos proporciona e os afetos construídos.
Assim como seus "clientes" John estava morto, mas em vida, e isso é o pior, ele estava alheio a tudo, sem desejos, ambições e paixões. Mas, felizmente em dado momento enfim despertou-se. O filme nos faz questionar o nosso próprio medo ao lidar com o tão temido fim. A trajetória de John May me lembrou a seguinte frase de Montaigne:
"Qualquer que seja a duração de nossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na quantidade de duração e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido bastante."
"Uma Vida Comum" é um filme simples que cativa pelo personagem e por chegar bem próximo de nós. Um belo exemplar que reflete sobre o morrer!
segunda-feira, 6 de abril de 2015
Magical Girl
"Magical Girl" (2014) dirigido pelo espanhol Carlos Vermut é um filme que surpreende pela trama bem elaborada e completamente hipnótica.
Alicia (Lucía Pollán) é uma criança doente que sonha com o vestido da série japonesa "Magical Girl Yukiko". Luis (Luis Bermejo), seu pai, fará de tudo ao seu alcance para consegui-lo. Durante sua busca seu destino se cruza com Bárbara (Bárbara Lennie), uma jovem atraente e com transtornos mentais, além de Damián (Damián José Sacristán), um professor aposentado que possui um passado conturbado. Luis, Bárbara e Damián ficarão envolvidos em uma obscura teia de chantagens, onde instintos e razão serão testados em uma luta trágica.
Alicia (Lucía Pollán) é uma criança doente que sonha com o vestido da série japonesa "Magical Girl Yukiko". Luis (Luis Bermejo), seu pai, fará de tudo ao seu alcance para consegui-lo. Durante sua busca seu destino se cruza com Bárbara (Bárbara Lennie), uma jovem atraente e com transtornos mentais, além de Damián (Damián José Sacristán), um professor aposentado que possui um passado conturbado. Luis, Bárbara e Damián ficarão envolvidos em uma obscura teia de chantagens, onde instintos e razão serão testados em uma luta trágica.
Alicia é uma garota que sabe que tem pouco tempo de vida e a única coisa que deseja do pai é a sua companhia e amor, mas, Luis, um professor de literatura desempregado está cheio de preocupações tentando manter a casa vendendo sua coleção de livros, quando descobre que a filha é fã de um anime e que deseja um vestido, cujo exemplar é único e caríssimo, não vê obstáculos para garantir o presente. Luis é vítima do desemprego e sofre uma grande pressão devido ao desespero de cuidar de sua filha doente, então ele não medirá consequências e a sua descida ao submundo acontece lentamente culminando em algo trágico. Fica claro que o maior presente para Alicia é a companhia de seu pai, este que está tão ocupado em conseguir a qualquer custo o vestido para ela.
A personagem Bárbara, uma mulher perturbada, ao acaso se depara com Luis e fragilizada se entrega a ele, porém Luis vê em Bárbara a possibilidade de ganhar dinheiro, a chantageia dizendo que se não der uma quantia irá revelar o vídeo que gravou dos dois no celular ao marido dela. Vulnerável e passiva vai atrás de conseguir esse dinheiro e abre-se uma nova porta na história, intrigante e cheia de mistérios, compreender essa mulher é impossível, até porque o filme não quer que a decifremos, vemos pequenas dicas e vamos associando. Sem dúvidas uma personagem memorável e que fascina, é um misto de beleza, frieza, tristeza e fragilidade.
Damián, ex-professor de matemática e ex-presidiário está ligado a um incidente que ocorreu a Bárbara na época da escola e quando a reencontra a ajuda, ele é um ser humano que pouco se importa, já viu o bastante e o seu único elo afetivo é Bárbara.
A narrativa do filme é diferenciada e não dá respostas, o espectador precisa recorrer à imaginação, é uma grande sacada que nos inquieta. Criativo e impactante é uma experiência interessante em meio a tantas mesmices que são lançadas.
Vale destacar a estética que é bem apurada e as atuações brilhantes, o conjunto todo está perfeito, e também a bela trilha sonora, enfatizando a canção "La Niña de Fuego" de Manolo Caracol que acerta em cheio com o teor dramático.
"Magical Girl" é uma excelente amostra do cinema espanhol contemporâneo, ele seduz o espectador e não se torna esquecível, são personagens desesperados, como Luis, uma pessoa comum e de coração bom que se transforma num alguém de sangue frio por causa das circunstâncias que o rodeiam, uma situação vai desencadeando outra e por fim acaba não restando nada. Vale dar uma conferida nesta obra original!
sábado, 4 de abril de 2015
A Garota que Anda à Noite (A Girl Walks Home Alone at Night)
"A Girl Walks Home Alone at Night" (2014) dirigido pela estreante Ana Lily Amirpour é um filme americano, mas a história se passa no Irã, numa cidade fictícia chamada Bad City. Coisas estranhas estão acontecendo em Bad City. A cidade fantasma iraniana, lar de prostitutas, drogados, cafetões e outras almas sórdidas, é um bastião da depravação e da falta de esperança, onde uma jovem vampira persegue seus habitantes mais desagradáveis. Porém, quando um garoto conhece uma garota, uma história de amor incomum começa a nascer.
