quarta-feira, 23 de abril de 2025

Meu Bolo Favorito (Keyke Mahboobe Man)

"Meu Bolo Favorito" (2024) dirigido por Maryam Moqadam e Behtash Sanaeeha (O Perdão - 2020) é um filme iraniano que aborda o romance na velhice de uma forma leve e sensível apesar do contexto repressor e violento do país. É daquelas histórias que nos arranca vários sorrisos sinceros tamanha delicadeza dos personagens. Acompanhamos a rotina tediosa de Mahin (Lili Farhadpour), uma senhora de 70 anos que adora cozinhar, cuidar de suas plantas e costuma desviar de suas vizinhas fofoqueiras, além de ter o hábito de passar noites em claro assistindo TV. De tempos em tempos organiza reuniões com amigas em que tomam chá e conversam sobre os mais variados assuntos, quase sempre de doenças ou elas influenciando-a fazer coisas novas, desde que seu marido morreu e sua filha se mudou para outro país sua vida tem sido sempre a mesma, completamente sozinha. Depois desse dia Mahin decide que precisa arranjar uma companhia. Ela se arruma, pega um táxi e sai para a cidade caminhar na praça na esperança de encontrar alguém, não demora muito e observa um senhor almoçando sozinho no restaurante dos aposentados, decidida vai atrás dele e pede exatamente o táxi em que Faramarz (Esmaeel Mehrabi) trabalha. Durante a corrida Mahin joga charme e é correspondida, ao final o convida para entrar em sua casa, claro que com muita descrição, o decorrer desse encontro se dá com muito vinho, comida, música e ótimas conversas. Mergulhamos nas angústias e lembranças de ambos que vivenciaram cenários diferentes e duas realidades no país, viram a revolução acontecer tornando-o numa teocracia, autoritarismo extremo em que qualquer deslize gera prisão, a polícia da moralidade vigia cada passo e para Mahin que se apresenta uma senhora comportada percebe-se que há uma mulher livre com muita sede de viver, a solidão tanto de um como de outro machuca, mas a alegria deles contemplando o jardim comendo e bebendo vinho (feito em casa, pois também é proibido), é uma das cenas mais lindas do filme entre tantas outras. Há um quê de ingenuidade na forma que se relacionam, não sabem muito bem o que fazer além de trocar conversas, à medida que o vinho faz efeito intimidades são reveladas com imensa sensibilidade, melancolia e esperança. 

É um filme de introspecção que caminha a lentos passos, como o caminhar de Mahin, que propõe o olhar para o outro, de parar e observar detalhes, o encontro deles é permeado de poesia e tranquilidade, mas também de angústia e um certo desespero, porém regado a momentos de alegrias sinceras, de compartilhamento genuíno e palavras que há muito estavam trancafiadas no peito. 
As atuações são belíssimas, o olhar e o corpo falam o tempo todo, a troca de roupas de Mahin, seu esmero em cozinhar e servir 
Faramarz, cujas feições tristes dão lugar a sorrisos duradouros.

"Meu Bolo Favorito" tem instantes grandiosos em suas sutilezas, é imersivo em demonstrar que apesar das limitações e restrições o desejo pelo compartilhamento da vida é uma chama que ainda arde dentro dos personagens. A solidão é aliviada, mas o gosto amargo não deixa de existir, pois apesar de ser ficção a realidade da situação no país está presente a todo momento lembrando o quão forte é a luta daqueles que querem celebrar a vida.

*Os diretores foram oficialmente condenados pela justiça iraniana, 14 meses de prisão discricionária (pena suspensa por 5 anos) mais multa por propaganda contra o regime iraniano, desrespeito às leis islâmicas e por propagar prostituição e libertinagem, além de distribuição ilegal do filme sem a autorização das autoridades iranianas. Tiveram seus passaportes confiscados. 

terça-feira, 28 de março de 2023

Copenhagen Cowboy (Série)

