quarta-feira, 29 de outubro de 2014
As Viagens do Vento (Los Viajes del Viento)
Ignacio Carrillo, um trovador que durante anos percorreu povos e regiões, levando a música com seu acordeão, toma a decisão de fazer uma última viagem, através de toda a região norte da Colômbia, para devolver o instrumento a seu mestre ancião, e assim nunca mais voltar a tocar. No caminho, encontra Fermín, um jovem cuja ilusão na vida é seguir seus passos e ser como ele. Cansado da solidão, Ignacio aceita ser acompanhado, e juntos empreendem o percurso desde Majagual, Sucre, até Taroa, além do deserto da Guajira, encontrando-se com a enorme diversidade da cultura do Caribe e vivendo todos os tipos de aventuras e encontros. Ignacio tratará de ensinar a Fermín um caminho diferente do seu, que tanta solidão e tristeza lhe trouxe, mas para isso terá que enfrentar o chamado de seu próprio destino que tem preparadas diferentes sortes para ele.
"As Viagens do Vento" transcende um mito, uma promessa a ser cumprida por um sujeito que tem um acordeão com chifres colados em cada uma das extremidades do fole, e que faz jus a seu apelido: acordeão do diabo. A jornada começa após a morte da mulher de Ignácio, a história é sobretudo, bela e muito pitoresca, e repleta de aventuras. Eles viajam juntos vastos territórios, inúmeros personagens se encontram, e cada situação enfrentada é apenas com o objetivo de regressarem ao proprietário do acordeão que foi amaldiçoado. As diversas áreas da Colômbia parecem esquecidas e perdidas. Andar para essas duas pessoas parece ser uma necessidade interna de encarar a si mesmos, um resgate de suas tradições.
Não há como não se deslumbrar diante as inúmeras apresentações de acordeão, disputas, brigas, experiências únicas, tal como a cena do garoto provando seu dom ao tocar o tambor, para poder ser batizado com sangue de lagarto. Outra sensacional é do duelo em que Ignácio toca, enquanto dois homens brigam com um facão. As travessias de paisagem, os tipos de pessoas diferentes que encontram conforme andam, o popular, a tradição, tudo é exposto em uma fórmula de libertação e de recomeço. São imagens majestosas que dizem por si só.
É minucioso, detalhista, e é muito gratificante poder contemplar cinema de qualidade. A magnitude das imagens, a procura de si mesmo sem saber o que vai encontrar. Como aconteceu com Fermín, ele seguia Ignacio porque queria ser como ele, mas nem tudo é tão simples assim. Um garoto perdido, andando à procura de seu ser. Esse é um caminho solitário, e é preciso que assim seja. Como no fim de sua jornada, que na verdade, estava apenas começando. Ignacio chegou a seu destino, não exatamente como previa, mas o destino tinha preparado algo para quando chegasse. Já Fermín estava apenas iniciando sua jornada.
A fotografia é impecável, a natureza resplandecendo sobre o homem, o ruído do vento demonstrando solidão, recolhimento, recomeço, enquanto Ignácio estava desencantado, Fermín tinha a vicissitude e o idealismo. É lindo ver a cultura, os ritos e tradições por cada lugar que passam, as músicas, as festas, tudo muito cativante. Um filme com identidade. E cada espectador o absorve de um jeito.
"As Viagens do Vento" é um longa maravilhoso que instiga nossa curiosidade ao mostrar uma Colômbia belíssima.
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
Achados Musicais: Agnes Obel + Bon Iver
Conhecer bandas novas, encontrar aquele som que se encaixa perfeitamente ao teu gosto é sem dúvidas algo muito prazeroso. A música é poderosa e é capaz de causar sensações das mais variadas. Por isso nunca é demais compartilhar, para quem curte conhecer e experimentar novos sons, segue dois achados imperdíveis:
"Depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a música." (Aldous Huxley)
Agnes Obel
Agnes Obel é uma cantora e compositora dinamarquesa, oriunda de uma família de músicos aprendeu a tocar piano muito cedo encontrando inspiração em Jan Johansson, cujas melodias folk são misturadas ao jazz. Com a ajuda do produtor Elton Theander fundou sua banda intitulada Sohio, e depois de anos finalmente se lançou em carreira solo produzindo seu primeiro álbum chamado "Philharmonics".
