sexta-feira, 31 de maio de 2019

O Segredo de Davi

"O Segredo de Davi" (2018) estreia de Diego Freitas em longas-metragens traz novos ares para o cinema nacional, inclusive é só pesquisar que se encontra produções que estão ousando nos gêneros, vide os recentes "Para Minha Amada Morta" (2015), "As Boas Maneiras" (2017), "O Animal Cordial" (2017), "O Clube dos Canibais" (2018), "Aos Teus Olhos" (2017), "Morto Não Fala" (2018), entre outras maravilhas. Neste há uma mescla de gêneros riquíssima e que remetem a obras cinematográficas hollywoodianas. É um thriller psicológico que desafia o espectador, além de flertar com o fantástico e ao mesmo tempo utilizar boas doses de drama de maneira delicada e envolvente, há um mistério pungente e uma tensão por todo o seu desenrolar e a trama surge em camadas complexas e reviravoltas interessantes. Por haver uma certa confusão em seus desdobramentos pode não agradar a alguns espectadores, mas a junção de elementos e sua qualidade é inegável. Sem deixar de mencionar a atuação de Nicolas  Prattes, que nos transporta para suas particularidades e nos incute curiosidade a cada atitude sua.
Davi (Nicolas Prattes) é um jovem voyeur, que adora filmar os outros sem ser percebido. Um dia conhece Jonatas (André Hendges), mais velho que ele, que está na mesma turma da faculdade por cursá-la como eletiva, para o mestrado. Davi sente um estranho fascínio pelo novo colega e, após uma conversa macabra, decide ele mesmo eliminar pessoas que considera dispensáveis. Sua primeira vítima é uma vizinha (Neusa Maria Faro), que mal fala com as pessoas. Ao matá-la, Davi é surpreendido com o súbito reaparecimento dela, revelando que há algo por trás dos atos do agora serial killer.
Seguimos a rotina de Davi na faculdade e sua obsessão em filmar estranhos sem que eles percebam, quando ele se depara com Jonatas logo se encanta e começam uma amizade toda permeada por sentimentos ambíguos, Davi sofre bullying, é quieto, solitário e muito inteligente, seu passado é uma incógnita e conforme as pistas vão aparecendo percebemos que ele é um tanto transtornado, a confirmação disso vem com o primeiro assassinato que comete contra a vizinha, mas algo macabro acontece e a vítima reaparece na casa dele cuidando e dizendo o que precisa fazer, Davi então se torna um serial killer com o propósito de entender o seu passado e recuperar novamente sua família.
Com um ritmo lento e intimista acompanhamos as descobertas de Davi e também suas ações que se tornam cada vez mais execráveis, inclusive algumas cenas mostrando violência explícita, outra coisa que o atormenta é a relação complicada entre ele e Jonatas, seus desejos afloram enquanto o outro não corresponde, há um jogo de tensão sexual bem forte. Há momentos de puro delírio, porém o jovem não deixa se abater e as reviravoltas finais evidenciam sua personalidade manipuladora e fria.

A ambientação do longa certamente possui inspirações em produções hollywoodianas, o clima não combina com o cenário, mas mesmo assim não afeta o todo, a narrativa é o principal, assim como a meticulosidade de seu protagonista, seu comportamento, pensamentos entre delírios e sua inteligência absurda captura nossa atenção, somos jogados num quebra-cabeça em que a chave para entender as motivações de Davi se dá em seu passado turbulento e perturbado, o filme vai misturando as pistas que envolvem sua família juntamente com seus desejos aflorando, sejam eles sexuais ou de vingança. Pode parecer uma obra truncada, mas retrata com maestria uma mente doente e o principal, sem romantizar a violência e a personalidade de um serial killer.

"O Segredo de Davi" é um thriller psicológico que demonstra toda a dissociação do personagem por conta de seus traumas e sua ardilosidade para acobertar suas ações. Denso e intrigante em suas diversas camadas é um filme caprichado e muito bem elaborado até mesmo quando confunde e se desalinha. 

quarta-feira, 29 de maio de 2019

O Anjo (El Ángel)

"O Anjo" (2018) dirigido por Luis Ortega e produzido por Pedro Almodóvar é baseado na história real de Carlos Robledo Puch, que assassinou 11 pessoas e ficou conhecido como "o anjo da morte" na década de 70 - atualmente ele ainda está preso, sendo o encarcerado mais longo da Argentina. O filme retrata a adolescência do rebelde Carlitos que tem a mania de roubar objetos e levar para casa dando a desculpa de que são emprestados por amigos, os pais se fingem de bobos e assim levam a vida até que ele encontra Ramón e se apaixona tanto por ele quanto pela vida criminosa.
Desde a adolescência, Carlos (Lorenzo Ferro) tem o hábito de invadir casas alheias, pelo simples prazer que o ato lhe dá. Às vezes ele leva algo para casa mas jamais para ganhar dinheiro, apenas para curtir o momento. Ao conhecer Ramón (Chino Darín - filho de Ricardo Darín) em sua nova escola, ele logo é apresentado a um universo mais profissional de crimes, já que o pai de Ramón é veterano da área. Carlos logo se destaca pela ousadia nos crimes que comete, impulsionado pela atração que sente por Ramón. Com o tempo, a displicência com os demais faz com que cometa onze assassinatos e se torne um dos criminosos mais procurados da Argentina.
Cheio de cores e estilo a história fisga pelo charme envolvendo o personagem e sua personalidade fria que ao longo vai se tornando perturbadora, o pai de Ramón, ladrão profissional que já foi preso vê nesse garoto potencial e o aproveitam ao máximo, quando decidem roubar uma loja de armas surpreendem-se e aí inicia-se uma série de outros roubos em que Carlitos nunca satisfeito sempre pretende mais, quando experimenta atirar e matar sua frieza e audácia se eleva. Ele é um garoto bonito e que jamais seria visto como um bandido, portanto se beneficia dessa situação e comete as piores atrocidades. Em dado momento Carlitos e Ramón se autodenominam como "Eva e Perón" e o tempo todo existe uma enorme tensão sexual entre eles, Carlitos está se descobrindo sexualmente e a liberdade que existe na casa de Ramón o deixa confortável, Ramón claramente é próximo dele por ambição, mas há uma química perfeita entre eles, o modo que Carlitos busca sua liberdade é desumana e distorcida, quando ele diz sobre o porquê rouba e a maneira que lida com as mortes é dissimulada e debochada.
"Eu sou um ladrão de nascença. Eu não acredito em isso é seu, e isso é meu".

