quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Melhores Séries Vistas de 2022

  

Segue uma singela lista das melhores séries vistas de 2022, são obras de imensa qualidade e com certeza inesquecíveis.

07- "Amor e Anarquia" (Kärlek & Anarki - Suécia) 2 Temporadas - 2020/2022

Amor e Anarquia conta a história de Sofie Rydman (Ida Engvoll), uma consultora bem-sucedida, casada e mãe de dois filhos. Quando Sofie é contratada para modernizar uma antiga editora, ela conhece o jovem técnico de TI Max Järvi (Björn Mosten), iniciando um arriscado jogo de flerte com ele. Secretamente, Sofie e Max se desafiam a tomar atitudes e decisões que contradigam as normas sociais. A brincadeira parece inofensiva, mas, à medida que os desafios aumentam, os dois precisam lidar com as perigosas consequências de sua relação. 

06- "Terra à Venda" (Grond - Bélgica) 1 Temporada - 2022

Em Soil, quando um imigrante muçulmano morre na Bélgica, a família enfrenta o dilema de enterrar o corpo no país em que se encontram, ou realizar o desejo do falecido e retornarem para sua terra natal. Isso desperta no jovem Ishmael “Smile” Boulasmoum o desejo de começar um novo empreendimento. Ele e sua irmã acabaram de herdar os negócios do pai, e Smile acredita que exista uma oportunidade incrível para eles se começarem a trazer terra do Marrocos para que os imigrantes possam enterrar seus familiares no solo de sua nação. A partir disso, a família começa um negócio funerário que, apesar de lucrativo, irá se mostrar cheio de obstáculos e imprevisibilidades no caminho ao sucesso. 

05- "As Vidas Secretas da Família Uysal" (Uysallar - Turquia) 1 temporada - 2022

Oktay Uysal (Öner Erkan), um arquiteto de 44 anos está passando por uma séria crise de meia-idade. Oktay está tentando superar a ansiedade desse momento importante vivendo uma vida dupla. A primeira vista, ele aparenta ser apenas mais um pai de família, com um carro, uma casa e um trabalho que paga as contas. Por trás dessa fachada condicionada, ele é um punk como sempre foi quando era jovem. Dessa forma, Oktay decide retornar às suas raízes: usar roupas rasgadas, moicano e ouvir música barulhenta. Contudo, Oktay não é o único passando por um momento difícil. Em casa, cada pessoa de sua família passa por suas próprias crises de identidade e, eventualmente, suas jornadas individuais irão se chocar com o lado punk escondido de Oktay. Só elogios para essa série que potencializa seu roteiro a cada episódio, que tem uma trilha sonora pontual, atores excepcionais e uma forma de filmar muito original, além dos cenários ao ar livre serem deslumbrantes. Não há desperdício de falas, de cenas, tudo tem uma função que ao final se integra perfeitamente. Esses são alguns pontos positivos apenas, pois a narrativa ainda contém altas doses de sarcasmo e críticas, como o machismo nas empresas denunciando casos de abuso e estupro, o encobrimento da mídia acerca da neblina que toma o país, mas que serve de metáfora para as vidas que são mascaradas diante a sociedade. O peso dessas situações são amenizadas com esperteza, mas não deixa de causar desconforto.

04- "Ollie, o Coelhinho Perdido" (Lost Ollie - EUA) 1 Temporada - 2022


A minissérie mistura duas narrativas complementares para compor uma bonita história de amizade. De um lado, acompanhamos a épica jornada de um brinquedo, que precisa enfrentar alguns desafios para reencontrar o menino que o perdeu. Ao mesmo tempo, conhecemos também a história dessa criança, que no processo acabou perdendo muito mais do que seu melhor amigo. A produção nos convida a olhar para o passado e lembrar daqueles companheiros que já deixamos para trás, mas que foram tão importantes em nossas vidas.

03- "Dahmer: Um Canibal Americano" (Monster: The Jeffrey Dahmer Story - EUA) 1 Temporada - 2022

Dahmer: Um Canibal Americano, minissérie de Ryan Murphy, acompanha a trajetória do infame serial killer Jeffrey Dahmer (Evan Peters). A produção explora a juventude do assassino até sua vida adulta e traz um retrato complexo da mente por trás do monstro que tirou a vida de 17 homens e meninos. Nascido na cidade de Milwaukee, Dahmer aterrorizou o estado de Wisconsin na década de 1980. Além dos brutais assassinatos, Jeffrey também cometia violência sexual e tortura contra sua vítimas. Seus crimes hediondos o tornaram um dos serial killers mais conhecidos e temidos dos Estados Unidos. Mesmo sua vizinha, Glenda Cleveland (Niecy Nash), tentando de várias maneiras denunciar o comportamento suspeito de Dahmer durante anos, a polícia a ignorou, facilitando os atos do serial killer. Tendo como alvo principalmente homens gays negros, Dahmer saiu impune por anos pelo simples fato das autoridades ignorarem o desaparecimento da vítimas. 

02- "O Urso" (The Bear - EUA) 1 Temporada - 2022

Na série de comédia dramática The Bear, Carmen Berzatto (Jeremy Allen White) é um jovem chef que herda um restaurante e tenta transformar o lugar em um grande negócio. No entanto, Carmy enfrenta várias dificuldades e busca ajuda nos diversos funcionários para tentar melhorar e transformar o The Beef em um dos maiores e melhores restaurantes de Chicago. A trama explora como cada personagem lida com suas vidas pessoais enquanto tentam alavancar suas carreiras na indústria alimentícia. Além das ambições profissionais e a rotina estressante do restaurante, a relação de Carmy com a família é cheia de tensão, especialmente depois do suicídio do irmão que impactou a todos. A produção discute comida, família e a rotina insana dos restaurantes. Carmy batalha para elevar seu estabelecimento e a si mesmo ao lado da equipe de cozinha carrancuda que aos poucos se transforma em uma nova família. 