O estilo folk clássico agrada a quem curte um som mais intimista, as canções são sempre acompanhadas pelo piano ou violão, é para apreciar e sentir cada detalhe. Bonito e agradável, é impossível não se encantar com a voz doce e as melodias suaves.
Suas inspirações musicais: Roy Orbison, Joni Mitchell, PJ Harvey, John Cale, Sonic Youth, Patti Smith, Joanna Newsom, Kate Bush e também os compositores franceses Claude Debussy, Maurice Ravel e Eric Satie.
Álbum "Philharmonics" (2010)
Dentre as músicas destaco "Riverside", que evoca sentimentos intensos, mesmo tendo uma aura sombria traz um encantamento único, "Just So" remete à infância, sonhos, é suave e simples, "Over the Hill" tem um peso a mais, é um choro, um chamado, mas completamente doce, e "Philharmonics" que intitula o álbum carrega um misto de inocência e mistério. Há também "Brother Sparrow", "Beast", "Avenue", "On Powdered Ground", "Close Watch", e as instrumentais, "Louretta", "Falling, Catching" e "Wallflower". Todas elas são muito curiosas, agradáveis e contemplativas. "Philharmonics" ganhou 5 prêmios em seus país de origem, no que fez Agnes Obel se tornar uma deusa na Dinamarca, Noruega e Alemanha.
Álbum "Aventine" (2013)
"The Curse" é a minha preferida deste álbum, a voz suave e o violoncelo dá um tom característico fazendo com que a música seja austera e leve ao mesmo tempo. "Fuel to Fire" dá a sensação de solidão, de perda, a melodia é uma das mais lindas numa combinação instrumental e vocal perfeita. "Dorian" é envolvente e nostálgica, "Aventine" que intitula o álbum é etérea, desperta sentimentos aconchegantes. Há também "Words are Dead", "Pass Them By", "Run Cried the Crawling", "Smoke and Mirrors", e as instrumentais "Chord Left", "Fivefold" e "Tokka". É um álbum refinado, traz a beleza dos instrumentos utilizados, como harpa, violino, violoncelo e o piano. É o clássico e o moderno juntos, o que o define é intensidade, simplicidade, minimalismo e magia. Deveras uma melancolia sonhadora.
Bon Iver
"Bon Iver" é uma banda de folk norte americana fundada no ano de 2007, liderada por Justin Vernon e pelos integrantes Michael Noyce, Sean Carey e Matthew McCaughan. O nome advém do portmanteau (combinação, sons e significados em uma única palavra) "Bon" e "Hiver", que significa bom inverno em francês.
Em meio a tantas coisas pretensiosas no estilo determinado folk-indie encontrei algo que vai além de rótulos, é um som admirável, um canto penetrante, é pra fechar os olhos e se deixar levar. Bon Iver tem características únicas, como a harmonização vocal, além do maravilhoso instrumental, violão, sax, banjo, bateria, piano, que marcam de maneira sublime o artista. Os dois álbuns lançados "For Emma, Forever Ago" (2008) e "Bon Iver, Bon Iver" (2011) merecem ser explorados, é um som que por vezes beira o surreal.
Álbum "For Emma, Forever Ago" (2008)
Incrivelmente sentimental este álbum é daquelas raras surpresas, com um clima sofrido e arranjos simples de violão juntamente com os falsetes de Justin Vernon, certamente acerta em cheio na veia emocional. Todas as canções revelam fragilidade, ressentimento e introspecção, são elas: "Flume", "Lump Sum", "Skinny Love", "The Wolves", "Blindsided", "Creature Fear", "For Emma", "Re: Stacks", e a curiosa instrumental "Team". O álbum nasceu de um curto período de isolamento de Justin Vernon, que se fechou durante meses num local remoto do estado americano de Wisconsin. Algumas músicas chegaram a ser executadas em cenas de séries como "Dr. House", "Grey's Anatomy" e "Chuck". Bon Iver é uma ótima companhia para contemplar silêncios num inverno suave e íntimo.