A reprodução da época é genuína, a fotografia é deslumbrante, sua trilha sonora é cheia de movimento, vide a cena de Carlitos dançando ao som de "El Extraño Del Pelo Largo", da La Joven Guardia, e a narrativa cativa e é bem fechada, além das incríveis atuações, o jovem Lorenzo Ferro faz sua estreia com espontaneidade e firmeza, a dupla que faz com Chino enriquece bastante a obra, existe uma gama de sentimentos entre eles, a paixão que pulsa, o encantamento com a liberdade de ser do outro, a ambição desenfreada e os desejos que se confrontam. Carlitos entra numa espiral de violência e ele ama essa sua loucura. Seus pais não sabem o que fazer, ele aparece quando quer e até o último momento fecham os olhos para a realidade, só no último instante é que encaram, pois a mídia sensacionalista entra em cena e a polícia está a sua procura, então a mãe resolve agir e denunciar o filho. A história não tem surpresas, até porque é baseada em fatos e o que puxa mesmo a atenção é sua beleza estética e charme nas tomadas e seus close-ups.

"O Anjo" traz um personagem cínico e com uma frieza que seduz e até cria-se uma empatia, o que incomoda, o filme segue pela direção do entretenimento e há muita jocosidade na maneira que os crimes são encenados, no final mesmo gostando do longa, pois é inegável suas qualidades, acaba promovendo uma culpa e surge a reflexão sobre a necessidade dessas cinebiografias que transformam assassinos em atração cinematográfica. É um ótimo filme, mas a romantização e a caricatura em torno é de se questionar.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

The Great Buddha+

"The Great Buddha+" (2017) dirigido por Hsin-yao Huang é um filme taiwanês simples que retrata o cotidiano de dois homens pobres que passam o tempo conversando e olhando as filmagens da câmera do carro do chefe, além de colocar a cultura desse pequeno país asiático em questão e explorá-la de maneira irônica. A fotografia em preto e branco garante seu tom poético e ressalta a crueza dessa realidade tão desvalida. 
Pepino (Cres Chuang) é vigia noturno numa fábrica de estátuas de bronze. Seu colega, Umbigo (Bamboo Chu-Sheng Chen), coleta material reciclável durante o dia. O maior prazer na vida de Pepino é folhear durante as madrugadas as revistas pornô coletadas por Umbigo. Lanches tarde da noite e assistir televisão são parte integral de suas vidas monótonas. A história envolve deuses, desejo sexual de homens de meia-idade e conversa entre fantasmas e humanos. Talvez a audiência a ache ridícula, mas a própria vida não é uma farsa?
Acompanhamos a vida tediosa e miserável de Pepino, um vigia noturno de uma fábrica de estátuas de bronze, há uma enorme expectativa no local de dia pela construção de um buda gigante, mas a noite o vazio toma conta e a única distração desse pobre homem é seu amigo Umbigo que anda pelas ruas recolhendo material reciclável, todas as noites ele vai visitá-lo e leva algumas revistas pornográficas e trocam ideias aleatórias. Umbigo entediado decide olhar as filmagens da câmera do carro do patrão de Pepino, uma medida de segurança que virou moda segundo eles, a maioria são imagens enfadonhas, porém existem várias que demonstram o quão mulherengo o patrão é, inclusive arranjando atritos entre as amantes, eles os escutam transando no carro, as discussões e até que desse passatempo sai algo pesado e do qual eles nunca esperariam ver, total comprometedor e que mexe com a moral de Umbigo.
O filme possui sacadas inteligentes e a maioria das imagens surgem como símbolos, discute a cultura religiosa e a hipocrisia das pessoas, a cena em que pedem a opinião sobre a estátua para os devotos é uma boa demonstração, repleta de acidez mas tudo com muita sutileza e destreza. Também coloca em evidência a grande discrepância social numa série de situações engraçadas, além dos ótimos diálogos que surgem de conversas que parecem não ter sentido, mas que acabam surtindo um efeito impactante.