"Copenhagen Cowboy" (2022) dirigido por Nicolas Winding Refn (Drive - 2011, O Demônio de Neon - 2016) tem a assinatura do diretor, estilosa, soturna e bizarra, mistura diferentes elementos e gêneros e traz uma originalidade incomum, é um espetáculo misterioso, minucioso e hipnotizante.
Acompanhamos a jornada de Miu (Angela Bundalovic), uma jovem enigmática e lacônica que é comprada por Rosella (Dragana Milutinovic), uma mulher obscura que junto de seu irmão possui um bordel e está inserida no submundo do tráfico de mulheres, ela acredita que Miu tem poderes mágicos que a ajudará engravidar, a sequência de fatos muda a percepção de Rosella e Miu entra numa espiral de vingança pela imundice humana levando de certa forma a justiça. Entre os personagens há Nicklas (Andreas Lykke Jørgensen), metade humano, metade vampiro que cruza o caminho de Miu e que travará um conflito monumental, no caminho ela encontra uma série de pessoas que vivem nesse submundo de crimes, incluindo gangues, tráfico de drogas, esquemas ilegais de todos os tipos e níveis, em meio a essa loucura Miu permanece intacta, seu semblante sempre calmo e direta em suas palavras provoca diversas emoções nesses indivíduos, ela ajuda alguns nesse entremeio com seus poderes, mas parece que tudo que toca inevitavelmente sofre consequências. É bastante intrigante o modo como age, na maior parte do tempo muito lentamente, sua postura estoica e movimentações certeiras nas cenas de ação, além da forma que encontra essas pessoas pelo caminho, parece-se muito com um sonho sombrio. Há uma imensidão peculiar nessa história que mistura elementos de fantasia que passeia pelo sobrenatural e que se mistura aos podres do mundo real. 
O ritmo da série é lenta e hipnotiza tanto pelo modo de filmagem em que a câmera gira sem parar em várias ocasiões, quanto pela estética neon/noir e trilha sonora eletropop/synthpop, além dos enquadramentos perfeitos e que várias vezes remetem a videoclipes,  muitas passagens surrealistas lembram as obras de David Lynch, as respostas dos mistérios por muitas vezes vêm de forma subjetiva e metafórica, ou simplesmente não são respondidas, a narrativa transcorre em moldes próprios e talvez essa dinâmica não agrade tanto, principalmente em seu desfecho.

O apuro estético é um deleite e a maneira incomum que se desenrola a história com personagens excêntricos que vagam pela madrugada de Copenhagen enrolados em maldade e violência e uma heroína aparentemente frágil que não sabe de onde veio para buscar vingança é um tanto inusitado. O sobrenatural se mistura a podridão do mundo real e somos absorvidos por simbologias provocantes e perturbadoras.
 
"Copenhagen Cowboy" é uma série diferenciada dentro do catálogo da Netflix e espero que tenha uma segunda temporada, apesar de achar pouco provável. Vale muito a pena assistir algo que foge das narrativas tão batidas e rasas que séries mais tradicionais trazem, sempre é bom se encantar com perspectivas diversificadas.

quarta-feira, 22 de março de 2023

A Pior Pessoa do Mundo (Verdens Verste Menneske)

  

"A Pior Pessoa do Mundo" (2021) dirigido por Joachim Trier (Thelma - 2017) é um filme repleto de questões, induz o espectador a pensar sobre si mesmo e o estar no mundo, a confusão da protagonista gera antipatia, mas ela representa a maioria das pessoas, pois a indecisão e o estar perdido diante de tantas possibilidades e probabilidades gera ansiedade e muitas vezes prostração, quem diz que sabe o que está fazendo e para onde está indo está fingindo muito bem porque a vida é instável e nada objetiva, se considerar a pior pessoa por não saber se uma escolha é melhor que outra, ou optar por coisas que não condizem com expectativas alheias, na verdade, lhe faz mais sensível e consciente.
Julie (Renate Reinsve) é jovem, bonita, inteligente e não sabe exatamente o que deseja em uma carreira ou parceiro. Uma noite ela conhece Aksel (Anders Danielsen Lie), um conhecido romancista gráfico 15 anos mais velho, e eles rapidamente se apaixonam. Ela também conhece um barista de café, Eivind (Herbert Nordrum), que também está em um relacionamento. Julie tem que decidir, não apenas entre dois homens, mas também quem ela é e quem ela quer ser. Entre idas e vindas, Julie escolhe com quem ficar e mais problemas surgem em sua vida. Com prólogo, 12 capítulos e epílogo acompanhamos Julie se mover pela vida sem muita convicção, age conforme seus desejos e encara os momentos com intensidade, mas as escolhas que faz a atingem mais para frente sempre colocando em xeque se é realmente o que quer. Sua relação com Aksel é profunda em afinidades e amor, mas Julie se vê diante da impossibilidade de seguir, anseia experiências e ao contrário de Aksel não pensa firmar a relação e nem quer ter filhos, dessas suas contradições e vulnerabilidades acaba se apaixonando por Eivind em circunstâncias de impulso e que abrangem gostosas descobertas que dura por um tempo e só aumentam suas angústias.
É interessante que aborda a vida adulta de forma realista e mostra que estar perdido e frágil aos 30 é mais comum do que se pensa. São muitas visões e experiências que se quer agarrar e nem sempre o óbvio é o caminho. Estar à deriva sem convicções onde se realiza e se desconstrói facilmente algo faz parte dessa geração que de certa maneira está mais livre de convenções impostas, mais solitárias e com estímulos a mil. Em dado momento Julie diz ser espectadora da sua própria vida, se autodeprecia por abraçar seus desejos e encarar suas escolhas com intensidade, mas isso a faz ser a pior pessoa do mundo?

