segunda-feira, 29 de junho de 2015

O Guerreiro Silencioso (Valhalla Rising)

"Valhalla Rising" de Nicolas Winding Refn (Drive - 2011) é um filme primoroso em todos os aspectos. Épico, hipnotizante e brutal.
A história se passa no século X. One Eye (Mads Mikkelsen) é um guerreiro mudo com forças sobrenaturais feito prisioneiro por Bardo (Alexander Morton), o cruel chefe de uma tribo. Tratado como um animal selvagem e mantido em condições deploráveis, ele é obrigado a participar em lutas mortais para diversão da população. Um dia, ajudado por Are (Maarten Stevenson), a criança que todos os dias lhe leva comida e água, mata os seus captores e escapa, levando Are consigo. Em fuga, os dois encontram Eirik (Ewan Stewart), o líder de um grupo de cruzados cristãos com destino a Jerusalém, que os acolhe. Durante a longa viagem pelos mares, em direção à Terra Santa, o navio onde seguem perde-se na neblina acabando por atracar num lugar sinistro. Ali, One Eye vai descobrir o mistério das suas origens e encontrar a redenção.
Dividido em seis capítulos, feito uma epopeia: Vingança, Guerreiro Silencioso, Homens de Deus, Terra Sagrada, Inferno e Sacrifício, é um longa para se apreciar cada detalhe, diferente dos épicos onde as batalhas são os grandes destaques, neste elas são rápidas e cruéis, o ar de mistério que envolve o protagonista causa fascínio ao espectador, o não saber nada sobre ele nos faz viajar em hipóteses, como por exemplo, pelas semelhanças, talvez seja Odin. É tudo rodeado por mistério, dúvida e medo do desconhecido, a mudança dos tempos é retratada de forma crua, gélida e silenciosa.
Mads Mikkelsen como One Eye carrega uma força, um poder assombroso sem dizer uma única palavra. É um guerreiro intrépido e invencível, sua aparência produz um efeito congelante e por muitas vezes vemos o como ele vê o mundo, sempre em tom vermelho, o que faz pensar no tanto de ódio que existe em si. Uma atuação impecável e muito diferente.
Não há muita ação, as cenas seguem lentamente e é preciso estar atento aos sinais, é um filme contemplativo, porém todas as vezes que a violência é inserida é de maneira brutal, selvagem. Destaque para a sequência em que os personagens se perdem rumo à terra santa, lugar que pensam ser deles por direito pelo fato de seguirem a cruz, a viagem parece interminável, as incertezas e o medo os engolem sob a forma de uma forte neblina, e quando finalmente chegam mais uma vez o desconhecido se faz presente. São atacados por uma tribo e pouco a pouco os personagens sucumbem.

"Valhalla Rising" é uma obra de arte, um deslumbre visual, onde há quadros perfeitos em que a natureza e o homem se encontram juntamente com um destino incerto. 
Extremamente interpretativo, ele permite vários tipos de leitura, inclusive uma metáfora sobre o cristianismo. Nada é explicado e mastigado para quem o assiste. É preciso estar acostumado a este tipo de cinema e gostar do tema. O embate entre pagãos e cristãos, os conflitos entre as diversas etnias, a mitologia nórdica e todo o mistério que envolve a idade das trevas. 
Deslumbrante em sua estética e interessante por sua abordagem,"Valhalla Rising" é para um nicho específico de espectadores. É para ser assistido mais de uma vez e se deparar com mais e mais simbolismos. 

Um épico atípico e assombrosamente silencioso. É também uma amostra da versatilidade do talento de Mads Mikkelsen, ameaçador e destemido One Eye sem sombra de dúvidas é um de seus personagens mais intrigantes. E claro, mérito do diretor Nicolas Winding Refn, que sempre traz filmes diferenciados ao grande público. 
"Valhalla Rising" tem elementos incríveis, mexe com o psicológico, principalmente pelas incertezas e o medo do desconhecido. Uma obra para ser vista com cuidado e com vontade!