Enquanto assistem as filmagens os dois confabulam e dizem frases com alto poder de reflexão de uma maneira simples, e analisando percebemos que toda a vida é uma farsa, principalmente a dos mais abastados que fingem a maioria das coisas, e constatamos mais uma vez que a corda sempre vai arrebentar do lado mais fraco. Um aspecto interessante da obra é a metalinguagem, como a intromissão do diretor narrando e explicando algumas partes e também colocando cor somente quando comentam o quanto a vida dos ricos é colorida, ou mencionando que ninguém verá a cor de tal coisa e, portanto, citá-la não faz sentido.

"The Great Buddha+" é um filme crítico e irônico e um belíssimo exemplar de cinema orgânico, não se prende a gêneros e flui de maneira particular, uma experiência fascinante, reflexiva e divertida a seu modo.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Heavy Trip (Hevi Reissu)

"Heavy Trip" (2018) dirigido por Jukka Vidgren e Juuso Laatio é um filme que traz o que mais representa a Finlândia, o metal, e o que se destaca são as variáveis de humor que vai desde o absurdo e seco ao bobo e surreal, além da trilha sonora que é um deleite e traz canções originais concebidas pelo diretor Juuso e o integrante da banda Mors Subita, conta também com outras bandas finlandesas, como Mokoma e Diablo. O filme traz a aura musical do país e coloca de forma divertida todas as características e estereótipos envolvendo o gênero.
Um jovem está tentando superar seus medos liderando a banda de heavy metal mais desconhecida para o festival de metal mais famoso da Noruega. A jornada inclui heavy metal, roubo de túmulos, um paraíso viking e um conflito armado entre a Finlândia e a Noruega.
Numa pacata cidadezinha rural no norte da Finlândia acompanhamos o jovem desajustado Turo (Johannes Holopainen) que trabalha em um hospital psiquiátrico como faxineiro, ele e seus três amigos Pasi (Max Ovaska), Lotvonen (Samuli Jaskio) e Jyrki (Antti Heikkinen) cansados de tocar covers decidem compôr algo original, mas não é algo simples e fácil, já que tudo que começam a fazer se parece com outras coisas, ainda mais que Pasi é uma enciclopédia do metal e reconhece riffs sem esforço, aliás esse personagem encarna perfeitamente o estereótipo envolvendo o metal, desde o codinome, o corpse paint e a vibe melancólica e trevosa, já o baterista Jyrki é animado e sempre encara as situações como oportunidade, ele dá a maioria das ideias, mas é o baixista Lotvonen que tem o insight da música quando no matadouro de renas de seu pai escuta o estraçalhar do animal passando pela máquina. A obra-prima então é composta, "Flooding Secrations", aí gravam uma demo e numa chance que aparece do nada e muito loucamente a dão para Frank (Rune Temte), o organizador de um festival na Noruega, o sonho de tocar lá parece que irá se realizar e a fofoca se espalha pela cidadezinha e todos começam a bajulá-los, os meninos ficam famosos entre os habitantes e até desbancam o cantor pop mais famoso do local, Jouni Tulkku (Ville Tiihonen), eles são convidados a abrir o show para ele, só que Turo é muito inseguro e vomita, o que acaba sendo depois sua marca registrada. A banda é nomeada "Impaled Rektum" e o estilo é denominado como "metal sinfônico pós-apocalíptico de trituração de renas e guerra pagã extrema abusadora de Cristo", uma clara sátira aos tantos subgêneros dentro do metal, e é isso o tempo todo, uma história divertida e movimentada sobre uma banda de uma cidade caipira que sonha tocar num festival na Noruega e para isso enfrentam as mais absurdas situações.

Chega um ponto em que eles precisam pegar a estrada e tentar de todas as maneiras chegar à Noruega mesmo não sabendo se poderão tocar, depois de muitas loucuras e inesperados acontecimentos, como o maluco do hospital psiquiátrico que Turo trabalha no lugar de Jyrki, eles roubam a van de Jouni e partem, no caminho passam por episódios absurdos incluindo explosões e terminam a viagem num barco viking. Claro que o grand finale é o show e a surpreendente apresentação. É uma viagem em todos os sentidos e a história garante ação, diversão e uma enorme dose de metal, para apreciação do todo com certeza é necessário ter o gosto pela cultura do heavy metal.

"Heavy Trip" tem um enredo divertido e todos os personagens possuem características simpáticas e até ingênuas, e o lado maldito que acompanha o metal se torna engraçado, uma surpresa agradável vinda da Finlândia, país famoso pela exportação de inúmeras bandas e também pelo grande apoio e amor à música pesada. Que venham mais filmes destinados ao metal! 