01- "Better Call Saul" (EUA) 6 Temporadas - 2015/2022

Gus Fring (Giancarlo Esposito) está firme em sua decisão de acabar com os Salamanca, o que deixa Nacho (Michael Mando) em uma posição cada vez mais desconfortável, trabalhando para os dois lados. Enquanto isso, Saul (Bob Odenkirk) e Kim (Rhea Seehorn) se esforçam para desacreditar Howard (Patrick Fabian) na tentativa de concluir o caso Sandpiper. Paralelamente, através de vislumbres do futuro, acompanhamos a nova vida de Saul e os percalços por ele enfrentados após seu envolvimento nos negócios de Walter White (Bryan Cranston). História fechada com chave de ouro, uma obra-prima e sem dúvida, a melhor spin-off da história das séries de TV. Personagens icônicos!

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Melhores Filmes Vistos de 2022

Selecionei 13 filmes por puro gosto e experiência pessoal, ao longo do ano assisti poucos filmes, mas esses merecem muito entrar na lista.

13- "Lamb" (Cordeiro - 2021) Islândia

María (Noomi Rapace) e Ingvar (Hilmir Snær Guðnason), um casal que vive isolado em sua fazenda na Islândia, fazem o parto de um misterioso recém-nascido entre as ovelhas de seu celeiro. A inesperada perspectiva de uma vida familiar lhes traz muita alegria e eles resolvem criar o bebê como se fosse sua própria filha. "Lamb" (2021) dirigido por Valdimar Jóhannsson é um filme que mescla fantasia e horror a uma narrativa que convida o espectador a exercer sua reflexão e permite uma criatividade sem igual, o desenrolar vai no oposto das histórias imediatistas que não criam vínculos com suas personagens e não produzem sensações mais profundas e que apenas visam saciar a expectativa do público. Muito se compara "Lamb" ao longa de Robert Eggers, "A Bruxa" (2015), acredito que tenha algo em comum em seu cerne, como a ancestralidade que o ser humano é incapaz de entender, sobre sua relação de egocentrismo, desconhecimento e menosprezo com a natureza que acaba gerando atitudes de poder e que mais tarde serão cobradas.

12- "Os Inocentes" (The Innocents/De Uskyldige) 2021 - Dinamarca/Suécia/Finlândia/Noruega/França/Reino Unido

Acompanhamos Ida, uma menina de nove anos que se muda com a família para os arredores de Oslo, Noruega, durante o verão. Junto com sua irmã Anna, que possui autismo, a menina tenta se ajustar ao novo ambiente e faz amizade com duas outras crianças. Quando estão longe dos adultos, esses quatro amigos descobrem que possuem poderes sobrenaturais. O que começa como uma inocente brincadeira, logo se transforma em um jogo sombrio e perigoso. "The Innocents" (2021) dirigido por Eskil Vogt (Blind - 2014) é um filme profundo repleto de nuances que retrata a maldade entrando aos poucos na vida de algumas crianças, entre a ociosidade e a solidão do dia a dia, elas descobrem que possuem poderes e isso é retratado com potência e sem ponderações, não há limites quando o mal é permeado pela inocência, e por isso é tão assustador e perturbador. Vale ressaltar o brilhantismo do elenco infantil, os sentimentos estão à flor da pele, os olhares lançados, os silêncios, as descobertas. Visceral define. Também vale dizer que Eskil Vogt é um exímio roteirista, sua criatividade explode na tela, lembrando sua parceria com Joachim Trier, entre eles: "Oslo, 31 de Agosto" - 2011 e "Thelma" - 2017.

11- "Benedetta" (2022) França/Bélgica/Holanda

No século XVII, uma freira italiana faz parte de um convento na Toscana desde quando era criança. Ela sofre de um distúrbio e tem perturbações e visões religiosas e eróticas. Assistida por uma companheira, a relação entre as duas acabam se tornando um romance amoroso.

 10- "Red Rocket" (2021) EUA


Mikey é um astro decadente de filmes adultos cuja carreira terminou. Enfrentando problemas financeiros em Los Angeles, ele decide rastejar de volta para sua pequena cidade natal, no Texas, para viver com a ex-esposa e a sogra. Quando essa família disfuncional parece estar fazendo as coisas funcionarem, Mikey conhece uma jovem chamada Strawberry trabalhando na caixa registradora de uma loja de donuts local e imagina que a garota pode ser a solução para seus problemas – e a volta por cima em sua carreira.

09- "Men" (2022) Reino Unido 

Após uma tragédia pessoal, Harper (Jessie Buckley) decide ir sozinha para um retiro no meio de um belo campo inglês, na esperança de encontrar um lugar para se curar. Mas alguém ou algo da floresta ao redor parece estar perseguindo ela. O que começa como um pavor se torna um pesadelo, habitado por suas memórias e medos mais sombrios.