Ao mesmo tempo em que o longa renova a temática vampírica, ele resgata alguns elementos primordiais, como evidenciar a essência gótica e melancólica, cuja fotografia em preto e branco só enaltece, o jogo de luzes e sombras é fantástico e casa perfeitamente com a trilha sonora que é outra grande marca do filme. É simples e por isso mesmo pode parecer vago, porém é preciso estar alerta para os detalhes e se deixar levar pela sensação que o filme provoca.
Arash (Arash Marandi) sofre com problemas financeiros por conta do pai viciado em heroína, enquanto a vampira (Sheila Vand) sai pelas ruas em busca de sangue e aproveita para dar uma de justiceira atacando os cidadãos fora da lei. Quando os dois por coincidência se conhecem, o encanto acontece e dá início a um romance atípico.
O longa é silencioso e permeado de mistérios, conhecemos um pouco da vida de Arash, mas não sabemos muito do restante dos personagens. A figura enigmática da vampira de burca é algo bastante interessante, é frágil mas também assombrosa.
O filme é baseado numa graphic novel da cineasta e também num curta de 2011 que ela dirigiu. É uma história que passeia pelos velhos clichês envolvendo vampiros, mas que traz uma nova roupagem, principalmente por ser ambientada em uma pequena cidade abandonada do Irã, lugar sombrio repleto de seres decadentes e violentos.
A trilha sonora colabora imensamente para a apreciação, músicas dos anos 80 e canções iranianas fazem o diferencial nas cenas, que em sua maioria são estáticas.
É um filme cult que proporciona uma nova experiência para admiradores do tema, e assim como "Only Lovers Left Alive" - 2013 de Jim Jarmusch, merece elogios e o devido reconhecimento.
Com uma estética impecável, é um conto de horror que envolve uma série de simbolismos. É melancólico e muito intrigante!
sexta-feira, 3 de abril de 2015
14 Estações de Maria (Kreuzweg)
"14 Estações de Maria" (2014) dirigido por Dietrich Brüggemann é um longa alemão sobre o dogmatismo, o fervor e o fanatismo religioso, sem dúvidas uma crítica precisa e eficaz. Composto de 14 planos, o longa mostra as etapas vividas pela personagem Maria que correspondem a Via Crúcis de Jesus Cristo, ela se dedica a uma vida de privações e se sacrifica na esperança que seu irmão menor possa se curar da incapacidade de falar. Maria encontra-se presa entre dois mundos. Na escola, a jovem de 14 anos tem todos os interesses típicos da adolescência, mas quando está em casa com sua família, ela segue os ensinamentos da Fraternidade São Pio XII e sua interpretação tradicionalista do catolicismo. Tudo o que Maria pensa e faz deve ser examinado diante de Deus. E já que o Senhor é um pastor rigoroso, ela vive em constante medo de cometer alguma má conduta. Enquanto a mãe de Maria segue uma linha dura e obriga sua filha a ficar no caminho da justiça, o seu pai é muitas vezes reticente e se afasta em momentos críticos. Os conflitos tornam-se intensos. Desesperada para agradar a todos, Maria logo se vê num fogo cruzado. Como ela pode conciliar seus sentimentos por um colega de classe com o seu voto de manter a pureza do coração em seu amor por Deus? Será que o Senhor exige um sacrifício enorme para que seu irmão possa ser curado de sua doença?
No início do filme acompanhamos um padre ensinando adolescentes que logo receberão a crisma a ensinamentos básicos, é uma cena de aproximadamente 15 min em câmera estática, a conversa é uma lavagem cerebral e é impossível não se sentir desconfortável. Maria e seus colegas estão na fase das descobertas e o caminho ao reino de Deus pode ser desviado a qualquer instante, pensamentos pecaminosos irão surgir e é preciso estar atento, até a música é capaz de desvirtuá-los, ritmos como jazz, rock e afins são considerados demoníacos. Maria é uma menina tímida que vive num forte meio religioso, condena as igrejas modernas e suas missas, ela se fecha nesse mundo e evita diversões e convívio com os colegas da escola. Um dia na biblioteca conversa com Christian e se interessa em ir no coral da igreja que o garoto frequenta, mas ao contar para mãe e esta a reprimir volta a se sentir como uma pecadora e indigna de Deus, principalmente por ter mentido que era uma amiga que a tinha chamado e não um menino. É perturbador vê-la confessar ao padre seus "deslizes", coisas comuns a um adolescente com tanto a descobrir.