terça-feira, 21 de maio de 2019

Chicken

"Chicken" (2015) dirigido pelo estreante Joe Stephenson é um drama delicado que vai se desnovelando para algo muito intenso, possui ótimas e emocionantes atuações e uma história marcante repleta de segredos e traumas. Ambientada num cenário rural contemplamos uma naturalidade impressionante e uma pobreza dilacerante.
Richard (Scott Chambers), 15 anos, tem dificuldades de aprendizagem e almeja criar raízes, mas seu irmão (Morgan Watkins) é inquieto e destrutivo. Quando a terra onde vivem é comprada por um novo proprietário e o fornecimento de eletricidade é cortada, suas condições já precárias, ficam ainda pior. Em seguida, um encontro casual com a filha do novo proprietário, de 17 anos, Annabel (Yasmin Paige), deixa Richard obcecado; enquanto Polly faz amizade com os rapazes que executam uma feira itinerante decadente. Richard tem uma visão otimista sobre a vida, Polly piora, segredos de família são revelados. A vida de Richard está prestes a mudar para sempre.
Richard é um adolescente que possui problemas de aprendizagem e que detém uma alma gentil, sua alegria é conversar com sua galinha de estimação, Fiona, e andar pelas redondezas e pelas fazendas ao lado, ele se autodenomina um fazendeiro, já seu irmão vive de maneira irresponsável ora roubando, ora bebendo e pouco faz para Richard, o trata com desdém enquanto diariamente Richard prepara o escasso café da manhã, eles moram em um trailer sujo que está dentro de uma propriedade particular, as coisas começam a piorar quando novos donos compram o local, mas o que mais detona a situação é o modo como Polly age, sempre querendo fugir e não ligando para o irmão. Sozinho com sua galinha anda a esmo procurando alguma fruta ou verdura que consiga roubar, até que um dia encontra Annabel, filha dos novos proprietários, ela se encanta pela doçura e se compadece pela situação, se inicia uma bonita amizade e novas cores surgem. Richard é tão meigo e Annabel tem tanta paciência, os diálogos e olhares enquanto caminham dão à história um tom natural e doce, claro que por conta da personalidade de Richard. Tudo o que ele realmente quer é o amor de seu irmão, só que este não consegue nem encará-lo. Richard sai um pouco de seu mundinho quando começa a andar com Annabel, juntos exploram o local, conversam e Richard sempre sorridente lhe conta sobre suas coisas, é uma relação que se forma de maneira sutil e se desenvolve com imenso brilho.

A trama discreta e pacata de início inesperadamente surge com momentos de emoções intensas e pesadas, sempre relegado e passando necessidade parte o coração ver Polly maltratar o irmão e dizer palavras duras, ao mesmo tempo que ele também sofre ao correr atrás de algum emprego, quando segredos se revelam aí então compreendemos os sentimentos complexos que habitam nele. 

"Chicken" engana por sua simplicidade, na verdade ele é imenso e memorável, impossível não se desmanchar em lágrimas ao final, impacta e deixá-nos desamparados, assim como o adorável Richard, porém a esperança surge e Annabel o abraça e o acolhe, uma atitude linda e que conforta o seu tão machucado coração. Um filme sensível, emotivo e demasiado humano!

sábado, 18 de maio de 2019

Thunder Road

"Thunder Road" (2018) escrito, dirigido e protagonizado por Jim Cummings é uma extensão de seu curta homônimo super elogiado realizado em 2016, Cummings faz um trabalho excepcional e nos presenteia com uma obra independente sensível e muito interessante.
Jim Arnaud (Jim Cummings) é um policial do Texas que está tentando criar sua filha da melhor maneira possível. É um retrato tragicômico de uma figura autoritária americana que está falhando tanto no cenário pessoal quanto profissional.
O filme abre apresentando Jim, um policial disléxico, no velório de sua mãe, um plano-sequência notável em que podemos perceber sua personalidade peculiar, seu jeito de lidar com o luto e toda a performance colocando a música preferida da mãe, "Thunder Road", de Bruce Springsteen e seu discurso nos faz chegar mais perto dele e prosseguir atento ao desenrolar, conferimos então sua tristeza e angústia em ter perdido a mãe e a dificuldade em se concentrar no trabalho devido seus problemas pessoais, como tentar se aproximar da filha e esta evitar ele a todo custo, todos os obstáculos que surgem em sua vida também nos afeta, cria-se uma intimidade em que variadas partes flerta com um humor absurdo e inteligente, mas em todo momento o que se sobressai é o tom humano.
Jim fala bastante e tem muitos rompantes que até impressionam e assustam o espectador, porém logo percebemos que é uma boa pessoa e que necessita de carinho e companhia, ele é espontâneo, impulsivo e até ingênuo, como no caso da guarda da filha. É admirável o como lida com as situações sempre olhando o lado positivo das pessoas e ainda tem sorte porque tem um amigo, seu parceiro de trabalho Dustin (Nican Robinson), mesmo Jim sendo bobo ou nervoso nunca deixa de acolhê-lo em sua família, em determinada parte sua presença faz enorme diferença, pois Jim está completamente sozinho e perdido. Quando ele decide procurar a irmã para conversar percebe que não é bem-vindo, ela lhe diz o como se sente em relação a mãe, o que difere muito de sua visão, além disso outras circunstancias tristes acontecem, mas que servem para que sua filha o olhe com mais carinho e compreensão. 
É um estudo de personagem sensível e inteligente, Cummings impressiona na sua entrega, a narrativa nos prende e nos coloca perto de seus sentimentos e ficamos curiosos sobre suas possíveis reações nas mais diversas situações, a forma que cada um encara o luto e depois segue em frente é particular e é isso que o longa reflete, esse estágio tão delicado e único a cada um.

O personagem é a grande atração, mas em nenhum momento a história se encolhe, Jim vai reagindo espontaneamente e nos fornece cenas memoráveis, como quando decide homenagear sua mãe no velório tocando sua música preferida, mas o rádio não funciona e então resolve dançar, é bastante estranho e causa vergonha alheia, as pessoas se levantam e começam a questionar a sanidade dele, ninguém o leva a sério ou dá importância para sua dor, ninguém se importa e na primeira oportunidade usarão esses seus comportamentos esquisitos para complicar ainda mais sua vida.

