terça-feira, 28 de março de 2023

Copenhagen Cowboy (Série)

"Copenhagen Cowboy" (2022) dirigido por Nicolas Winding Refn (Drive - 2011, O Demônio de Neon - 2016) tem a assinatura do diretor, estilosa, soturna e bizarra, mistura diferentes elementos e gêneros e traz uma originalidade incomum, é um espetáculo misterioso, minucioso e hipnotizante.
Acompanhamos a jornada de Miu (Angela Bundalovic), uma jovem enigmática e lacônica que é comprada por Rosella (Dragana Milutinovic), uma mulher obscura que junto de seu irmão possui um bordel e está inserida no submundo do tráfico de mulheres, ela acredita que Miu tem poderes mágicos que a ajudará engravidar, a sequência de fatos muda a percepção de Rosella e Miu entra numa espiral de vingança pela imundice humana levando de certa forma a justiça. Entre os personagens há Nicklas (Andreas Lykke Jørgensen), metade humano, metade vampiro que cruza o caminho de Miu e que travará um conflito monumental, no caminho ela encontra uma série de pessoas que vivem nesse submundo de crimes, incluindo gangues, tráfico de drogas, esquemas ilegais de todos os tipos e níveis, em meio a essa loucura Miu permanece intacta, seu semblante sempre calmo e direta em suas palavras provoca diversas emoções nesses indivíduos, ela ajuda alguns nesse entremeio com seus poderes, mas parece que tudo que toca inevitavelmente sofre consequências. É bastante intrigante o modo como age, na maior parte do tempo muito lentamente, sua postura estoica e movimentações certeiras nas cenas de ação, além da forma que encontra essas pessoas pelo caminho, parece-se muito com um sonho sombrio. Há uma imensidão peculiar nessa história que mistura elementos de fantasia que passeia pelo sobrenatural e que se mistura aos podres do mundo real. 
O ritmo da série é lenta e hipnotiza tanto pelo modo de filmagem em que a câmera gira sem parar em várias ocasiões, quanto pela estética neon/noir e trilha sonora eletropop/synthpop, além dos enquadramentos perfeitos e que várias vezes remetem a videoclipes,  muitas passagens surrealistas lembram as obras de David Lynch, as respostas dos mistérios por muitas vezes vêm de forma subjetiva e metafórica, ou simplesmente não são respondidas, a narrativa transcorre em moldes próprios e talvez essa dinâmica não agrade tanto, principalmente em seu desfecho.

O apuro estético é um deleite e a maneira incomum que se desenrola a história com personagens excêntricos que vagam pela madrugada de Copenhagen enrolados em maldade e violência e uma heroína aparentemente frágil que não sabe de onde veio para buscar vingança é um tanto inusitado. O sobrenatural se mistura a podridão do mundo real e somos absorvidos por simbologias provocantes e perturbadoras.
 
"Copenhagen Cowboy" é uma série diferenciada dentro do catálogo da Netflix e espero que tenha uma segunda temporada, apesar de achar pouco provável. Vale muito a pena assistir algo que foge das narrativas tão batidas e rasas que séries mais tradicionais trazem, sempre é bom se encantar com perspectivas diversificadas.

quarta-feira, 22 de março de 2023

A Pior Pessoa do Mundo (Verdens Verste Menneske)

  

"A Pior Pessoa do Mundo" (2021) dirigido por Joachim Trier (Thelma - 2017) é um filme repleto de questões, induz o espectador a pensar sobre si mesmo e o estar no mundo, a confusão da protagonista gera antipatia, mas ela representa a maioria das pessoas, pois a indecisão e o estar perdido diante de tantas possibilidades e probabilidades gera ansiedade e muitas vezes prostração, quem diz que sabe o que está fazendo e para onde está indo está fingindo muito bem porque a vida é instável e nada objetiva, se considerar a pior pessoa por não saber se uma escolha é melhor que outra, ou optar por coisas que não condizem com expectativas alheias, na verdade, lhe faz mais sensível e consciente.
Julie (Renate Reinsve) é jovem, bonita, inteligente e não sabe exatamente o que deseja em uma carreira ou parceiro. Uma noite ela conhece Aksel (Anders Danielsen Lie), um conhecido romancista gráfico 15 anos mais velho, e eles rapidamente se apaixonam. Ela também conhece um barista de café, Eivind (Herbert Nordrum), que também está em um relacionamento. Julie tem que decidir, não apenas entre dois homens, mas também quem ela é e quem ela quer ser. Entre idas e vindas, Julie escolhe com quem ficar e mais problemas surgem em sua vida. Com prólogo, 12 capítulos e epílogo acompanhamos Julie se mover pela vida sem muita convicção, age conforme seus desejos e encara os momentos com intensidade, mas as escolhas que faz a atingem mais para frente sempre colocando em xeque se é realmente o que quer. Sua relação com Aksel é profunda em afinidades e amor, mas Julie se vê diante da impossibilidade de seguir, anseia experiências e ao contrário de Aksel não pensa firmar a relação e nem quer ter filhos, dessas suas contradições e vulnerabilidades acaba se apaixonando por Eivind em circunstâncias de impulso e que abrangem gostosas descobertas que dura por um tempo e só aumentam suas angústias.
É interessante que aborda a vida adulta de forma realista e mostra que estar perdido e frágil aos 30 é mais comum do que se pensa. São muitas visões e experiências que se quer agarrar e nem sempre o óbvio é o caminho. Estar à deriva sem convicções onde se realiza e se desconstrói facilmente algo faz parte dessa geração que de certa maneira está mais livre de convenções impostas, mais solitárias e com estímulos a mil. Em dado momento Julie diz ser espectadora da sua própria vida, se autodeprecia por abraçar seus desejos e encarar suas escolhas com intensidade, mas isso a faz ser a pior pessoa do mundo?