Aksel tem estabilidade financeira e é bem-sucedido como quadrinista, tem uma relação de afinidade intelectual com Julie e aos poucos vai sentindo vontade de ser pai, mas Julie não está pronta para esse passo e conforme ele mergulha mais e mais em seu trabalho ela sente vontade de se libertar. O término é sofrido, eles se amam, mas cada um está em um ponto da vida, a partir desse momento as coisas começam a soar melancólicas e as escolham tomam um peso absurdo. E Aksel apesar de ter tudo certo em sua vida é surpreendido pelo inevitável, colocando tudo que construiu e se tornou em observação.
 
"A Pior Pessoa do Mundo" faz parte de uma trilogia composta por "Começar de Novo" - 2006 e "Oslo, 31 de Agosto" - 2011, que abordam conflitos existenciais com potência e sensibilidade, são obras melancólicas e que desnudam a existência humana. É preciso olhar para dentro e aprender a aceitar que a vida não pode ser controlada, há instabilidades, angústias, caminhos inesperados, surpresas e renúncias.
Vale ressaltar o incrível corroteirista Eskil Vogt que possui obras maravilhosas em parceria com Joaquin Trier e também como diretor, vide o filme "Blind" - 2014.

sexta-feira, 17 de março de 2023

To Leslie

  

 "To Leslie" (2022) dirigido por Michael Morris é um filme intimista que concentra toda sua narrativa na personagem central com seu cotidiano simplório e caótico, seus laços foram danificados por conta do vício em álcool, autodestrutiva segue seus dias no puro ócio apenas se culpando por suas escolhas. Traumatizada e atormentada ninguém mais acredita em sua mudança e é jogada de lá para cá, mas o filme não é negativo e propõe a sua redenção, é uma história sem firulas e comovente, acreditar em si mesma é o maior obstáculo de Leslie.
Andrea Riseborough dá vida a essa mulher de maneira real, não força estereótipo e em muitas vezes sentimos vergonha, tristeza, desespero, deslocamento, vagamos junto dela, sentimos na pele suas angústias e as pequenas crises de consciência que cresce à medida que compreende que a mudança só pode acontecer de dentro para fora, mas óbvio que é necessário ajuda para que o ciclo se complete, ninguém consegue sair de uma situação tão crítica sozinho, mas o tempo e o respeito àquela situação faz toda a diferença e isso se dá no personagem de Sweeney (Marc Maron), que delicadeza, paciência e empatia esse ser humano possui, alguém totalmente fora da vida dela dá o suporte, pois os familiares praticamente desistiram e nisso também não há como julgar, é algo imensurável e complexo lidar com o peso do outro, ainda mais para o filho de Leslie, que cresceu com a história de sua mãe sendo exposta e ridicularizada. Para contextualizar tudo começa quando Leslie ganha US$ 190 mil  na loteria, dinheiro que daria para organizar a sua vida e do filho, mas para comemorar ela paga uma rodada de bebidas para todos, daí a história avança seis anos e a vemos sendo despejada de um quarto de hotel barato por falta de pagamento, ela segue andando sem rumo com sua mala rosa, parando em bares e se consolando nas bebidas pagas por alguns homens, até que bate na porta de seu filho em outra cidade, o jovem a acomoda por alguns dias, mas claramente dá errado quando encontra bebidas escondidas debaixo do colchão comprados com dinheiro roubado de seu colega de quarto. Leslie é deixada na casa de conhecidos desse seu passado nebuloso, segue-se mais dores, humilhação, desnorteamento até que Sweeney lhe oferece emprego e abrigo no hotel em que trabalha.