"Thunder Road" é um filme simples e inteligente, a comédia permeia boa parte da trama, mas em sua maioria gera um riso de nervoso e a vontade que dá é a de abraçar o personagem, já outras vezes chacoalhá-lo. Vale ressaltar que é um filme independente feito com um orçamento de apenas 140 mil dólares, porém com muita qualidade em todos os quesitos e é uma pena que não tenha ganhado visibilidade. 

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Filmes que Incentivaram Leis ou Abriram Discussões em seus Países

Segue uma lista de filmes que promoveram discussões, denunciaram e/ou incentivaram e até mudaram leis em seus países, são obras pertinentes e valiosas para obter conhecimento e expandir as ideias. 

12- "A Lei da Herodes" (La Ley de Herodes - 1999) México
"A Lei de Herodes" (1999) dirigido pelo mexicano Luis Estrada (A Ditadura Perfeita - 2014) é um filme de humor ácido que retrata todos os possíveis e impossíveis artifícios utilizados no meio da política para atingir o poder, expõe sarcasticamente a corrupção e o que o poderio faz com o ser humano. Carrega uma forte crítica social com personagens caricatos e inescrupulosos. Representa de forma mordaz o poder e a corrupção política no México durante o longo mandato do Partido Revolucionário Institucional (PRI). O longa foi produzido em 1999, portanto, o país ainda estava sob domínio do partido.
Uma importante obra para evidenciar e denunciar essa ditadura. Diante do sucesso e polêmica do filme, de certa forma, ajudou na queda do partido PRI em 2000, que estava há 70 anos no poder.

11- "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias" (4 Luni, 3 Saptamâni Si 2 Zile - 2007) Romênia
Em 1987, nos últimos dias do comunismo, Otilia (Anamaria Marinca) e Gabita (Laura Vasiliu) dividem um quarto num dormitório estudantil. Elas são colegas de classe na universidade de uma pequena cidade romena. Gabita está grávida e o aborto é ilegal no país. Otilia aluga um quarto num hotel barato. Lá elas recebem um certo Sr. Bebe (Vlad Ivanov), chamado para resolver a questão. Mas, ao saber que Gabita está com a gravidez mais adiantada do que havia informado, Sr. Bebe aumenta as exigências para o serviço. Ele cobra um preço que as duas não estão preparadas para pagar.
A questão do aborto na Romênia foi revista após a estreia do filme e hoje consideram dentro da lei um aborto feito até a 14ª semana de gestação não importando o motivo.

10- "Kler" (2018) Polônia
O filme segue três padres que se encontram depois de anos. O caminho de cada um deles foi completamente diferente: o primeiro decidiu fazer carreira, o outro trabalha em uma paróquia rural, o terceiro, apesar de ser extremamente crente, perde a confiança de seus paroquianos. O que acontecerá quando os três se cruzarem novamente? 
O filme tem causado polêmica na Polônia, vários membros de um partido importante se colocaram contra o filme devido a abordagem que consideraram negativa, já por outro lado a discussão sobre pedofilia foi abastecida e também pela influência da igreja num dos países mais devotos do mundo. Vários casos foram e estão sendo julgados e reparados por todos os danos causados às vítimas.

09- "Que Horas Ela Volta?" (2015) Brasil


"Que Horas Ela Volta?" (2015) dirigido por Anna Muylaert (É Proibido Fumar - 2009) aborda de maneira simples uma questão bastante pertinente, a diferença entre classes sociais no Brasil, principalmente a relação entre patrões e empregados. A pernambucana Val se mudou para São Paulo a fim de dar melhores condições de vida para sua filha Jéssica. Com muito receio, ela deixou a menina no interior de Pernambuco para ser babá de Fabinho, morando integralmente na casa de seus patrões. Treze anos depois, quando o menino vai prestar vestibular, Jéssica lhe telefona, pedindo ajuda para ir à São Paulo, no intuito de prestar a mesma prova. Os chefes de Val recebem a menina de braços abertos, só que quando ela deixa de seguir certo protocolo, circulando livremente, como não deveria, a situação se complica.
O filme estreou quase junto com a "PEC das domésticas" que regulamenta e garante direitos trabalhistas às empregadas domésticas do país, o fato é que com certeza por conta do filme as pessoas passaram a pensar sobre a importância e o quão demorado foi o processo da aprovação da PEC, o olhar se expandiu em direção às domésticas e que mesmo a passos lentos algo está acontecendo.

08- "Ferrugem" (2018) Brasil
Assim como a maioria das meninas adolescentes Tati (Tiffanny Dopke) ama compartilhar sua vida nas redes sociais. Porém, quando menos espera, ela vai ter que amadurecer e lidar com as consequências de seus atos, depois que algo que ela não queria que se tornasse público é divulgado no grupo do WhatsApp de sua turma de colégio.
Outra coincidência de leis aprovadas no Brasil juntamente com a estreia de um filme, dessa vez foi da lei que criminaliza ações de divulgação de conteúdo sexual, fotos e vídeos vazados, a lei  ainda atribui à Polícia Federal a investigação de crimes praticados pela internet que difundam conteúdo misógino, de ódio ou de aversão às mulheres. O filme promoveu uma campanha de conscientização sobre machismo, misoginia, suicídio, bullying virtual, revenge porn, temas tão atuais e que mostram que as vítimas necessitam muito de um amparo da lei, portanto a aprovação da lei coincide com a estreia do filme e expõe a importância de retratar o assunto gerando assim debates e discussões importantes.