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Pelo Malo

"Pelo Malo" (2013) é um filme venezuelano de Mariana Rondón (Postais de Leningrado - 2007), que retrata vários tipos de doenças sociais que envolvem uma população rodeada pelo autoritarismo, pobreza e preconceitos.
Junior (Samuel Lange Zambrano), um menino de nove anos, tem cabelo encaracolado, e não pensa em outra coisa senão alisá-lo, Marta (Samantha Castillo), luta para sustentar a família após a morte do marido e, ao mesmo tempo, preocupa-se com a atenção de Junior com o visual, e tenta evitar o jeito estranho do filho.
O filme não apenas explora a desigualdade social, mas também as desigualdades humanas, o machismo está muito presente, como o julgamento da mãe ao pensar que o menino é homossexual. Junior quer alisar seu cabelo para sair bem na foto do álbum da escola, ele o puxa agressivamente com o pente e passa diversos produtos durante o filme todo, pois o padrão diz que seu cabelo é diferente do normal, é ruim por ser encaracolado. Essa distorção de imagem é angustiante para quem assiste, dói ver a criança sendo pressionada de todos os lados, principalmente pela mãe que não o aceita por supor coisas, e assim cada vez mais o despreza, do mesmo modo em que a sociedade faz com ela, a colocando à margem por ser mãe solteira, pobre e desempregada.
Marta tenta de todas as formas não passar fome, se humilha e chega ao ponto de pensar em vender Junior para a avó Carmen (Nelly Ramos), esta que o aceita e o ajuda a alisar o cabelo em troca dele decorar uma música, uma versão de "Meu Limão, Meu Limoeiro", do conhecido cantor venezuelano Henry Stephen.
Os objetivos mais simples se tornam grandes desafios, a miséria que o filme expõe é feia e triste. O destaque vai para o confuso conjunto habitacional que não se sabe bem onde começa e termina. O que mais impressiona é ver as crianças idealizando padrões de beleza inatingíveis e que a mídia infernal transmite, Junior quer alisar os cabelos e sua amiga deseja ser miss Venezuela. Orientação sexual, condição social, racismo, machismo, pressões sociais, tudo se confunde juntamente com uma mudança política (a doença e logo a morte de Hugo Chávez) com a incerteza de um futuro.
"Pelo Malo" é um filme esmagador, pois retrata diversos preconceitos e o como é difícil encontrar sua identidade num meio decadente que dita normas no que tange a sexualidade, comportamento, beleza, etc.

O drama tanto da mãe como do filho é bem trabalhado e refletimos muito sobre valores, algo interessante a se acrescentar é que a Venezuela tem um forte mercado, ou melhor dizendo, ditadura à beleza, já que é conhecido como o país que fabrica misses, existem agências especializadas na confecção delas, então imagine num país mestiço, assim como o nosso o quanto isso agride ao que se refere a se aceitar como se é, ainda estando numa classe social diferente rodeada por violência e tantas outras coisas.
Ditaduras sejam elas quais forem tendem a massacrar. "Pelo Malo" é um filme sério, realista, dolorido e necessário.

"Aceitar o cabelo como é significa reconhecer-se a si mesmo e ao outro, o problema é que o olhar do outro pode ser violento." - Mariana Rondón

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Agorafobia (Phobidilia)

"Eu tive tudo no meu reino, tudo que uma pessoa precisa para ser feliz: boa comida, sexo, 24 horas de entretenimento, 250 canais de todo o mundo, era intocável. Então como tudo deu errado? Até hoje, quando tento entender minha história estranha, não chego a uma conclusão. Mas eu sei de uma coisa, de alguma forma o mundo perfeito que eu criei, começou a desmoronar." 