Álbum "Bon Iver, Bon Iver" (2011)
É um álbum mais elaborado e de grande sensibilidade harmônica, mistura-se elementos eletrônicos, filtros e outras técnicas de estúdio, com violões, vozes e outros sons. As músicas se desenrolam suaves, não há pretensões comerciais ou estética pré-moldada, as canções não têm refrões, poucas são as repetições, os graves e os agudos se misturam em meio a batidas, metais, cordas e teclados. A abertura do álbum se divide em duas faixas "Perth" que traz uma combinação de tambores e guitarra, e Minesotta, WI" trazendo uma atmosfera mais eletrônica. "Towers" incorpora bem a alma folk, "Michicant" demonstra a mistura sons e "Lisbon, OH" serve de prelúdio para a intensa "Beth/Rest". Ainda conta com a vibrante "Hinnom, TX", a cativante "Calgary", a sutil "Wash", e a solitária "Holocene". Acompanha também como bônus a bela e triste "Wisconsin", a inebriante e inspiradora "Come Talk to Me", e por fim a dolorosa "Can't Make You Love/Nick of Time". Um ponto a se destacar é a belíssima capa que representa toda a aura da banda, a melancolia e distanciamento do resto do mundo.
segunda-feira, 20 de outubro de 2014
BoJack Horseman
"Bojack Horseman" é uma série em animação original da Netflix, criada por Raphael Bob-Waksberg traz um humor negro e piadas sarcásticas. Ela não se assemelha a nenhuma outra série de animação, tem seu estilo próprio, sendo crítica e profunda.
A trama gira em torno de Bojack (Will Arnett), um famoso decadente, que outrora fez muito sucesso em uma sitcon chamada Horsin' Around, vinte anos depois ele se encontra desempregado e com crise existencial, vivendo com seu amigo Todd (Aaron Paul), um ex-viciado em videogames.
A série explora muito bem a diversidade de personagens, onde se inclui humanos e seres antropomórficos, Bojack é um cavalo e sua personalidade é extremamente egocêntrica, apenas enxerga o que está a sua frente, tudo circula no "eu", ele deseja escrever uma biografia sobre sua vida, mas devido a sua incompetência decide contratar a humana ghost-writer, Diane (Alison Brie). Bojack passa a contar suas memórias, e ela vai percebendo o quão irresponsável e egoísta ele é, porém a imagem que o livro precisa passar para fazer com que volte aos holofotes da fama, é a oposta.
A série é cheia de referências, várias celebridades são citadas, como Beyoncé, Naomi Watts, Quentin Tarantino, entre outras tantas.
É um mergulho profundo no vazio, por trás das piadas há uma reflexão contundente sobre a famosa Hollywood, ou melhor Hollywoo (o D foi roubado), no quão superficial e efêmero é o tal status de celebridade. O tempo todo nos deparamos com cenas em que Bojack é reconhecido por algum fã da sitcon, e o como ele se enche de orgulho e logo depois desaba. Pura decadência, é notável a sua mudança, antes um cavalo cheio de charme, agora esbanja uma saliente barriguinha e vive bebendo para não dar tempo de ficar sóbrio.
Outro personagem da série que merece toda a atenção é a Princesa Carolyn (Amy Sedaris), uma gata cor de rosa que administra a carreira de Bojack, inclusive até teve um relacionamento com ele. Sem jamais perder o foco é uma workaholic, o mais legal disso tudo é que por mais que os personagens sejam humanizados não perdem certas características, como enquanto a Princesa Carolyn discute assuntos de trabalho ao telefone, brinca com um rato ou arruma seus bigodes, e em outras ocasiões salta dos muros. Outro bem interessante é o ator e namorado de Diane, Mr Peanutbutter (Paul F. Tompkins), um cão sempre amigável e feliz. Em várias cenas demonstra perder o foco da conversa e não se importar com a irritação alheia, e até persegue o carteiro. Ainda há os passarinhos paparazzi, o pinguim dono de uma editora a beira da falência, claramente uma sátira com a editora "Penguin", entre outros que vão aparecendo esporadicamente.
"Bojack Horseman" tem diálogos sensacionais e um timing de primeira, além de todas as personalidades serem trabalhadas perfeitamente. Ela impressiona por ser ao mesmo tempo engraçada e dramática. Com 12 episódios, vale dar uma chance a esta série de animação adulta, não desanime e assista até o fim, pois os últimos episódios são os melhores, fecha com chave de ouro esta que é uma série original e muito bem elaborada. Vale ressaltar a excelente dublagem brasileira, sem dúvidas merece o reconhecimento do ótimo trabalho.