08- "Resurrection" (2022) EUA 

"Resurrection" (2022) dirigido por Andrew Semans é um filme magnético e desconfortante, a decaída psicológica da protagonista, sua paranoia persistente e o desenrolar surreal causam um misto de terror e ansiedade. Rebecca Hall (Christine - 2016, The Night House - 2020) está esplêndida ao ir de uma mulher altiva e segura para um total desequilíbrio que a alavanca para fora da realidade. Somos apresentados a Margaret, bem-sucedida, ocupada com sua carreira e maternidade, superprotetora com sua filha adolescente Abbie (Gracie Kaufman) que logo irá embora para a faculdade, sua rotina consiste nisso, além de se relacionar com um cara casado e dar conselhos sobre relacionamento tóxico a uma estagiária. O desencadear dos eventos acontecem sem mais nem menos, um sonho estranho em que ela encontra um bebê dentro do forno e em outro dia eventualmente numa palestra vislumbra um rosto que lhe causa pânico instantâneo. Ela sai correndo imediatamente do local e a partir disso sua derrocada psicológica acontece. David (Tim Roth), o homem que assombra Margaret faz parte de um passado traumático que descobrimos aos poucos e bizarramente ser bem profundo, as insanidades ditas por ele, o joguinho psicológico medonho que cresce à medida que os encontros ocasionais se dão, e isso é uma das coisas mais estranhas do filme, ele simplesmente aparece em todo canto, em um banco na praça, encostado em alguma parede, então não fica muito claro se isso é apenas algo da cabeça de Margaret, como um pesadelo horrível do qual não há como acordar, essa perturbação de não sabermos se é real ou não gera ansiedade e desconforto, ainda mais quando ela perde totalmente o equilíbrio e vive apenas em função de seguir David.

07- "Não Fale o Mal" (Speak No Evil - 2022) Dinamarca/Holanda 

Após conhecerem uma família holandesa durante suas férias na Tosca, uma família dinamarquesa recebe o convite de passar o fim de semana na casa de seus novos amigos. Mas não demora muito para que mal-entendidos revelem que a família holandesa não é quem diziam ser.

06- "Nada de Novo no Front" (Im Westen Nichts Neues - 2022) Alemanha/EUA

Paul Baumer e seus amigos Albert e Muller se alistam voluntariamente no exército alemão, movidos por uma onda de fervor patriótico. Mas isso é rapidamente dissipado quando enfrentam a realidade brutal da vida no front. Em meio à contagem regressiva, Paul deve continuar lutando até o fim, com nenhum objetivo além de satisfazer o desejo do alto escalão de acabar com a guerra com uma ofensiva alemã.

05- "Não! Não Olhe!" (Nope) 2022 - EUA

Na zona rural da Califórnia, os irmãos OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer) administram uma grande fazenda de treinamento de cavalos. Mas tudo muda quando seu pai Otis (Keith David) morre de forma misteriosa sob uma nuvem sinistra. A partir desse momento, moradores de toda a vizinhança passam a testemunhar um mal terrível se aproximando pelo céu e deixando um rastro de morte e destruição.

04- "Pleasure" (2021) França/Holanda/Suécia

Uma garota sueca de 20 anos tenta ser uma estrela pornô em Los Angeles. Trabalhando na categoria "amador adolescente" e compartilhando um apartamento com outras atrizes, Jessica pretende escalar todos os degraus e se tornar uma verdadeira estrela pornô, tornando-se um mito e trabalhando seu corpo como uma atleta.

03- "O Milagre" (The Wonder - 2022) USA/Reino Unido/Irlanda

Em 1859 uma enfermeira inglesa é chamada a uma pequena vila na Irlanda para investigar o que alguns afirmam ser uma anomalia médica ou um milagre. Lá, ela encontra uma garota de 11 anos que parou de comer há meses e continua viva.

02- "Triângulo da Tristeza" (Triangle of Sadness - 2022) Suécia/Alemanha/Reino Unido/França 

Os modelos Carl e Yaya estão navegando pelo mundo da moda enquanto exploram os limites de seu relacionamento. O casal é convidado para um cruzeiro de luxo com uma galeria de passageiros milionários, um oligarca russo, traficantes de armas britânicos e um capitão de personalidade peculiar, alcoólatra e adorador de Marx. A princípio, tudo parece instagramável. Mas uma tempestade começa a se formar e o cruzeiro termina de forma catastrófica. Carl e Yaya se veem abandonados em uma ilha deserta com um grupo de bilionários e uma das faxineiras do navio. É então que a hierarquia entre eles subitamente se transforma. "Triângulo da Tristeza" (2022) dirigido por Ruben Östlund (Força Maior, 2014 - The Square, 2017), ganhador da Palma de Ouro em Cannes desse ano é um filme que expõe sem metáforas o privilégio da elite, daqueles que não aceitam não e cujo tédio é sanado por situações esdrúxulas. O longa abrange algumas temáticas interessantes que envolvem o capitalismo, como os influencers digitais e a maneira fácil de se ganhar montantes de dinheiro com publicidade, a imagem de perfeição e luxo atraem cada vez mais pessoas para esse mundo e no primeiro capitulo acompanhamos um casal de modelos que, por exemplo, brigam num restaurante sobre quem deveria pagar a conta. As situações exploradas no decorrer são permeadas por muito sarcasmo e o diretor faz questão de provocar o espectador, as pessoas são péssimas e o desenrolar dos acontecimentos só realçam o quão ridículos são.

01- "Pearl" (2022) Canadá/EUA

 
Aprisionada na fazenda isolada de sua família, Pearl (Mia Goth) deve cuidar de seu pai doente sob a vigilância amarga e autoritária de sua mãe devota. Desejando uma vida glamourosa como ela viu nos filmes, todas as ambições, tentações e repressões da personagem colidem, resultando na impressionante história de origem da icônica vilã de ‘X’.