07- "Heli" (2013) México
Passado em uma cidade no interior do México, assolada pelo domínio do crime organizado, Heli acompanha a dura realidade de uma família que se vê tragicamente inserida em uma trama de corrupção e vingança, a partir do namoro de uma jovem garota, irmã do personagem que dá nome ao filme, com um cadete policial envolvido com os criminosos locais. Rapidamente é possível perceber que a real protagonista do filme é a violência que condiciona as ações dos personagens e determina as consequências. Para cada ato, existe uma reação e ela é necessariamente codificada como uma expressão violenta.
O filme promove com muita coragem uma denúncia em torno da violência e corrupção do narcotráfico no México, a vida de pessoas comuns sendo destruídas e ceifadas por essa realidade crua e torturante. É um filme que retrata o narcotráfico que domina várias regiões do México com realidade e uma violência explícita, assim como a polícia corrupta e o sofrimento de muitos mexicanos envoltos por esse terror. Uma importante obra que abre nossos olhos para esta cruel situação no país.

06- "Moolaadé" (2004) Burkina Faso
"Moolaadé" (2004) último filme dirigido por Ousmane Sembene (Faat Kiné - 2001) é um grito de liberdade contra uma suposta cultura religiosa, uma realidade cruel e bruta da qual meninas passam em prol da "purificação", a mutilação genital não é uma prática exclusiva do Islamismo, que aliás não está no Alcorão, é uma prática sem fundamento e selvagem que inferioriza a mulher. Em alguns lugares se a mulher não for circuncidada são excluídas da sociedade, este filme levanta questões importantes e impacta pela violência que essas mulheres passam, e certamente um meio de promover a rejeição a este ato.
Numa aldeia africana, o costume da mutilação genital feminina, uma operação dolorosa, é temida por todas as garotas. Seis delas devem passar pelo ritual num determinado dia. O pavor é tanto que duas afogam-se num poço. As outras quatro buscam a proteção de Collé (Fatoumata Coulibaly), uma mulher que não permitiu que a filha fosse mutilada, invocando o "moolaadé" (proteção sagrada). Mas vários homens pressionam o marido de Collé para que retire a proteção, nem que para isso ele tenha de chicoteá-la.
É um filme que denuncia essa prática cruel e que discute acerca sobre esses costumes religiosos cruéis e machistas, a prática foi abolida em diversos países da África, como Cabo Verde, Guiné-Bissau, Gâmbia, Líbia, Malávi, Mali, Namíbia, Nigéria, Ruanda, Senegal, África do Sul, Angola. O filme teve grande importância para gerar debates em inúmeros países e a ilegalização e o restringimento está cada vez mais forte, além do reconhecimento como sendo uma violação dos direitos humanos.

05- "Uma Mulher Fantástica" (Una Mujer Fantástica - 2017) Chile
"Uma Mulher Fantástica" (2017) dirigido por Sebastián Lelio (Gloria - 2013) é um filme real e essencial que disserta sobre o preconceito e a discriminação intrínseca, comentários, olhares, curiosidade, e também explícitos, como na repulsa e suspeitas, é preciso muita força perante tanta ignorância, atitudes absurdas e julgamentos das pessoas. Com sutileza, coragem e muita determinação a personagem passa por diversas tristezas, privações, mas segue firme, ela precisa encontrar o seu caminho. Marina (Daniela Vega) é uma garçonete transexual que passa boa parte dos seus dias buscando seu sustento. Seu verdadeiro sonho é ser uma cantora de sucesso e, para isso, canta durante a noite em diversos clubes de sua cidade. O problema é que, após a inesperada morte de Orlando (Francisco Reyes), seu namorado e maior companheiro, sua vida dá uma guinada total.
Por conta do sucesso do filme ocorreu a aceleração do trâmite do projeto de lei para garantir o reconhecimento jurídico de pessoas trans, estabelecendo o direito à retificação do nome e do sexo no registro quando estes não coincidem com a identidade de gênero.

04- "Cafarnaum" (Capharnaüm - 2018) Líbano
"Cafarnaum" (2018) dirigido por Nadine Labaki (Caramelo - 2007, E Agora, Aonde Vamos? - 2011) é um drama pesado e ao mesmo tempo sensível que retrata a miséria e o caos moral e social, além disso um filme que se posiciona e denuncia questões primordiais, por exemplo, o casamento de meninas menores de idade e a consciência sobre colocar mais vidas neste mundo falido. A dor que envolve a história é enorme, certamente os olhos do protagonista ficarão cravados na memória do espectador, também causa espanto pelas atrocidades pelas quais passa para a sobrevivência e o seu incrível senso de responsabilidade moral e clareza diante deste núcleo caótico em que vive.
Aos doze anos, Zain (Zain Al Rafeea) carrega uma série de responsabilidades: é ele quem cuida de seus irmãos no cortiço em que vive junto com os pais e que leva o alimento trabalhando em uma mercearia. Quando sua irmã de onze anos é forçada a se casar com um homem mais velho, o menino fica extremamente revoltado e decide deixar a família. Ele passa a viver nas ruas junto aos refugiados e outras crianças que, diferentemente dele, não chegaram lá por conta própria.
É um filme altamente crítico e que contempla uma série de temas importantes, como miséria, taxa de natalidade e imigração, certamente faz a diferença promovendo sua visão real e incômoda e também oferecendo uma nova vida ao pequeno protagonista que conseguiu asilo na Noruega com sua família.