A sutileza de Sweeney ao abordar os problemas de Leslie dando espaço para que ela mesma perceba que está se destruindo e se auto enganando, não a forçando e não desistindo no meio do caminho quando suas inconstâncias de humor se dão é primordial, só mesmo alguém que já tenha passado por um inferno semelhante é capaz de acolher alguém dessa maneira, já outras pessoas não suportam a primeira decaída, como o filho, que foi atingido em cheio pelo vício de sua mãe logo na infância, os "amigos" do passado a ridicularizam, principalmente por conta da perda do dinheiro da loteria e por ser uma cidade pequena isso se agrava mais ainda.
Algo bastante notável nesse longa é a forma de tratar esse tema com cuidado e realismo, não há excesso de dramaticidade, mas sim silêncios que sufocam e lágrimas que ficam presas nos olhos, a dor é imensa e a personagem não se dá o direito nem de sofrer por mais que sua vida esteja estraçalhada, se culpa, mas não percebe que boa parcela do que aconteceu com ela muitos tiveram responsabilidade, justamente por saberem que Leslie era imatura. Andrea Riseborough é minimalista e brilha em cena, ela toda desgrenhada e pálida dá vida a essa mulher que vaga de bar em bar buscando algo que nunca encontrará, a sua alma, modo de dizer, está trancafiada em si mesma e como é complicado a tomada de consciência para entender que mesmo deslocada e diferente dos demais há um caminho para si.
 
"To Leslie" é uma história modesta e comum, forte e preciosa, é incrível a jornada da protagonista, sua decadência arrastando todos ao redor junto de seu vício, o autoengano e traumas são tratados com sutileza, mas nunca deixando de nos afetar, seu final é um recomeço sincero. É um filme bonito com uma atuação bonita de Andrea Riseborough.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

The Banshees of Inisherin

 

"The Banshees of Inisherin" (2022) dirigido por Martin McDonagh (Três Anúncios Para um Crime - 2017) é um filme que exala solidão e um existencialismo potente que nos faz rir de desespero, particularmente a narrativa me conduziu como se estivesse lendo um livro, devagar e com intervalos contemplativos belíssimos, quadros melancólicos e que evoluem à medida dos acontecimentos cotidianos e mal-entendidos risíveis. Apesar da erma ilha aparentar uma certa paz e o tédio controlar a vida de seus habitantes, do outro lado o estrondo da guerra civil está a todo vapor. Situado numa ilha remota na costa oeste da Irlanda nos idos dos anos 20, acompanhamos um impasse entre os amigos de longa data Pádraic (Colin Farrell) e Colm (Brendan Gleeson). Inesperadamente Colm põe fim à amizade deles e Pádraic fica desesperado amparado pela sua irmã Siobhán (Kerry Condon) e pelo problemático jovem Dominic (Barry Keoghan), esforçando-se para recuperar o relacionamento e recusando-se a aceitar um não como resposta, os esforços repetidos de Pádraic apenas fortalecem a determinação de seu ex-amigo e, quando Colm entrega um ultimato, os eventos sucedem-se rapidamente com consequências inesperadas. O rompimento dessa amizade também atinge outros habitantes da ilha fazendo com que encarem o próprio abismo, como Dominic, um rapaz que sofre violências por parte do pai e que é esnobado pela irmã de Pádraic. Colm está cansado de tudo e diante da finitude da vida dedica seus dias a deixar um legado através da arte, já o ingênuo Pádraic se apega ao raso da vida, simples e gentil atravessa seus dias de puro nada, seu relacionamento com a irmã às vezes o traz para realidade, já que Siobhán quer sair da ilha por não aguentar mais o barulho que o silêncio faz. A situação simplesmente vai se transformando em algo desesperador para Pádraic, teimoso insiste em ir atrás de Colm e o segue pelos lugares e não aceita que o amigo tenha parado de gostar dele. A simplicidade desse personagem aos poucos vai sendo substituída por atitudes chatas e vergonhosas, até surgem sentimentos de pena ou graça, mas à medida que a narrativa transcorre também percebemos o endurecimento desse personagem, ele vai perdendo a ilusão e começa a articular maldades.

É um filme primoroso, os diálogos que proporcionam reflexões, a fotografia e o cenário imenso dessa ilha repleta de pedras confluindo com a solidão que cada personagem sente, a angústia nos olhos de Pádraic pelo fim da amizade, sua insistência chata, seu amor por Jenny, sua mini mula que também é afetada por essa guerra travada entre os dois. Pádraic é limitado e amarrado ao lugar que mora, sua ilusão de felicidade é quase ingênua pela falta de conhecimentos acerca de tudo, ele leva a vida de modo rudimentar, o que irrita Colm, que nessa fase de vida já não quer perder tempo com bobagens e até engraçado quando diz que Pádraic é mais interessante bêbado.
 