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Triângulo da Tristeza (Triangle of Sadness)

 *Contém Spoilers

"Triângulo da Tristeza" (2022) dirigido por Ruben Östlund (Força Maior, 2014 - The Square, 2017), ganhador da Palma de Ouro em Cannes desse ano é um filme que expõe sem metáforas o privilégio da elite, daqueles que não aceitam não e cujo tédio é sanado por situações esdrúxulas. O longa abrange algumas temáticas interessantes que envolvem o capitalismo, como os influencers digitais e a maneira fácil de se ganhar montantes de dinheiro com publicidade, a imagem de perfeição e luxo atraem cada vez mais pessoas para esse mundo e no primeiro capitulo acompanhamos um casal de modelos que, por exemplo, brigam num restaurante sobre quem deveria pagar a conta. As situações exploradas no decorrer são permeadas por muito sarcasmo e o diretor faz questão de provocar o espectador, as pessoas são péssimas e o desenrolar dos acontecimentos só realçam o quão ridículos são. Dividido em três capítulos acompanhamos no primeiro momento Carl (Harris Dickinson), um modelo que está numa espécie de entrevista onde é ordenado a sorrir e parar em segundos e depois desfilar com ritmo, no caso é especificado que modelos homens ganham menos e logo o vemos com sua namorada Yaya (Charlbi Dean), também modelo em um restaurante caríssimo cuja conta a ser paga é discutida por um interminável, cansativo e raso diálogo sobre ela ganhar mais. A cena corta e logo os vemos em um iate luxuosíssimo tomando banho de sol, Yaya ganhou a viagem em troca de publicidade e os dois desfrutam do melhor que há, cardápio refinado e experiência única. Nesse iate acontecem situações incômodas envolvendo funcionários e seus clientes, inclusive Carl numa cena patética de ciúme, na verdade seu ego fica mexido ao ver um funcionário sem camisa consertando algo enquanto Yaya olha, o cara é bonito e ele se aborrece, então vai reclamar, logo depois vemos o cara indo embora do navio. A relação da classe trabalhadora com esses milionários é escancarada sem dó e retrata a EXPLORAÇÃO - escrevi em caixa alta porque essa palavra precisa ser gritada, e é exatamente isso o que o filme faz, os coloca numa posição de arrogância espalhafatosa que gera ânsia, se revela de maneira explícita e desenha muito bem a hierarquia, inclusive entre os funcionários designando regras absurdas.

Dentre esses passageiros conhecemos com mais afinco Dimitry (Zlatko Buric), um milionário russo que se define "Rei da Merda", já que sua fortuna advém de fertilizantes e adubos, o casal britânico Winston (Oliver Ford Davies) e Clementine (Amanda Walker), que enriqueceu vendendo granadas, além de outros que no decorrer ganham cenas icônicas, como Vera (Sunnyi Melles) e sua polêmica cena de vômito e caganeira e Therese (Iris Berben), que vitimada por um acidente vascular cerebral depende da cadeira de rodas e da bondade dos outros, ela consegue pronunciar uma única frase que dependendo a situação muda de entonação. Sem deixar de evidenciar a maravilhosa participação de Woody Harrelson, como o capitão bêbado Thomas Smith, principalmente no "duelo" de citações que trava com o russo sobre capitalismo e comunismo. Enquanto o navio sofre com uma tempestade, acaba a luz e o trágico está por vir, situações das mais estranhas acontecem, primeiro que ninguém liga para a tempestade e comem iguarias e enchem a cara de champagne, até que alguns passageiros comecem a iniciar o show de horrores.
 
O corte para o terceiro capitulo se dá numa explosão e logo vemos alguns sobreviventes chegando a uma ilha, aí se dá uma inversão de poder já que os ricos não sabem fazer nada para além de suas breguices, sempre foram servidos e para sobreviver precisarão eleger como líder Abigail, a faxineira, interpretada magistralmente pela filipina Dolly De Leon. O jogo de poder começa e as relações vão sendo testadas, principalmente a do casal de modelos, que em troca de comida aceita-se de tudo. O território se torna habitável e Abigail se vê numa posição confortável da qual nunca experimentou. O final do filme também joga com o espectador e promove uma série de análises das quais passam por inúmeros possíveis desfechos, a moralidade e as sentenças não são dadas de bandeja, o prato é dado e nós o comemos, mas cada um o digere de uma forma. 
"Triângulo da Tristeza" não poupa ironia e cutuca estereótipos, hipocrisias, preconceitos, privilégios, a moralidade humana de forma crua e debulha os absurdos disso tudo com risibilidade e perspicácia. Grande filme!
 
Nota: A atriz sul-africana Charlbi Dean de 32 anos infelizmente faleceu em agosto desse ano de uma doença repentina, vinda de uma carreira longa de modelo estava se firmando como atriz na série "Raio Negro".