"Agorafobia" dirigido pelos israelenses Doron Paz e Yoav Paz reflete sobre solidão e fobia social em tempos de comodidades tecnológicas.
Depois de sofrer um colapso nervoso, um jovem decide abandonar a caótica vida urbana e nunca mais sair de seu apartamento. Ele logo descobre que no mundo atual tudo de que ele precisa pode ser facilmente conseguido: sexo pela internet, entrega de comida, entretenimento na televisão. Anos depois, essa existência idílica sofre um baque quando ele é informado que o apartamento está prestes a ser vendido.
O ator Ofer Shechter (Kalevet - 2010) permaneceu três semanas confinado no estúdio antes do filme ser rodado para dar realidade ao seu personagem. O mundo criado para si vai desmoronando aos poucos ao saber que precisa deixar o apartamento, mas ele arquiteta meios de driblar isso. O filme não explica os motivos de sua fobia, apenas a retrata, há muito desespero, agonia e alucinações, ele mesmo diz que quando se está por muito tempo sozinho nada mais parece real. Sua única companhia é Albert, o gato, e seu lazer é o jardim, que lhe dá o prazer de ver o pôr do sol.
O longa expõe muito fielmente o mundo moderno, o quanto estamos reféns das tecnologias e do conforto que nos proporciona, o que não é ruim de forma alguma, mas o que não pode é se tornar escravo. Facilmente podemos cair nessa armadilha, pois a rotina é estressante e o convívio com as pessoas está cada vez mais difícil, há meios para tudo via tecnologia, o protagonista faz compras e paga contas, faz sexo virtual e trabalha em casa. Cria-se um mundo e isso acaba bastando.
Ele também passa bastante tempo em frente a televisão vendo coisas banais, e é aí que entra Daniela (Efrat Boimold), que trabalha no telemarketing de uma emissora, um dia liga pra casa dele e oferece o aparelho que mede audiência, de um jeito invasivo ela entra na vida desse cara que não quer mais estar em meio a pessoas e fazer parte do todo. A relação deles vagarosamente vai tomando forma e mostra que para se sentir vivo é necessário ter pessoas ao lado.
A solidão é saudável, mas é necessário saber entrar e sair dela, a ilusão que toda essa tecnologia oferece e essa avalanche de tudo que nos ataca, leva-nos a vários distúrbios emocionais trazendo assim a insatisfação contínua.

"Agorafobia" é um filme que aborda um tema doloroso, real e que precisa ser debatido, os personagens são bem construídos e mesmo que seja desesperador e pareça um caminho sem saída, há esperança para esse transtorno do qual o personagem sofre, principalmente se houver o amor. 

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Ninho de Musaranho (Musarañas)

"Musarañas" (2014) dos diretores estreantes Esteban Roel e Juanfer Andrés é uma produção de baixo orçamento espanhola que tem como produtor executivo Álex de la Iglesia (Balada do Amor e do Ódio - 2010).
Em Madri, nos anos 1950 vive Montse (Macarena Gómez), uma mulher que sofre de Agorafobia, ela cuida da irmã mais nova (Nadia de Santiago), já que a mãe morreu durante o parto e o pai abandonou as filhas. A doença de Montse faz com que ela se prenda dentro do apartamento, piorando a situação. Um dia, a relação entre as irmãs começa a mudar com a chegada de um vizinho, Carlos (Hugo Silva).
É um drama que envolve traumas, transtornos psicóticos e fanatismo religioso. A personagem Montse é uma pessoa fragilizada, mas capaz de atos exagerados por conta de sua preocupação com a irmã. Seus trejeitos e olhares, sua voz e a maneira como se esgueira é impressionante e remete ao título do filme, musarañas, em português musaranho, que são pequenos mamíferos roedores venenosos conhecidos por fazerem ninhos bem escondidos e também por serem ferozes.
O início começa mostrando flashbacks da infância das irmãs e logo acompanhamos o dia a dia delas, percebemos o quão perturbada é Montse, ela tem alucinações com o pai e não consegue sair de casa, e por isso trabalha como costureira e esporadicamente recebe algumas clientes. A irmã mais nova tem uma vida aparentemente comum, trabalha, namora, mas a preocupação de Montse a deixa desconfortável. Uma reviravolta acontece quando um vizinho cai da escada, quebra a perna e pede ajuda a Montse, ela o ajuda, mas ao invés de chamar um médico, o aprisiona, lhe dá morfina e começa alimentar sentimentos por ele, aos poucos vamos conhecendo a sua mente doentia e verdades obscuras do passado.
Pelo filme se passar todo dentro do apartamento gera um clima claustrofóbico e mantém bem a tensão, as reviravoltas também são um ponto de destaque da obra que prima pelo terror psicológico e por ótimas interpretações.