Em "Bojack Horseman" há uma liberdade criativa impressionante, ela detona em certos aspectos, são expostos comportamentos lamentáveis em seus personagens, rimos dos acontecimentos, mas na verdade, é triste.
A história do livro perturba Bojack que acaba não gostando do resultado, e portanto, decide escrever por si mesmo, Diane o retratou como um alguém cheio de complexos, ele não é a perfeição, imagem que Hollywood adora vender, pessoas com vidas maravilhosas e etc... No fim ele deixa ser publicado e até ganha um globo de ouro, do qual não desgruda por um segundo.
Os episódios finais carregam uma força maior, por exemplo, na cena em que Bojack tem uma viagem alucinante sob o efeito de drogas, e em diálogos com Diane, num deles ele pergunta se no fundo ela o acha uma boa pessoa, e ela diz que não acredita nessa coisa de "no fundo", pois as pessoas são aquilo que dizem, e principalmente, aquilo que fazem.
E o que não pode deixar de ser dito é a abertura hipnotizante e, claro, seus créditos finais, cuja música é uma contribuição da banda Grouplove. A letra e melodia grudam na cabeça: ♫ In the 90's I was in a famous TV show ♪...
É impressionante a evolução da série e o como nos pega de surpresa, é tensa, pesada e com dilemas existenciais, inclusive com o maior de todos, a solidão.
segunda-feira, 13 de outubro de 2014
A Árvore do Amor (Shan Zha Shu Zhi Lian)
"A Árvore do Amor" (2010) é um romance inspirado no livro homônimo de Mi Ai, que teve sua primeira publicação pela internet em 2007, e conta uma história de amor que acontece em plena revolução cultural chinesa.
Dirigido por Zhang Yimou, conhecido por seus épicos de grande beleza, como "Herói" - 2002, "O Clã das Adagas Voadoras" - 2004, "A Maldição da Flor Dourada" - 2006, "Uma Mulher, uma Arma e uma Loja de Macarrão" - 2009, "Flores do Oriente" - 2011, confirma ainda mais sua maestria em compor um filme que apesar de retratar um período crítico de seu país, mostra de maneira refinada o amor em seu estágio mais puro. Zhang Yimou tem em sua filmografia obras de artes fascinantes tanto no apuro estético quanto a seu conteúdo crítico em relação a política chinesa.
Em "A Árvore do Amor" o período é o da revolução cultural chinesa, na década de 60, implantada pelo ditador Mao Tsé Tung, a qual impunha a perseguição a ideias capitalistas e "burguesas", muitos professores e intelectuais foram assassinados, e o ensino superior foi praticamente desativado do país. Uma jovem estudante é enviada para o campo para reeducação. Chegando lá, ela conhece um rapaz que trabalha na área de geologia na região. Aos poucos, eles se apaixonam. Ela é de família pobre (o pai foi preso acusado de ser burguês), e ele de família proeminente (a mãe se suicidou, era a favor do capitalismo). Eles passam anos se vendo as escondidas, até que a mãe dela descobre, e diz que eles só podem se ver quando ela completar 25 anos, porém o destino traz surpresas para os dois.
A lenda do espinheiro dá o tom do filme, afirmava-se que as flores não eram brancas e sim vermelhas, devido aos heróis mortos que ali foram enterrados. Logo no início somos apresentados a esta história que contavam aos jovens que iam a zonas rurais com a finalidade de serem reeducados. Jing tem 14 anos, é muito humilde e se esforça o máximo para conseguir ser professora, na aldeia Xiping conhece Lao Sun, filho de um militar, os dois se apaixonam perdidamente e o espinheiro se torna uma espécie de símbolo para ambos. A diferença social é grande, por causa do passado de Jing exige-se muito cuidado, pois o partido pode tomar como traição qualquer deslize. Lao Sun é respeitoso e a ajuda em tudo. Interessante observar que o foco é o romance, por mais que fique claro a rigidez do regime, as regras impostas e o medo na face da menina diante a seu futuro, o lado político nunca se sobressai, é algo orgânico.