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Resurrection

"Resurrection" (2022) dirigido por Andrew Semans é um filme magnético e desconfortante, a decaída psicológica da protagonista, sua paranoia persistente e o desenrolar surreal causam um misto de terror e ansiedade. Rebecca Hall (Christine - 2016, The Night House - 2020) está esplêndida ao ir de uma mulher altiva e segura para um total desequilíbrio que a alavanca para fora da realidade. Somos apresentados a Margaret, bem-sucedida, ocupada com sua carreira e maternidade, superprotetora com sua filha adolescente Abbie (Gracie Kaufman) que logo irá embora para a faculdade, sua rotina consiste nisso, além de se relacionar com um cara casado e dar conselhos sobre relacionamento tóxico a uma estagiária. O desencadear dos eventos acontecem sem mais nem menos, um sonho estranho em que ela encontra um bebê dentro do forno e em outro dia eventualmente numa palestra vislumbra um rosto que lhe causa pânico instantâneo. Ela sai correndo imediatamente do local e a partir disso sua derrocada psicológica acontece. David (Tim Roth), o homem que assombra Margaret faz parte de um passado traumático que descobrimos aos poucos e bizarramente ser bem profundo, as insanidades ditas por ele, o joguinho psicológico medonho que cresce à medida que os encontros ocasionais se dão, e isso é uma das coisas mais estranhas do filme, ele simplesmente aparece em todo canto, em um banco na praça, encostado em alguma parede, então não fica muito claro se isso é apenas algo da cabeça de Margaret, como um pesadelo horrível do qual não há como acordar, essa perturbação de não sabermos se é real ou não gera ansiedade e desconforto, ainda mais quando ela perde totalmente o equilíbrio e vive apenas em função de seguir David. Ele diz coisas enigmáticas para Margaret, palavras que a faz ir de encontro ao seu terrível passado. É incrível a capacidade de atração da história, a visceralidade que surge em Margaret quando acha que sua filha corre perigo, sua raiva, seu medo em ter de lidar com um monstro do passado que surge de mansinho, mas não menos perturbador, David é polido com sua voz mansa e sorriso cínico, a história parece não fazer sentido, a perspectiva que temos é embaçada e conflituosa, mas assim são os traumas que foram soterrados e que submergem inesperadamente.

É um filme que sabe trabalhar bem seu suspense/thriller, que possui uma protagonista que se ergue sobre a história, cuja atmosfera sufoca a cada evento enigmático, os olhares desesperados de Margaret, sua violência física que cresce quando prevê o perigo, sua angústia em lidar com um passado amargo e extremamente doloroso, abusos de diversos tipos, não há nada que mensure a grandeza da interpretação de Hall, a estranheza do filme se converte em emoção, não tem como não ter empatia por essa mulher que está afundada em terrores. Como superar traumas de abuso? Fugindo e seguindo a vida? E então como conviver com os fantasmas advindos disso?
 
Sincero e honesto ao retratar os acarretamentos de abusos perversos, "Resurrection" é um filme potente e voraz, não é fácil, não é simples, e seu final carrega um misto de peso e alívio. Destaque para a cena em que Magaret narra toda sua história pregressa para a estagiária, um monólogo destruidor.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Minha Vida Perfeita (Moje Wspaniale Zycie)

"Minha Vida Perfeita" (2021) dirigido por Lukasz Grzegorzek (A Filha de um Treinador - 2018) é um filme polonês que retrata as facetas de uma mulher que possui muitas responsabilidades e que diante da falta de afeto da família cria uma vida paralela da qual mais a frente acarretará uma série de paranoias e um amontoado de desentendimentos.
Joanna (Agata Buzek), de meia-idade, tenta incansavelmente conciliar ser mãe, filha, avó, esposa, amante, dona de casa e professora do ensino médio. Mas ela parece estar perdendo a paciência. Joanna é uma mulher que detém grandes responsabilidades, principalmente com a mãe que está perdendo a memória devido ao Alzheimer, além disso precisa lidar com a presença do filho mais velho que mora na casa com sua esposa e o bebê, não existe um tempo para si dentro dessa configuração que ainda inclui seu marido, o diretor da escola que leciona e o filho adolescente que parece não suportar o ambiente e se fecha em seu mundo. Ela só respira quando depois de suas aulas particulares na antiga casa de sua mãe coloca uma música alta e fuma um baseado, lá ela encontra sua feminilidade novamente e se encontra com um professor excêntrico, são momentos únicos e que servem para entendermos seu cansaço em relação a tudo. 
A história não está interessada no que é certo ou errado, simplesmente desenvolve a narrativa de maneira intimista e cadenciada a fim de expor a vida como ela é realmente, sem grandes acontecimentos, mas revela o quanto vale um diálogo na tomada de decisões importantes, porém nem sempre a vontade de conversar existe, o que torna algo que poderia ser resolvido facilmente em algo desconfortável. É interessante observar o cotidiano dessa família, não há floreios e nem força a barra criando situações para entreter o espectador, mas por muitas vezes a tensão cumpre seu papel nos dando a oportunidade de tentar deduzir quem estará por trás dos bilhetes deixados para Joanna em razão de sua infidelidade, a paranoia agrava quando acha que é algum de seus alunos e o segredo fica cada vez mais difícil de ser mantido. As maneiras que encontra para desvendar quem está por trás das mensagens são tão estranhas que por fim torna todos dessa trama em seres completamente egoístas e sem nenhum elo de afeto, todos ali estão convivendo sob o mesmo teto sem necessariamente se importar, o fato de Joanna não ceder a casa da mãe para o filho mais velho morar - sendo que isso tiraria um baita peso de suas costas - é que ela não quer ser invadida em mais outro espaço, necessita desse momento em que se torna ela mesma sem se importar com sua imagem de mulher perfeita.

É um filme para se assistir sem grandes expectativas, simplesmente é o retrato da vida de uma família que possui defeitos um tanto desagradáveis, e também veja sem julgamentos até porque nunca é por uma única razão que tais coisas acontecem, como a traição por exemplo, e o fato de suas tomadas de decisões ou a falta delas incomodam, mas claramente porque estamos de fora analisando, a complexidade norteia essas questões e o desfecho revela ainda mais essas camadas, como a que envolve o filho adolescente e suas motivações e o grand finale dela chorando com a mãe, os filhos e nora a abraçando, inclusive com o marido presente e logo após o amante chegando visualizando a cena.
 