Aksel tem estabilidade financeira e é bem-sucedido como quadrinista, tem uma relação de afinidade intelectual com Julie e aos poucos vai sentindo vontade de ser pai, mas Julie não está pronta para esse passo e conforme ele mergulha mais e mais em seu trabalho ela sente vontade de se libertar. O término é sofrido, eles se amam, mas cada um está em um ponto da vida, a partir desse momento as coisas começam a soar melancólicas e as escolham tomam um peso absurdo. E Aksel apesar de ter tudo certo em sua vida é surpreendido pelo inevitável, colocando tudo que construiu e se tornou em observação.
 
"A Pior Pessoa do Mundo" faz parte de uma trilogia composta por "Começar de Novo" - 2006 e "Oslo, 31 de Agosto" - 2011, que abordam conflitos existenciais com potência e sensibilidade, são obras melancólicas e que desnudam a existência humana. É preciso olhar para dentro e aprender a aceitar que a vida não pode ser controlada, há instabilidades, angústias, caminhos inesperados, surpresas e renúncias.
Vale ressaltar o incrível corroteirista Eskil Vogt que possui obras maravilhosas em parceria com Joaquin Trier e também como diretor, vide o filme "Blind" - 2014.

sexta-feira, 17 de março de 2023

To Leslie

  

 "To Leslie" (2022) dirigido por Michael Morris é um filme intimista que concentra toda sua narrativa na personagem central com seu cotidiano simplório e caótico, seus laços foram danificados por conta do vício em álcool, autodestrutiva segue seus dias no puro ócio apenas se culpando por suas escolhas. Traumatizada e atormentada ninguém mais acredita em sua mudança e é jogada de lá para cá, mas o filme não é negativo e propõe a sua redenção, é uma história sem firulas e comovente, acreditar em si mesma é o maior obstáculo de Leslie.
Andrea Riseborough dá vida a essa mulher de maneira real, não força estereótipo e em muitas vezes sentimos vergonha, tristeza, desespero, deslocamento, vagamos junto dela, sentimos na pele suas angústias e as pequenas crises de consciência que cresce à medida que compreende que a mudança só pode acontecer de dentro para fora, mas óbvio que é necessário ajuda para que o ciclo se complete, ninguém consegue sair de uma situação tão crítica sozinho, mas o tempo e o respeito àquela situação faz toda a diferença e isso se dá no personagem de Sweeney (Marc Maron), que delicadeza, paciência e empatia esse ser humano possui, alguém totalmente fora da vida dela dá o suporte, pois os familiares praticamente desistiram e nisso também não há como julgar, é algo imensurável e complexo lidar com o peso do outro, ainda mais para o filho de Leslie, que cresceu com a história de sua mãe sendo exposta e ridicularizada. Para contextualizar tudo começa quando Leslie ganha US$ 190 mil  na loteria, dinheiro que daria para organizar a sua vida e do filho, mas para comemorar ela paga uma rodada de bebidas para todos, daí a história avança seis anos e a vemos sendo despejada de um quarto de hotel barato por falta de pagamento, ela segue andando sem rumo com sua mala rosa, parando em bares e se consolando nas bebidas pagas por alguns homens, até que bate na porta de seu filho em outra cidade, o jovem a acomoda por alguns dias, mas claramente dá errado quando encontra bebidas escondidas debaixo do colchão comprados com dinheiro roubado de seu colega de quarto. Leslie é deixada na casa de conhecidos desse seu passado nebuloso, segue-se mais dores, humilhação, desnorteamento até que Sweeney lhe oferece emprego e abrigo no hotel em que trabalha.

A sutileza de Sweeney ao abordar os problemas de Leslie dando espaço para que ela mesma perceba que está se destruindo e se auto enganando, não a forçando e não desistindo no meio do caminho quando suas inconstâncias de humor se dão é primordial, só mesmo alguém que já tenha passado por um inferno semelhante é capaz de acolher alguém dessa maneira, já outras pessoas não suportam a primeira decaída, como o filho, que foi atingido em cheio pelo vício de sua mãe logo na infância, os "amigos" do passado a ridicularizam, principalmente por conta da perda do dinheiro da loteria e por ser uma cidade pequena isso se agrava mais ainda.
Algo bastante notável nesse longa é a forma de tratar esse tema com cuidado e realismo, não há excesso de dramaticidade, mas sim silêncios que sufocam e lágrimas que ficam presas nos olhos, a dor é imensa e a personagem não se dá o direito nem de sofrer por mais que sua vida esteja estraçalhada, se culpa, mas não percebe que boa parcela do que aconteceu com ela muitos tiveram responsabilidade, justamente por saberem que Leslie era imatura. Andrea Riseborough é minimalista e brilha em cena, ela toda desgrenhada e pálida dá vida a essa mulher que vaga de bar em bar buscando algo que nunca encontrará, a sua alma, modo de dizer, está trancafiada em si mesma e como é complicado a tomada de consciência para entender que mesmo deslocada e diferente dos demais há um caminho para si.
 
"To Leslie" é uma história modesta e comum, forte e preciosa, é incrível a jornada da protagonista, sua decadência arrastando todos ao redor junto de seu vício, o autoengano e traumas são tratados com sutileza, mas nunca deixando de nos afetar, seu final é um recomeço sincero. É um filme bonito com uma atuação bonita de Andrea Riseborough.