Jing e Sun sempre dão um jeito de se encontrar, a delicadeza permeia todo o filme, o constrangimento da menina em certas cenas, como a dificuldade do toque, Sun muito gentil encontra meios de livrá-la dessa vergonha, aliás a gentileza e a decência é tão genuína no personagem que de modo algum soa clichê, emociona porque é de verdade e espontâneo, ele não faz isso como meio de conseguir algo em troca de Jing, mas sim por amá-la e querer vê-la feliz. Em um dos diálogos mais belos ele diz: "Você pode nunca ter se apaixonado antes e não acreditar no amor eterno, mas quando você se apaixona sabe que tem sempre alguém que prefere morrer do que trair você."
Após serem descobertos pela mãe de Jing, ficam proibidos de se ver, Jing corre o risco de colocar tudo a perder, e só aos 25 anos é que poderão então consumar o amor. Mas, a vida revela surpresas, nem sempre tão agradáveis. Nesse ponto as lágrimas são inevitáveis, cenas de partir o coração. Sem dúvidas, um romance maravilhoso, indispensável para quem gosta do gênero.
É um retrato de amor puro, coisa que não vemos mais e nem acreditamos, a alguns pode soar melodramático, pois Sun faz de tudo por sua amada, lava seus pés machucados, se corta para obrigá-la a se cuidar, e seus presentes, como a caneta, a bota, o pano para a confecção de um casaco e outras miudezas bem significativas.
Por mais ingênuas que algumas situações possam parecer, todo o devotamento de Sun a Jing demonstra a dignidade que envolve a relação e o sentimento que existe. A poesia que emana de seus atos, o deslumbramento, a gentileza e seus valores dão o sentido da palavra amor e o sentido de viver.
Os atores esbanjam graciosidade e a história se desenrola de modo natural, emociona o espectador ao ver tantas sutilezas. É uma ótima amostra da imensa capacidade deste grande diretor chamado Zhang Yimou.
quinta-feira, 9 de outubro de 2014
Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit)
"Dois Dias, Uma Noite" (2014) dirigido por Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne (O Garoto da Bicicleta - 2011) é um filme que retrata uma mulher comum que luta para continuar em seu emprego, Marion Cotillard despida de vaidade se entrega a uma personagem frágil e que enfrenta obstáculos tanto internos como externos para dar seguimento a sua vida. Na Bélgica, Sandra (Marion Cotillard) ficou afastada do trabalho por depressão e, quando retorna, descobre que seus colegas aceitaram receber um bônus salarial no lugar de sua vaga. Agora, ela tem apenas um final de semana para fazê-los mudarem de ideia, para que ela possa manter seu emprego.
Sandra é casada com Manu (Fabrizio Rongione), tem duas filhas e é operária em uma fábrica, após uma licença médica volta ao trabalho, mas ali descobre que 14 dos seus 16 colegas votaram a favor de um bônus de mil euros anuais, ao invés de continuar com ela. Desesperada, Sandra junto com uma amiga tenta convencer o patrão a refazer a votação na segunda-feira, já que o chefe do setor teria influenciado o resultado ao dizer à equipe que se não fosse ela demitida, seria um deles. O patrão aceita o pedido e Sandra tem o final de semana para falar sobre sua situação e fazer com que votem a favor dela. Vindo de uma crise de depressão ela não se sente nada bem invadindo a vida das pessoas ao dizer que precisa de seu emprego, por vezes se sente humilhada. Como pedir a alguém que renuncie seu bônus para que ela fique?
As cenas são repetitivas, ela diz aos seus colegas as mesmas palavras, mas as reações são diferentes, uns aceitam e até choram, outros desprezam, desconversam, ou simplesmente não a atende, tem também as reações agressivas e grosseiras. A saga de Sandra para conseguir permanecer no emprego é dura, triste, mas ao mesmo tempo não podemos julgar tais reações, pois eles assim como ela necessitam do dinheiro.
Ao longo ela recebe o carinho e o incentivo do marido, mas isso não é capaz de fazê-la sentir-se melhor, nem os pontos a favor a deixam feliz, mas mesmo assim continua. Uma coisa é certa, se ela conseguir permanecer no emprego, não vai ser a mesma coisa, afinal o ambiente se tornará hostil por parte daqueles que não a queriam lá. Só que o desemprego pesa mais do que qualquer outra situação que terá que enfrentar.