"Minha Vida Perfeita" pode não agradar por não estar nos moldes convencionais de narrativa e pode parecer um tanto lento e sem foco, mas os personagens e suas ações desconfortáveis nos dizem muito sobre relações e sobre como a maioria lida com a imagem da família perfeita, e essencialmente do como a sociedade enxerga a mulher que é responsável por um conjunto de obrigações que acabam a anulando. Ainda que trate dessas complexidades do ser humano é um filme leve e até descontraído. É sempre vantajoso exercitar o diálogo, mas nem sempre é fácil e nem sempre se quer ter conversas, pois é muito mais fácil seguir com os segredos.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

10 Filmes Agradáveis (Para Ver Quando o Coração Pesar)

Segue uma lista feita com carinho para os corações afogados, seja por qualquer motivo, eu mesma estou numa fase de não conseguir ver filmes com temas pesados e muito reflexivos, mas também isso não significa que as histórias precisam ser bobas e efêmeras. Os selecionados aqui servem para aquecer como um abraço, espairecer a mente, chorar sorrindo e despertar desejos.

10- "Prazer, Kalinda" (Bo We Mnie Jest Seks - 2022) Polônia

Kalina Jędrusik, a maior estrela da Polônia nos anos 60, está no auge da fama, mas precisa enfrentar um oficial desprezado que ameaça destruir sua carreira. Maria Dębska estrela a biografia musical de Katarzyna Klimkiewicz sobre a diva rebelde da Polônia dos anos 60 e 70. Um filme que retrata um ícone feminino da Polônia, uma mulher deslumbrante com uma personalidade livre, que resistiu ao machismo e ao assédio. Um filme que inspira o despertar de sentimentos de autonomia feminino.

09- "Dry Martina" (2018) Argentina/Chile

Martina (Antonella Costa) é uma ex-estrela pop que fez muito sucesso na Argentina durante os anos 90. Agora, sem fama ou qualquer tipo de relacionamento, ela não sabe que direção tomar na vida. Mas a chegada de uma irmã desaparecida com um namorado atraente chama a atenção de Martina e mexe em seu desejo adormecido. Um filme leve que se dobra a sua protagonista decadente, mas com anseios e intenções intensas, as relações que se formam durante a história só provam a sua necessidade de calor humano, um filme que vibra na feminilidade e desejos, sobretudo a afabilidade.

08- "Elvira - Te Daria Minha Vida, mas a Estou Usando" (Elvira - Te Daría Mi Vida, pero la Estoy Usando - 2014) México

Uma noite, Gustavo (Carlos Bardem), marido de Elvira (Cecilia Suárez), sai para comprar cigarros e nunca retorna. Elvira, 40 anos, mãe de dois filhos, começa uma busca incessante pelo amor de sua vida. As pistas a leva à conclusão de que seu marido manteve um relacionamento secreto. A infeliz descoberta não a impede de seguir tentando encontrar seu marido. Uma dramédia bastante agradável mesmo que bandeando para um lado mais ácido da comédia, foge do estilo convencional do gênero e traz vigor e frescor para alguns clichês muito bem utilizados, os aprimora e dosa com muita perspicácia o desespero, a fluidez e a transformação da protagonista.

07- "Granizo" (2022) Argentina

Miguel Flores é um famoso meteorologista que é tão famoso que tem seu próprio programa de televisão que é conhecido por nunca errar a previsão do tempo no país. Tendo estudado na disciplina por seis anos e, trabalhando na área há anos, se Miguel garante, deve acontecer do jeito que ele previu. Um filme para amainar a vida, cheio de conflitos que se desenrolam de maneira eficaz e deliciosa, um protagonista carismático que com bom humor norteia várias nuances da vida.

06- "O Confeiteiro" (The Cakemaker - 2017) Alemanha/Israel

Thomas (Tim Kalkhof) é um alemão dono de uma confeitaria que viaja para Jerusalém em busca da esposa e filho de Oren (Roy Miller), seu amante morto. Ao chegar lá ele começa a trabalhar para a viúva de seu amante, que não tem ideia de que eles compartilham uma tristeza sem nome sobre o mesmo homem.
Um filme bonito e corajoso ao demonstrar que o amor não possui barreiras, etiquetas e rótulos, acontece sem que possamos ter controle e de forma inesperada. A experiência do luto, do desespero silencioso da solidão desencadeou no personagem uma busca, tudo isso ricamente explorado em diversas camadas emocionais. É um filme de observação, há olhares que revelam, como o da mãe de Oren em diversas cenas, e tão mais importante, o toque, as mãos aquecendo a massa, a paixão empregada por Thomas na confecção de seus bolos, são momentos de puro deleite.

05- "Hanami - Cerejeiras em Flor" (Kirschblüten: Hanami - 2008) Alemanha

Rudi Angermeier (Elmar Wepper) e Trudi Angermeier (Hanellore Elsner) é um lindo casal da terceira idade que leva uma vida rotineira e tranquila. Porém, ao receber a notícia de que seu marido está com uma doença que lhe dá poucos meses de vida, os médicos aconselham a Trudi que tenha cuidado ao contar sobre a enfermidade e sugere que o casal aproveite os últimos momentos para viajar ou realizar alguns de seus sonhos. Sem contar ao marido da doença, Trudi o convence a saírem do interior da Alemanha e irem a Berlim visitarem os filhos. Sem tempo para os pais, o casal vê o quanto eles se transformaram a ponto de considerar a breve visita um verdadeiro incômodo. A situação se agrava quando, ironicamente, Trudi morre, deixando seu marido sozinho em meio ao desprezo dos filhos. Ao voltar para sua cidade, Rudi decide se aprofundar nos pertences de sua mulher, e assim descobre que a vida toda ela alimentou o sonho de conhecer o Monte Fuji, no Japão.