O longa conta com uma bela fotografia e uma trilha sonora assinada por Joan Valent, que ajuda bastante a criar um universo de insanidade, terror e drama. Macarena Gómez está magistral, difícil não se impressionar com a sua atuação. É um exemplar digno do cinema espanhol que tem acertado e muito no gênero atualmente.
"Musarañas" tem uma história forte, triste e retrata o quanto os traumas vividos na infância podem afetar drasticamente o ser humano. As cenas de selvageria, onde há muito sangue e loucura é um dos pontos fortes da trama. Em "Musarañas" o instinto fala mais alto!

sábado, 13 de junho de 2015

A Ditadura Perfeita (La Dictadura Perfecta)

"A Ditadura Perfeita" (2014) é um filme mexicano dirigido por Luis Estrada (O Inferno - 2010) e conta a história de um governador egocêntrico que busca a cadeira presidencial e de como ele utiliza a televisão para distrair a opinião pública dos grandes problemas do país. É uma sátira inteligente, onde mostra todas as articulações da mídia e uma política que mais se assemelha a um circo. 
O início do filme já avisa: "Qualquer semelhança com a realidade não é simples coincidência". O diretor fez uma baita crítica ao país denunciando alianças entre a mídia e o principal partido, o PRI, que esteve no poder a cerca de 71 anos, sendo expulso somente em 2000 pelo povo, mas que acabou se recuperando em 2012.
Diariamente vemos um jornalismo sensacionalista sem compromisso com a verdade, mas apenas com seus interesses políticos e financeiros, ludibriam a massa de maneira sorrateira e na maioria das vezes como o filme exemplifica de forma esdrúxula. O longa faz questão de ser caricato e escrachado ao expor políticos que nada entendem a não ser de roubar o dinheiro do povo, políticos burros em um país carente de absolutamente tudo.
Há personagens como o presidente jovem (Sergio Mayer), que diz só baboseiras, a cena em que ele recebe o embaixador norte-americano é tragicômica, ele diz: "Diga a ele (Obama) que o meu povo está disposto a fazer todos os trabalhos sujos que nem os negros querem fazer". Há o governador (Damián Alcázar) corrupto que recorrentemente aparece dando propina e que se alia à principal emissora do México que tem a missão de limpar seu nome através de meios que distraiam a atenção dos telespectadores, como um sequestro inventado, e também o associando à celebridades. Carlos Rojo (Alfonso Herrera) é um ambicioso produtor de telejornal, ele é quem arquiteta os planos mentirosos para que o governador apareça como um político do bem, o repórter Ricardo Díaz (Osvaldo Benavides) e o apresentador Jávier Perez (Saúl Lisazo) o ajudam a aumentar de forma sensacionalista os acontecimentos em torno disso.