03- "Sombra Branca" (White Shadow - 2013) Alemanha/Itália/Tanzânia
Alias está crescendo na selva africana. Por ser albino, ele é vítima de insultos e precisa lidar com a crença de que os corpos dos albinos oferecem poderes mágicos, muito comum entre curandeiros e moradores da região. Os albinos são assassinados e mutilados para que se consiga uma parte encantada de seus corpos. Determinada a salvar Alias, sua mãe o confia a seu irmão, Kosmos, que dirige pequenas empresas na cidade.
Coprodução tanzaniana, francesa e alemã dirigida por Noaz Deshe, um filme que traz à tona a perseguição a albinos na Tanzânia. Além do preconceito, uma crença brutal ainda presente no país diz que partes dos corpos dos albinos podem trazer riquezas e boa sorte. Os produtores do filme dizem ter esperança de que a obra lance luz sobre o problema.

02- "Abutres" (Carancho - 2010) Argentina
"Abutres" (2010) de Pablo Trapero é um drama urbano, uma denúncia social, a inteligência do longa surpreende e demonstra mais uma vez que o cinema argentino esbanja vitalidade. Acompanhamos Sosa (Ricardo Darín), um advogado, cuja licença fora caçada, que vive de explorar a miséria dos outros. Sosa faz plantão em hospitais à espreita de potenciais processos e indenizações de seguradoras. É em uma dessas tocaias que conhece a médica Lújan (Martina Gúsman). Sosa se apaixona e, então, sua rotina passa a ser um obstáculo monstruoso.
Um filme que funciona como um ótimo thriller e que se tornou de uma relevância social gigante, pois devido o impacto da denúncia da máfia das seguradoras o congresso argentino mudou a legislação de seguros para acidentes automotivos.

01- "Rosetta" (1999) França/Bélgica
A jovem e impulsiva Rosetta (Emile Dequenne) vive num trailer, com sua mãe (Anne Yernaux), alcóolatra e agressiva. Sua vontade de mudar de vida é tanta que todos os dias ela luta muito por um emprego. Seu maior problema nem sempre é achá-lo, e sim manter-se nele. Ela sai à procura de trabalho como alguém que está indo para a guerra e, nesta sua luta cotidiana para sair da pobreza e levar uma vida "normal", vale tudo. 
Dirigido pelos irmãos Dardenne o filme possui um tom documental e demonstra com angústia o sofrimento cotidiano da protagonista que carrega um peso enorme para sua pouca idade, ela busca incessantemente trabalho estável, mas se depara com um sistema cruel e desesperançoso. O filme inspirou os legisladores da Bélgica a criarem a "Lei Rosetta", que protege os diretos trabalhistas dos adolescentes. 

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Uma Terra Imaginada (A Land Imagined)

"Uma Terra Imaginada" (2018) dirigido por Yeo Siew Hua (A Casa de Palha - 2009) é um filme com uma narrativa alegórica, sensorial e enigmática, retrata a vida castigada de imigrantes que labutam e sonham em ter um lar, o sofrimento, a solidão e uma ponta de esperança marcam essa interessante obra que está disponível no catálogo da Netflix.
Em Singapura, um detetive investiga o desaparecimento do imigrante chinês, Wang (Liu Xiaoyi). Aos poucos, o oficial descobre que o homem tinha uma rotina de tensão e ansiedade, preocupado com a possibilidade de ser deportado enquanto aguentava a árdua jornada de trabalho como funcionário de uma construção civil. O detetive decide ir até uma lan house que Wang frequentava toda noite, e lá encontra Mindy (Yue Guo), anfitriã do estabelecimento. 
É necessário imergir na história para captar todos seus detalhes, pois sua narrativa não é direta e são os detalhes que fazem a diferença, as imagens nos dizem muito mais que os diálogos, assim como o olhar e o comportamento dos personagens. Adentramos na vida de um imigrante chinês, Wang, que trabalha em Singapura numa empresa de aterramento marítimo, o trabalho é pesado e as condições precárias, um dia ele se machuca e acaba sendo remanejado para dirigir um caminhão levando outros trabalhadores, sempre recluso e calado sua única distração é ir em uma lan house e conversar com a moça que trabalha lá. Em paralelo vemos um detetive refazendo todos os passos de Wang, que desapareceu misteriosamente, ele sente alguma identificação, principalmente por ambos sofrerem de insônia e a solidão que permeiam suas vidas. São essas duas linhas narrativas, ora mostrando Wang, ora o detetive, que cada vez mais se afunda nas possíveis pistas e intrigado chega num ponto em que tudo se mistura como num sonho. 
Com estilo noir e ritmo pacato embarcamos em uma história com boas doses de realismo e camadas de críticas sociais envolvendo as condições de trabalho dos imigrantes em Singapura, a solidão que os atinge e a sensação de não pertencimento, além de expor um lado caótico desse local considerado super desenvolvido e moderno tudo por conta da expansão agressiva e massiva do aterro marítimo, que mesmo com todos os possíveis danos climáticos e ambientais o governo pretende expandir ainda mais. Seu maior triunfo é fugir completamente do estereótipo vendido nos panfletos de turismo, por trás de toda a riqueza existe um universo miserável cujas pessoas exploradas sonham um dia poder ter espaço em algum canto, e é por conta dessa ambientação sombria nesses locais de aterramento marítimo que o longa consegue passar uma sensação de incômodo e tristeza. A realidade esmaga assim como as toneladas de areia que fazem o mar desaparecer.