04- "Ninguém Sabe que Estou Aqui" (Nadie Sabe que Estoy Aquí - 2020) Chile

Memo (Jorge Garcia), mora em uma remota fazenda de ovelhas no Chile e esconde sua linda voz do mundo. Traumatizado por acontecimentos do passado, ele vive de maneira solitária, até que uma mulher lhe oferece a chance de encontrar a paz que tanto procura. Belíssimo filme que mexe bastante com nossa sensibilidade, contém cenas poéticas e memoráveis, além da interpretação visceral de maneira contida de Jorge Garcia. Um filme extremamente bonito que enche o coração de emoção.

 03- "A Incrível Jornada de Jacqueline" (La Vache - 2016) França

Fatah (Fatsah Bouyahmed), um pequeno fazendeiro argelino, só tem olhos para sua vaca Jacqueline, que ele sonha em ver na grande feira de Agricultura, realizada em Paris. Determinado a levar a vaca até lá, ele a carrega consigo e cruza a França a pé, após pegar um barco para Marselha. No caminho, Fatah e Jacqueline viverão uma inesperada viagem cheia de surpresas e aventuras.
Um filme divertido, afável e leve, aborda com sutileza um argelino que tem o sonho de expor sua amada vaca Jacqueline em uma feira agrícola em Paris, e para isso recebe ajuda de sua aldeia para a viagem e atravessa Paris a pé encontrando pessoas das quais tornam a sua jornada ainda mais significativa e intensa. O tom cômico atenua os temas tratados dentro da trama, o que dá um ar de fábula humanista cheia de poesia e delicadeza, acompanhar Fatah em sua caminhada faz bem ao coração e torcemos muito por ele e sua querida vaca Jacqueline.

 
02- "A Costureira dos Sonhos" (Sir - 2018) Índia

Ratna (Tillotama Shome) trabalha como empregada doméstica para Ashwin (Vivek Gomber), um homem rico que parece ter tudo, porém vive desesperançoso e perdido pela vida. Enquanto isso, Ratna, que parece ter nada, vive a vida determinada a alcançar seus sonhos. Um filme indiano agridoce que retrata os entraves da cultura para uma mulher que corre atrás de seus desejos e sonha em se tornar pelo menos um pouco livre, o roteiro é leve, inteligente e não cai em clichês, tudo acontece de forma progressiva e assim nos dá tempo para conhecer cada personagem e entendê-los, um olhar feminino sobre a Índia contemporânea e as fortes e corajosas mulheres que se arriscam na cidade grande mesmo tendo dificuldades por conta da origem e posição social. Encanta pela beleza das cores, dos sentimentos que se misturam e, principalmente, pela fascinante interpretação de Tillotama Shome.

01- "Café com Canela" (2017) Brasil

Margarida (Valdinéia Soriano) vive em São Félix, isolada pela dor da perda do filho. Violeta (Aline Brunne) segue a vida em Cachoeira, entre adversidades do dia a dia e traumas do passado. Quando Violeta reencontra Margarida inicia-se um processo de transformação, marcado por visitas, faxinas e cafés com canela, capazes de despertar novos amigos e antigos amores.
Apesar de refletir sobre a ausência e a solidão que o luto causa traz boas doses de humor e afeto, a transformação por meio do amor, do como a cura de uma dor pode acontecer através de um olhar, palavras e ações ternas e, justamente por isso, se faz um filme imprescindível, já que as relações no cotidiano estão cada vez mais frias e cresce a falta de empatia, ele tem a capacidade de resgatar sentimentos inertes, como a gentileza, e demonstrar que xícaras de café podem conter abraços aconchegantes e transformadores.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

As Vidas Secretas da Família Uysal (Uysallar)

"As Vidas Secretas da Família Uysal" (2022) dirigido por Onur Saylak é uma minissérie turca espetacular disponível no catálogo da Netflix, uma história repleta de camadas que vai desnudando os personagens pouco a pouco, que provoca o espectador fazendo oscilar nossos sentimentos diante às ações de cada um. Com 8 episódios acompanhamos a família Uysal, que passa por uma crise, todos sem exceção têm suas perturbações e estão à beira de um colapso. Oktay (Öner Erkan) é um arquiteto de 44 anos que se vê sufocado com a rotina, emprego e família, não suporta mais viver desse jeito e resolve escrever uma carta se despedindo, mas acaba que ele desiste e a esconde. No seu íntimo vive uma chama esquecida e a partir de uma visita que faz a sua antiga cidade decide reviver seu "verdadeiro" eu, e então uma vida dupla se inicia, de dia enfrenta os percalços do trabalho e seu chefe instável, Berhudar (Haluk Bilginer), tentando projetar uma prisão que nunca sai, e a noite coloca sua jaqueta cheia de spikes com a escrita "amante do caos" e seu enorme moicano colorido. Mas não é só Oktay que está enfrentando uma crise, sua esposa Nil (Songül Öden) que quer retornar ao mercado de trabalho não consegue por ser considerada velha e isso só faz aumentar sua obsessão com a aparência e sua ânsia por procedimentos estéticos, além de que se infiltra numa teia de mentiras que acarretará uma consequência inesperada. Os filhos também estão perdidos, o adolescente Ege (Umut Yesildag) que claramente possui traços psicopatas e a pequena Ece (Nilay Yeral), uma menina inteligente que não tem nenhuma atenção e que busca um pouco disso numa vizinha. Há também Olcay (Ugur Yucel), o pai tóxico de Oktay. A cada episódio o enredo nos arremessa diante das atitudes desses personagens que estão infelizes mesmo tendo uma condição financeira elevada, a distância só faz esses segredos se tornarem cada vez mais fortes e os sentimentos perante eles mudam a cada instante, ora sentimos empatia, ora asco, a complexidade e o caráter reflexivo dá um ar beirando o perturbador, pois são inúmeras as questões que surgem, como por exemplo, a hipocrisia, o egoísmo, o machismo, a indiferença, a máscara social, e com o passar dos episódios Oktay vai se tornando uma chacota, isso se concretiza ao final quando o amigo expõe a sua mediocridade e hipocrisia, que aquela fantasia nada tem a ver com ser punk, as relações que ele formou com os três desabrigados, esses sim lutando contra o sistema só aumenta as características de uma pessoa entediada e covarde.