Sem dúvidas é um filme corajoso que espezinha essa nojenta política que não está nem aí para as necessidades de seu povo e que aliada a uma emissora de peso visam apenas lucrar em cima de mentiras. Luis Estrada também foi ousado ao escalar os atores, como Alfonso Herrera, astro teen da novela "Rebelde", Osvaldo Benavides (Maria do Bairro) e Itatí Cantoral (a vilã Soraya, de Maria do Bairro), que chamam a atenção do público mais jovem, o que é excelente e, que aliás estão esplêndidos em seus personagens, e claro, a grande e brilhante atuação de Damián Alcázar, que encorpora um político corrupto e sem escrúpulos. 
Toda essa história é engraçada, mas a verdade é que revolta e nos abre os olhos diante a política que acontece no nosso próprio país, onde fazem o que bem querem e manejam-nos com o apoio da grande mídia.

"A Ditadura Perfeita" é uma sátira política altamente ácida e se faz indispensável, o diretor merece todos os elogios possíveis ao retratar a realidade de seu país que não se difere tanto de outros, como o Brasil, por exemplo.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Deus Branco / White God / Fehér Isten

"Deus Branco" (2014) dirigido pelo húngaro Kornél Mundruczó (Delta - 2008) é um conto visionário entre uma espécie superior e os seus desgraçados inferiores... Privilegiando os cães de raça, uma nova lei impõe uma taxa pesada sobre as raças cruzadas. Os donos passam a abandonar seus cães e os refúgios ficam rapidamente superlotados. Lili (Zsófia Psotta), 13 anos, luta para proteger seu cão, Hagen, mas seu pai acaba abandonando o animal nas ruas. Hagen e a sua dona procuram desesperadamente um ao outro, até que Lili perde as esperanças. Lutando para sobreviver, Hagen percebe depressa que nem todo mundo é o melhor amigo do cão. Ele junta-se a um bando de cães errantes, mas é capturado e enviado para um canil. Mesmo sem esperanças de sobrevivência, os cães aproveitam as oportunidades para escapar e se revoltarem contra a humanidade. A sua vingança será implacável. Nesse cenário, Lili pode ser a única pessoa que pode pôr fim a esta guerra entre o homem e o cão.
O primeiro ponto a se destacar sem dúvida é o desempenho dos cães, principalmente do protagonista, sobra inteligência, sensibilidade e esperteza. O elenco canino está expressivamente perfeito. Todos vieram de uma sociedade protetora de animais e foram adotados pela equipe ao final do filme. O diretor usou dois labradores gêmeos, Luke e Body, para o papel de Hagen e vários treinadores ajudaram a ensaiar as cenas mais difíceis. O longa foge completamente dos clichês que envolvem histórias em que os animais são o foco, há alguns elementos parecidos, mas a mistura de gêneros prende o espectador, há drama, ação, aventura, pitadas de humor e suspense, mas o principal é a crítica embutida, o homem, o deus branco do título, que despreza as minorias por se julgar superior. Os cães são uma bela metáfora e representa todas essas minorias que também estão subordinadas ao poder do mais forte.
Vemos o mundo sob o olhar de Hagen que tem todo o amor e carinho por Lili, filha de pais divorciados e que de última hora precisa morar com o pai, um inspetor de matadouro. Ele é um homem mesquinho e que não aceita Hagen, ele é um cão mestiço e é preciso pagar uma taxa para a prefeitura. Todo o ressentimento que esse homem tem em si é descontado no cão, ele o abandona no meio da rua para o pavor de sua filha. Lili não desiste de seu amigo e inicia uma busca incansável que trará alguns problemas para sua vida. Daí em diante acompanhamos a trajetória de Hagen ao submundo, onde conhecerá o pior do ser humano. Enfrentando o medo, a multidão, veículos, à procura de alimento e constantemente o controle de agentes da zoonose, ele acaba encontrando um grupo de cães, do qual o acolhe. Mas não demora para que caia em mãos sedentas por dinheiro e violência. Aprisionado, Hagen é treinado para lutar em rinhas, e é aí que acontece uma grande mudança em sua personalidade, se torna cruel devido ao sofrimento que o homem o infligiu. A cena em que ele briga é tão violenta, tão forte, que o cão ao final parece refletir no que acabou se tornando.