O interessante é que o diretor não faz julgamentos, ele não nos diz: "isso é errado", a história é simplesmente contada e a decisão fica por conta do espectador, serve como uma reflexão individual, cada um tem a liberdade de avaliá-lo como quiser.
Viver numa bolha não faz bem a ninguém, a mãe de Maria toda vez que aparece em cena a repreende por algo e a menina é sempre quieta, não faz absolutamente nada, tudo é pecado e o medo de não ir ao paraíso a amedronta em níveis absurdos. Preocupada em agradar a todos, Maria não consegue conciliar seus desejos com os votos de pureza e a única saída que vê é se afastar e se sacrificar para que Deus a receba. A cena em que ela vai parar no hospital após desmaiar retrata o como a mãe não olhava para sua filha, a menina já não comia mais, estava muito magra e pálida. A perfeita imagem de um mártir.
A fotografia é uma grande aliada já que reforça o aspecto austero, cada capítulo foi gravado em uma única tomada, exceto algumas cenas, como a final. Observamos o doloroso percurso de Maria e a sua sacrificação. A atuação de Lea van Acken é sublime e nos faz ter pena e raiva ao mesmo tempo.
Cada um decide no que acreditar, mas o fato é que crer demasiadamente acaba cegando o indivíduo o levando à ignorância, e assim prejudicando quem está ao seu lado. É uma obra primorosa que deve ser vista por todos, para nos tirar da zona de conforto e questionar a crença cega em uma religião, que na verdade nada tem a ver com Deus.
quinta-feira, 2 de abril de 2015
A Gangue (Plemya)
"A Gangue" (2014) dirigido pelo ucraniano Myroslav Slaboshpitsky acompanha a chegada de um garoto surdo (Grigory Fesenko) num internato especializado em deficiência auditiva, mas o ambiente não é exatamente um bom local, além de ter uma hierarquia entre os alunos que são ligados ao crime e à prostituição.
O filme retrata de forma seca e cruel o submundo em que esses jovens habitam, são pessoas frágeis que imergiram numa vida cheia de violência por não ter nenhum tipo de auxílio. Numa das poucas vezes em que os alunos são mostrados em sala de aula a professora mostra um mapa em que a Ucrânia está ligada à Europa Ocidental, questão atual que levou o país a uma grande crise. O garoto novo não demora para conquistar o respeito dos colegas e então passa a agir como o líder da gangue, mas acaba se envolvendo com uma das meninas (Yana Novikova) que se prostituem, o que é proibido dentro das regras do grupo.
O diferencial deste longa se dá pelo fato de que não há diálogos, os atores são surdos e se comunicam por língua de sinais, e não há legendas ou qualquer tradução, também não existe trilha sonora, apenas ruídos, sons do ambiente. Somos inseridos no contexto silencioso do filme e de início pode parecer confuso, mas conforme o desenrolar entendemos, as imagens são mais que suficientes.
O garoto recém-chegado é tímido e apesar de resistir bastante vai se integrando e tornando-se violento, não há como ser diferente neste meio. Essa brutalidade que cresce a cada dia mais pelo convívio culminará numa sequência estarrecedora.
Há muita agressividade na maneira com que se comunicam, as gesticulações e expressões são bem exageradas. É incrível o como as emoções são elevadas, algumas partes são chocantes, como quando um garoto é atropelado por um caminhão, é extremamente desconfortante, também não há pudor em retratar longas cenas de sexo.
Os temas abordados não são agradáveis, o crime, a violência, a prostituição, o aborto, nunca foram expostos como em "A Gangue". É forte e perturbador. É uma obra inusitada que amplia as possibilidades do cinema, e que permite ao espectador utilizar-se das mais variadas sensações para a compreensão.
Cada cena de "A Gangue" é um grande plano-sequência cheio de movimento que funciona para podermos captar o que se passa. Ele exige uma maior atenção, mas isso não significa que é um filme de difícil absorção, difícil vai ser esquecê-lo, pois os atos dos personagens são medonhos, ao contrário dos filmes que costumam retratar deficientes como coitados, este os colocam como seres errantes e abandonados por um sistema, excluídos a mercê da violência como um escape.
Interessante, o filme faz qualquer cinéfilo ficar boquiaberto diante das imagens, algumas cenas realmente ficam na memória e os poucos sons que se ouve, como os urros de dor da garota é de uma agonia absurda, e a sequência final fecha perturbadoramente com chave de ouro.
Natural, comovente e pesado, "A Gangue" faz o diferencial pela temática que raramente é explorada.
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