Há muitos aspectos e nuances que podemos trazer para nosso cotidiano, amizades desfeitas do nada, a falta de profundidade nas relações, a solidão mascarada por inúmeros artifícios/vícios, o tédio, angústias e ansiedades geradas a partir de expectativas que os outros depositam em nós, etc. A melhor personagem que encara com inteligência o meio em que vive e tem uma tomada de decisão perspicaz é Siobhán, ela é sincera ao dialogar, encara seus medos e suas peculiaridades e se move antes de ter seu ser corrompido ou destruído.
"The Banshees of Inisherin" é uma crônica excêntrica e por vezes absurda e apesar de ter um tom cômico, na verdade, é triste e desesperançosa, sua melancolia atinge em cheio ao nos colocar diante da solidão e das complexidades que abrangem a finitude da vida.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Manhãs de Setembro (Série)

  

"Manhãs de Setembro" série com duas temporadas dirigida por Dainara Toffoli e Luís Pinheiro e exibida pelo streaming Prime Video é um retrato real, fascinante, angustiante, transformador e repleto de afeto. Um misto de sentimentos invade nosso ser ao contemplar a jornada da protagonista vivida com força e altivez pela dona da voz mais linda da atual música brasileira, Liniker. A série conta a trajetória de Cassandra que, desde que deixou sua cidade para trás, decidiu não fazer concessões para se tornar o que sempre quis ser: uma mulher trans livre e independente. Depois de anos comendo o pão que o diabo amassou, finalmente as coisas começaram a entrar nos eixos. Após uma temporada de desafios com a descoberta da existência de um filho, Cassandra tem um novo reencontro com o passado graças à chegada do seu pai e às lembranças de sua mãe, o que deixa o sonho de cantar ainda mais abalado. Cassandra é fã de Vanusa, assim como sua mãe que não vê desde os quatro anos de idade, ela batalha na grande São Paulo pela sua independência e liberdade de ser, ela divide seu tempo entre trabalhar como entregadora e a noite se apresentando cantando canções que conversam diretamente com seus sentimentos, além de se relacionar com Ivaldo (Thomás Aquino) que é casado. Sua vida dá uma reviravolta quando Leide (Karine Teles) aparece lhe mostrando Gersinho (Gustavo Coelho) como sendo seu filho. No decorrer dos episódios acompanhamos essa transformação que acontece em sua vida, a descoberta muda muito de sua rotina e quebra um pouco de seu sonho de seguir sozinha, a responsabilidade de um filho inicialmente não é aceita, a relação de afeto é construída aos poucos e conforme as emoções vão se assentando, ela começa a reviver momentos do passado olhando para Gersinho, o que não a agrada, mas o menino tenta chamar sua atenção de todas as formas e demonstra um carinho e respeito acolhedor. Cassandra é uma mulher trans preta que luta contra o preconceito todos os dias, é forte, segura de si e enfrenta as dificuldades com resiliência. Absolutamente todos os personagens tem características interessantes e todos os diálogos tem naturalidade, as complexidades, as nuances, as dificuldades são colocadas com sensibilidade e nos emocionamos com a história que vai desenrolando aos poucos.

"Manhãs de Setembro" homenageia Vanusa, além de carregar no título uma de suas músicas mais conhecidas, ela se faz onipresente, discute e dá conselhos para Cassandra, um misto de musa e mãe, suas músicas permeiam a história e complementam perfeitamente. Cassandra dá voz a essas canções que tanto falam de si. Outro ponto de destaque é a movimentação pelas ruas cinzentas do centro turbulento de São Paulo.
 
Uma delícia acompanhar essa série que não tem pressa, respeita o tempo que as coisas acontecem, traz temas importantes e plurais com seriedade. E que fortaleza é a protagonista nos trazendo sentimentos variados, a complexidade de suas emoções, a aceitação do filho contrapondo com sua construção de liberdade e seguimento dos sonhos, sua solidão enxergando o afeto se construindo através do dia a dia, sua batalha diária tendo que lidar com a falta de dinheiro, preconceito, transfobia, o passado, os traumas...
A segunda temporada traz ainda mais contexto e seu pai, interpretado por Seu Jorge, aparece na história, descobrimos mais sobre Cassandra e vamos junto dela com coragem e intensidade. 