Hagen acaba sendo capturado e enviado ao canil, onde o ápice de sua revolta acontece e a luta sangrenta dos cães contra os homens toma forma de fato, as ruas de Budapeste são tomadas por eles e até policiais de choque tentam contê-los. O complexo de superioridade do ser humano não tem limites, escravizam e excluem aqueles que julgam inferiores. O filme reflete essa questão de maneira interessante com cenas poderosas.
"Deus Branco" (alusão ao filme de Samuel Fuller, White Dog - 1982) é um filme corajoso ao retratar as mazelas da sociedade, desse humano que se julga o dono daqueles que não tem opção. Os cães foram uma ótima escolha, afinal o ser humano pensa que o animal é inferior, assim como faz com pessoas as classificando por características. Existe uma grande hierarquia, onde esse homem, o deus branco, está no topo e pensa ter o poder para dominar quem acredita estar abaixo.

É uma alegoria provocativa e reflexiva, uma obra singular e que tem em seu elenco canino uma força de expressão gigantesca, a revolta e a vingança contra o ser humano que domina e se julga superior foi bem representada por eles.
A mistura de gêneros, assim como a trilha sonora tem efeitos positivos, e destaque tanto para a cena de abertura quanto a que finaliza, são sublimes, majestosas.
Um filme que contém uma forte crítica ao ser humano que se julga um Deus e que por isso age cruelmente contra aqueles que pensa ser inferior.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Loreak

"Loreak" (2014) dirigido por Jon Garaño e José Mari Goenaga (80 Dias - 2010) é um filme espanhol falado no idioma basco, simplicidade e delicadeza o resumem de forma precisa, é através das flores que os personagens se cruzam e sempre de maneira humana e comovente. Uma bela surpresa, um pequeno grande filme que aparentemente pouco acontece, mas que mesmo assim diz muito.
A vida de Ane passa por uma reviravolta quando, semana após semana, ela começa a receber buquês de flores em sua casa. Sempre no mesmo horário, e sempre de forma anônima. Paralelamente, as vidas de Lourdes e de Tere também são afetadas por misteriosas flores. Um desconhecido deposita semanalmente flores no túmulo de alguém que foi importante para ambas. Essa é a história de três mulheres, três vidas alteradas por meros buquês de flores. Flores que fazem brotar nelas sentimentos que pareciam esquecidos... mas afinal, não são mais que flores.
Ane está na menopausa e cansada da vida de casada, mas de repente começa a receber toda quinta-feira um buquê de flores de um anônimo, o que a faz se olhar novamente com outros olhos, sua auto-estima volta e o marido começa a não gostar desta história. Ela tenta descobrir quem lhe manda as flores, mas em vão. O fato é que em determinado momento ela para de recebê-las e o que vem a seguir é uma descoberta intensa que também carregará as flores como símbolo. Tere perde seu filho e toda vez que vai visitar o local do acidente se depara com flores, ela não tem noção de quem as deposita ali. Lourdes, a viúva, também não entende como alguém poderia se dedicar a tal ato tão afetuoso por tantos anos, já que ela abandonou sua vida logo que seu marido morreu, por isso carrega um remorso muito grande e para resgatar sua paz de espírito precisará lidar com seus confusos sentimentos em meio a descobertas.
As flores representam tanto o amor, a vida, como a tristeza e a partida, e diferente de nós que temos que fechar as feridas para continuar a viver, elas necessitam que as feridas se abram. É um filme extremamente delicado e recheado de emoções, pequenas ações, segredos e acasos. Um suspense emocional e uma história para se guardar num lugar especial. O roteiro se desenvolve elegantemente, os personagens são bem delineados e a fotografia é detalhista e requintada.