O filme pode entediar em várias partes e causar sentimentos de incompreensão, mas a importância do cenário e o que ele representa faz a diferença para captar o personagem, veja que quanto mais o detetive busca informações e visita o local mais angustiado fica, existe um abismo entre a imagem turística da ilha para o que é a realidade por trás disso tudo, em prol do desenvolvimento esses trabalhadores são expostos a condições horríveis e opressivas, o patrão chega a confiscar os passaportes para que não tenham a liberdade de ir e vir, e enquanto ao redor tudo muda e se expande para um suposto melhoramento eles se apequenam diante o poder e a grandeza que tudo isso emana.

"Uma Terra Imaginada" retrata a vida miserável dos imigrantes em Singapura, que é conhecida pelo seu alto desenvolvimento e riqueza, mas em contrapartida a desumanidade, a solidão, a angústia, a sensação de não pertencer a nenhum lugar e a falta de perspectiva é o que resta a estas pessoas que se desdobram em serviços escravizantes e que acabam esmagadas pelas gigantescas obras que levantam. Por mais que seja uma história confusa e seus personagens por vezes se embaralhem numa aura de sonho o seu teor duro e real permanece.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Mãos Sujas (Manos Sucias)

"Mãos Sujas" (2014) dirigido por Josef Kubota Wladyka é um filme que se assemelha muito a um documentário, tanto pelo tema abordado como pela naturalidade da obra, mas também funciona muito bem como um thriller, o tom aflitivo permeia todo o desenrolar e a carga dramática exibida pelos atores impressiona. Também é um filme-denúncia ao retratar a gigante discrepância socioeconômica da população local da Colômbia.
O pescador Jacobo (Jarlin Javier Martinez) e o jovem Delio (Cristian James Abvincula) embarcam em uma perigosa viagem pela costa do Pacífico transportando drogas. Escondidos sob as ondas, os dois rebocam um narcossubmarino cheio de milhões de dólares em cocaína vinda diretamente da Colômbia. Juntos, os dois devem enfrentar o mar aberto e regiões devastadas pelo tráfico e pela guerrilha. Jacobo já é um traficante experiente, enquanto que o jovem Delio não está preparado para a dura realidade ao seu redor, e a tensão entre os dois revela-se inevitável.
A luta pela sobrevivência dá o tom à história, vamos juntos de Jacobo e Delio, rapazes de origem humilde sem perspectivas que se submetem a cumprir missões para o narcotráfico, suas vidas são reduzidas a nada e para sair vivo dessas situações é preciso agir com violência, Delio é novato no ramo e no começo o vemos sempre sorrindo e cantarolando, já Jacobo possui cicatrizes de circunstâncias anteriores, juntos nessa perigosa jornada pelo mar aberto vão aprendendo a conviver e a se unir para saírem ilesos, ao longo conhecemos um pouco de cada e a extrema pobreza em que vivem, histórias doloridas e miseráveis e diante do cenário local o único caminho é sujar as mãos. Não demora para Delio entender o risco que corre e se deparar com ações violentas tanto de Jacobo quanto dele mesmo. O olhar de Delio ao longo vai ficando triste e nos atinge visualizar essa crítica situação.
As interpretações surpreendem justamente pelo tom genuíno do filme, os meninos dão verossimilhança e nos imerge na história que mescla ação, thriller, drama e crítica social, a aflição e o desespero domina as cenas, as coisas se complicam de fato quando o narcossubmarino é roubado e aí precisam lidar com instantes tensos e a necessidade de tomada de decisões ruins, que se não colocadas em prática certamente os mortos serão eles.

Cinema latino com identidade própria e que conta as mazelas dessa sociedade tão corrompida e que relega seus locais a meras peças para seu benefício próprio, entre milícias, guerrilha, conflitos que parecem não ter fim se submetem a situações de risco  para ganhar algum dinheiro, um povo castigado e massacrado, que não possuem lugar e que são vítimas de todo tipo de preconceito. O filme tem na produção executiva um nome de peso, Spike Lee, e a direção precisa de Josef Kubota Wladyka atordoa e emociona, também conta com uma bela trilha sonora que representa bem o país. 

"Mãos Sujas" é uma pérola escondida na Netflix e merece muito ser descoberta, aborda o tema do narcotráfico com um viés realista e prioriza enfatizar os pequenos indivíduos e as motivações que os forçam a ir por esse caminho cruel e pesado. Uma forte reflexão sobre essa realidade triste e sem perspectivas, mas em meio a esse desespero há cenas para atenuar e que emanam alegria e esperança, como quando Delio canta a fim de animar Jacobo e este se impregna pela alegria e terminam dançando no barco em meio ao oceano, a amizade que se delineia entre os dois protagonistas transforma e é um apoio em meio ao caos.