Só elogios para essa minissérie que potencializa seu roteiro a cada episódio, que tem uma trilha sonora pontual, atores excepcionais e uma forma de filmar muito original, além dos cenários ao ar livre serem deslumbrantes. Não há desperdício de falas, de cenas, tudo tem uma função que ao final se integra perfeitamente. Esses são alguns pontos positivos apenas, pois a narrativa ainda contém altas doses de sarcasmo e críticas, como o machismo nas empresas denunciando casos de abuso e estupro, o encobrimento da mídia acerca da neblina que toma o país, mas que serve de metáfora para as vidas que são mascaradas diante a sociedade. O peso dessas situações são amenizadas com esperteza, mas não deixa de causar desconforto.
 
"As Vidas Secretas da Família Uysal" é uma minissérie que merece o reconhecimento, bem feita e que foge das produções turcas que se assemelham a dramalhões novelescos e que usam de artifícios básicos e comuns para fisgar o espectador, vale destacar o roteirista Hakan Gunday, que tem outras séries maravilhosas em seu currículo, como "Assassino sem Passado" e "Şahsiyet". Enfim, ainda vale enaltecer o trabalho dos atores e, principalmente, de Haluk Bilginer, como Berhudar, que compôs um personagem cheio de camadas que com o tempo só piorava. Sensacional!

terça-feira, 15 de março de 2022

Lamb (Dýrið)


"Lamb" (2021) dirigido por Valdimar Jóhannsson é um filme que mescla fantasia e horror a uma narrativa que convida o espectador a exercer sua reflexão e permite uma criatividade sem igual, o desenrolar vai no oposto das histórias imediatistas que não criam vínculos com suas personagens e não produzem sensações mais profundas e que apenas visam saciar a expectativa do público. Muito se compara "Lamb" ao longa de Robert Eggers, "A Bruxa" (2015), acredito que tenha algo em comum em seu cerne, como a ancestralidade que o ser humano é incapaz de entender, sobre sua relação de egocentrismo, desconhecimento e menosprezo com a natureza que acaba gerando atitudes de poder e que mais tarde serão cobradas.
María (Noomi Rapace) e Ingvar (Hilmir Snær Guðnason), um casal que vive isolado em sua fazenda na Islândia, fazem o parto de um misterioso recém-nascido entre as ovelhas de seu celeiro. A inesperada perspectiva de uma vida familiar lhes traz muita alegria e eles resolvem criar o bebê como se fosse sua própria filha.
Acompanhamos a vida de um casal numa fazenda permeada por uma natureza selvagem e de proporções ameaçadoras, de início percebemos os animais e seus comportamentos parecendo que algo está à espreita, acontece o período de nascimentos de ovelhas e o casal se ocupa desse trabalho enquanto vivem de maneira sorumbática seus dias. Se preocupam apenas com o essencial para a sobrevivência. Até que uma ovelha dá a luz a um bebê diferenciado, só que nesse momento não vemos absolutamente nada, só se observa os olhares do casal que ficam impressionados e veem nesse evento uma possibilidade de mudarem suas rotinas e sentimentos novos surgirem. Os dois levam essa ovelhinha para casa, colocam em um berço, a amamentam e a protegem da ovelha mãe que não para de balir embaixo da janela do quarto. Impressionante a tensão criada a partir dessas cenas, é como se fosse um aviso de que algo está errado e ainda mais depois de um ato violento de Maria para que pudesse ter o bebê só para si. A tensão segue crescente e a câmera não tem pressa em nos mostrar Ada, nome escolhido e que tem uma carga emocional enorme, já que mais a frente vemos o túmulo daquela que seria a filhinha do casal, essa bizarrice ganha tons bem perturbadores quando a presença de Ada se faz forte e sem nenhuma palavra acompanhamos uma consciência acontecendo.

Em dado momento, Pétur (Björn Hlynur Haraldsson), irmão de Ingvar é jogado de um carro perto da fazenda e não demora para que conheça Ada, claramente chocado e pensando que o irmão e Maria estejam pirando, mas é capturado pela pequena Ada e sua inocência, a relação entre os três é bem pouco aprofundada e acaba que não serve muito para o desenrolar, o que fica de fato é a atmosfera de fábula que flerta com o horror e que deixa em seu final uma moral que carrega o desconhecido, o quão pequeno é o ser humano diante a natureza e sua ancestralidade, mas pode-se tirar inúmeras reflexões, as camadas se expandem dentro dessa história, cada um vê e sente de formas distintas, mas exemplificando, tira-se muitas questões para além do humano e a grandiosidade que o cerca, como instinto materno, relação do humano com o animal nos tempos modernos em que o coloca no lugar de um filho, traumas, luto, etc.

 
"Lamb" é um filme para quem deseja sair da zona de conforto, das expectativas supridas e, principalmente, abrir novas perspectivas. Um filme diferenciado que remete a uma fábula ameaçadora e nos coloca diante da obscuridade da existência.