O único defeito dessa série é ser tão curtinha, juntando a primeira e a segunda temporada são apenas 11 episódios de aproximadamente 30min.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Marte Um

"Marte Um" (2022) dirigido por Gabriel Martins (No Coração do Mundo - 2019) é um filme feito com muito esmero ao retratar o espírito do povo brasileiro, as lutas travadas diariamente para conseguir seu sustento, a preocupação com os familiares e ainda conciliar os sonhos e esperança. Acompanhamos uma família de classe média baixa que mora na periferia de Contagem e sem grandes eventos vamos conhecendo cada um deles sobrevivendo aos desafios do cotidiano.
O filme traz a história de uma família periférica, nos últimos meses de 2018, pouco depois das eleições presidenciais. O garoto Deivinho (Cícero Lucas), o caçula da família Martins, sonha em ser astrofísico e participar de uma missão que em 2030 irá colonizar o planeta vermelho. Morando na periferia de um grande centro urbano, não há muitas chances para isso, mas mesmo assim ele não desiste. Passa horas assistindo vídeos e palestras sobre astronomia na internet. Wellington (Carlos Francisco), o pai, é porteiro em um prédio de elite e há um bom tempo está sem beber, uma informação que compartilha com orgulho em sessões do Alcoólicos Anônimos. Tércia (Rejane Faria) é a matriarca que depois um incidente envolvendo uma pegadinha de televisão acredita que está sofrendo de uma maldição. Por fim, a filha mais velha é Eunice (Camilla Damião) que pretende se mudar para um apartamento com sua namorada mas não tem coragem de contar aos pais.
A sensibilidade com que os personagens são retratados cativa o espectador, cada um deles tentando prosseguir da melhor maneira mesmo tendo a restrição econômica, dá-se o jeitinho e, acima de tudo, mesmo com todos os percalços externos e internos ao fim de tudo estão juntos. Tem um belo visual, os olhares brilham feito estrelas, há sempre um ar melancólico, porém nunca se rendendo de fato, a vida e os sonhos sempre resplandecem. Ver na tela características tão comuns, problemas tão corriqueiros que a imensa maioria passa aperta o coração, essas simples nuances de representatividade faz toda a diferença para conexão com a história, a crise econômica, as injustiças, os receios, os obstáculos praticamente intransponíveis, aliado a isso um período de obscurantismo na política começa a nascer e atacar os mais pobres, sobreviver a essas coisas só com muita força. Tércia por exemplo, depois de passar por uma pegadinha de um programa de TV fica tão traumatizada que acredita estar amaldiçoada, pois tudo ao seu redor começa a ruir, Wellington é um sujeito honesto e acaba sendo passado para trás em seu trabalho e sem piedade é jogado fora, também pressiona seu filho para que jogue futebol e até consegue uma vaga para participar de uma peneira, mas Deivinho se acidenta e fica impossibilitado, daí Wellington se rende a bebida pelo desgosto.

Deivinho sonha e o custo desse sonho é muito alto, ele passa o dia estudando sobre o universo, pretende apesar de tudo se tornar astrofísico e participar da missão que colonizará Marte. Ele é inteligente e até cria seu próprio telescópio, o que nos faz refletir sobre o tanto de pessoas capazes e cheias de vontade que estão presos em rotinas estafantes, mas que poderiam ser cientistas, astrônomos, profissões que não chegam para quem é pobre, e não adianta discursar sobre esforço porque essa é uma parcela extremamente pequena que contém doses altas de sorte. A verdade é que não existe incentivo e o desejo de que os pobres concretizem seus sonhos e saiam ocupando esses lugares. O filme neste aspecto é bastante sutil e prima mais pela beleza e poesia do cotidiano aprofundando aos poucos e deixando que o espectador perceba essas questões.
 
"Marte Um" é um conto lindo e triste sobre a realidade do povo pobre do Brasil, que sente a esperança pulsar toda vez que algo se despedaça a sua frente, esse poder de ser reerguer e de acolhimento entre seus familiares é o encanto do filme. Quem assistiu e não se identificou e se emocionou quando o pai fala: "A gente dá um jeito"? Não é daquelas propostas rasas de que é importante sonhar, não é isso não, é sobre a legitimidade de sonhar e a privação do meio para a concretização, é sobre a força que nasce de múltiplos sentimentos contidos, esses detalhes ganham uma grandeza singela na tela. A gente chora e sorri assistindo. Vale ressaltar a produtora mineira "Filmes de Plástico", o catálogo de filmes são riquíssimos e retratam a realidade brasileira com muito esmero.