"Loreak" fala sobretudo de emoções reprimidas, do quanto guardamos conosco e do quanto isso nos machuca, além claro, de vida e morte. Muito que o filme proporciona ao espectador é sensorial.
O mistério permeia boa parte da trama e são as flores que mais nos revelam, é um filme de silêncios, da dor da ausência, e do como a beleza pode estar nas coisas tristes. 
"Loreak" é uma poesia visual que fisga o espectador desde a primeira cena. É real, humano e sensível. Uma obra que merece ser descoberta!

quarta-feira, 3 de junho de 2015

O Fio de Ariane (Au Fil d'Ariane)

"O Fio de Ariane" (2014) dirigido por Robert Guédiguian (As Neves do Kilimanjaro - 2011) se assemelha a uma fábula, é delicioso acompanhar a protagonista rumo a seus desejos. Ariane (Ariane Ascaride) está mais solitária do que nunca em sua bela casa. É seu aniversário e as velas estão acesas. Mas os convidados ligaram e pediram desculpas... Ninguém pôde vir à festa. Assim, Ariane decide entrar em seu lindo carro e simplesmente fugir.
A partir do momento em que Ariane põe o pé na estrada as situações se desenrolam de maneira ilógicas, porém sem afetar o contexto. A caminho de Marselha, parada em uma ponte esperando a travessia d'um barco, encontra um rapaz que lhe dá carona até o pequeno restaurante chamado Café l'Olympique, onde conhece diversas pessoas, todas amáveis e de certo modo solitárias. Peculiares personagens aparecem ao longo da história, como o vendedor de souvenirs que trabalhou durante muito tempo como segurança do museu de história natural e chora todas as noites por estar longe de seus filhos. Seu arco dramático é um dos mais interessantes, pois ele deseja libertar os animais empalhados. Também há o solitário Denis (Gérard Meylan), dono do café, e Jacques (Jacques Boudet) que ama poesia e adora observar os clientes para ter inspiração. E sem esquecer da tartaruga que acaba se tornando a conselheira de Ariane.
O título remete ao mito grego "labirinto do minotauro", onde a filha de Minos, Ariadne caiu de amores por Teseu, descendente de Egeu, rei ateniense, e de Etra; o herói logo demonstrou nobreza e firmeza de ânimo. Ela demonstra seu interesse pelo rapaz quando ele se entrega por vontade própria ao Minotauro, ser meio homem, meio touro, que ocupava o labirinto edificado por Dédalos. Ele toma essa decisão ao saber que sua terra natal deveria entregar como tributo a Creta uma cota anual de sete moças e sete homens, os quais seriam oferecidos ao monstro, que era carnívoro. A estrutura labiríntica fora criada no Palácio de Cnossos, com vários caminhos enredados, de tal forma que ninguém seria capaz de deixar seu interior depois que houvesse nele entrado. Mas Ariadne, completamente apaixonada, oferece ao seu amado, que também parece amá-la, uma espada para ajudá-lo a lutar contra o monstro, e o famoso fio de Ariadne, que o guiaria de volta ao exterior. Um ponto a se acrescentar é que Marselha, a cidade escolhida como cenário é a mais antiga da França, fundada pelos gregos, onde essa aura de mito é ainda mais enaltecida.
Os personagens vão se relacionando e vemos um bom tanto de generosidade, uma amizade que se baseia na simplicidade. Ariane deseja ajudar as pessoas e principalmente se relacionar de verdade sem grandes empecilhos. São cenas super agradáveis e várias ficam na memória, em especial a que acontece entre ela e um motorista de táxi. O filme disserta sobre o deixar-se levar pelos sonhos, mas sem perder o elo com a realidade.

Destaque para a trilha sonora e a bela performance de Ariane Ascaride ao interpretar a canção "Comme On Fait Son Lit".
Com uma boa dose de fantasia e uma pitada de comédia, "O Fio de Ariane" se torna interessante, doce e quase ingênuo. Uma bela metáfora sobre o redescobrir-se.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Stella

"Stella" (2008) de Sylvie Verheyde (Confissões de um Jovem Apaixonado - 2011) traz uma história dolorosa, mas esperançosa sobre a pré-adolescência.
Stella é uma garota argentina de 11 anos de idade que acaba de iniciar um novo curso numa escola de Paris. Mas sua vida, mesmo, transcorre dentro de um bar cujos pais exilados são donos. Um refúgio para a classe trabalhadora, que cai na bebida, faz apostas, fala de futebol e outras amenidades até o dia amanhecer. Para Stella, a escola é complicada. Mais do que os estudos, o que ela não suporta são as humilhações dos professores e amigos por causa de sua origem. É assim que começam a despertar na garota instintos mais violentos. Mas graças a sua única amiga, também filha de intelectuais argentinos exilados, Stella vai vislumbrar um mundo que não conhece: desde o primeiro amor até os perigos que cercam uma menina prestes a se tornar mulher.
Stella (Léora Barbara) nada mais é que o alter ego da diretora Sylvie Verheyde, a história se passa no final dos anos 70 e mais do que um filme sobre ritos de passagem é uma obra de personalidade e completamente passional. Stella é transferida para um novo colégio, onde irá cursar o 5º ano, a adaptação não é fácil, pois todos ao olhar da menina são esnobes e vazios, a escola e as matérias não fazem sentido pra ela que carrega em si uma bagagem de vida apesar de sua pouca idade. Seus pais são donos de um bar, cujos frequentadores são em sua maioria decadentes, bêbados e desempregados, este é o local em que ela fica interagindo e observando tudo o que acontece, desde as atitudes de seus pais irresponsáveis, até a convivência com pessoas das mais variadas, incluindo Alain (Guillaume Depardieu), por quem a garota cai de amores. Visto assim parece que seu futuro já está traçado, talvez, o mesmo de sua mãe. Porém, existem diversas possibilidades na vida e a de Stella é a sua amiga Gladys (Mélissa Rodriguès), uma menina rica que apresenta o universo da leitura, e do qual Stella se encanta. A cena em que Stella mente conhecer Cocteau para não se sentir envergonhada é o momento em que ela desperta, o que a leva a correr para um sebo e começar a se enveredar pelas maravilhas que um livro pode trazer.
A atuação de Léora é impressionante, diferente dos demais se entedia diante do universo escolar e se exclui, mas não deixa de estar aberta para novas descobertas. O modo com que Stella e Gladys vão se tornando amigas, e o fato de Gladys não se importar com a gritante diferença entre elas faz tudo se tornar mais simples e apaixonante.
A importância do incentivo sincero e a educação é o único meio de nos tornarmos pessoas melhores. 

O filme conta com uma narração em off da protagonista, suas observações acerca do mundo e dela mesma são interessantes e irônicas, mas não deixam de ser puras. Em dado momento ela diz: "Sei tudo sobre futebol: quais os melhores times e jogadores; sei fazer coquetéis e jogar fliperama; sei as regras do bilhar e sei jogar cartas; sei várias letras de música de cor; sei quem é sincero e quem mente; sei como se faz bebês e como se transa; só que no resto, sou péssima".
É agradável acompanhar o amadurecimento de Stella, o reconhecimento das oportunidades que estão à sua disposição, a sua lucidez perante a vida, e claro, a valorização de sua amizade com Gladys. A forma como lida com os adultos, principalmente com o comportamento dos pais, por exemplo, com a traição da mãe no próprio estabelecimento e o como deseja cuidar de seu pai depois disso. Realmente ela está ultrapassando um momento de extrema fragilidade e Gladys sem dúvidas foi um presente para sua vida.

Stella enxergou suas oportunidades e como todo ser humano com consciência teve gratidão. Seu agradecimento a Gladys no final é emocionante. Sentimos orgulho dela.
"Stella" disserta sobre a transição de criança à adolescência de modo natural, sem julgamentos e esteriótipos. É sincero e otimista na medida certa!