"Dois Dias, Uma Noite" é um filme direto e reflexivo, mostra as estratégias do corporativismo ao fazer de seus funcionários praticamente escravos em troca de um bônus, eles aceitam receber o valor de mil euros anuais tendo a carga horária aumentada, pois Sandra iria ser mandada embora. Que vantagem há nisso? E a que ponto Sandra teve que chegar, implorar por algo que não ia beneficiá-la como ser humano, mas que apenas manteria sua subsistência e a de sua família. A perda da dignidade, a falta de solidariedade, e o individualismo é muito bem explorado no filme.
A protagonista vivida pela bela e talentosa Marion Cotillard - uma das mais importantes atrizes da atualidade - mostra-se complexa, mas comum, não há grandes dificuldades financeiras, mas é claramente humilde, assim como a maior parte da população que necessita de trabalho para sobreviver, e como também na maioria das vezes, trabalho esse que não valoriza e nem dignifica.
Todas as vezes em que ela vai ao encontro de uma pessoa para pedir que vote a favor dela é uma surpresa que nos deixa tensos e, principalmente, reflexivos.
Com o passar do tempo Sandra se esgota a ponto de não aguentar e nem ter mais esperanças, em um lapso toma um punhado de remédios, mas logo a seguir se arrepende quando uma colega bate a sua porta e diz estar com ela. É uma luta difícil e incerta, mas em nenhum momento o filme apela a vitimizando. Um ponto a se destacar é a ausência de trilha sonora, o que só faz ressaltar a profundidade do tema discutido.
"Dois Dias, Uma Noite" é simples, mas muito pertinente e realista, o fim vem com ares otimistas e com uma oportunidade de recomeço. É um filme que aborda o social de maneira honesta.
terça-feira, 7 de outubro de 2014
Eu Não Tenho Medo (Io Non Ho Paura)
"Eu Não Tenho Medo" (2003) de Gabriele Salvatores (Estranhos Normais - 2010) é um filme que mescla o pior e o melhor do ser humano, o pior no mundo adulto e o melhor no mundo infantil, a inocência anda lado a lado com circunstâncias apavorantes. É um filme que carrega uma grande beleza estética e narrativa, merece elogio também a linda e emocionante interpretação do garoto Giuseppe Cristiano.
A trama segue Michele, um menino de dez anos, filho de uma família humilde que vive no sul da Itália, ele passa seus dias a andar de bicicleta com os amigos no pequeno povoado cercado por campos de trigo. Já no início acompanhamos ele e seus amigos andando de bicicleta na imensidão dourada dos trigos, onde acabam parando em uma construção em ruínas, Michele chega por último, pois parou para ajudar sua pequena irmã Maria (Giulia Matturo), uma graça de menina. Lá discutem quem deverá pagar a prenda, e a escolhida é uma gordinha, mas Michele intervém e diz que pagará no seu lugar, o líder decide que ele ande sob o andaime no teto do casarão, feito isso os garotos vão embora, mas a pequena Maria perdeu os óculos e Michele volta ao local para procurar, no que acaba encontrando-os perto de algo que parece um buraco tampado com um pedaço de lata. Curioso abre um pouco e se depara com um cobertor e por debaixo um pé, assustado sai correndo ao encontro da irmã. A partir daí o clima de suspense ganha forma, ao voltar para casa encontra seu pai, Pino (Dino Abbrescia), que o trata bem e faz brincadeiras, mas a imagem vista não sai de sua cabeça. No dia seguinte Michele volta ao lugar e abre novamente a tampa, o que encontra o assusta, e nós espectadores ficamos em dúvida sobre a história, o gênero do filme demora a ficar claro, mas ao ser desmistificado tudo, a sensação é de angústia.
Vou evitar dar detalhes da história, mas é a realidade vista por olhos de uma criança de personalidade encantadora e caráter notável. Ele passa por uma transição drástica, da qual verá as coisas não mais como fantasias.
A aldeia em que Michele vive resiste com algumas casas, a maioria foi embora, e todos os moradores estão envolvidos com o que há escondido no buraco, a cena em que as crianças voltam para o povoado e não há nenhum adulto, pois estão todos escondidos, aperta o coração, as crianças tão inocentes, principalmente Michele que guarda o seu "segredo". As coisas ficam tensas mesmo quando seu pai descobre que ele sabe o que existe no esconderijo, a situação fica fora de controle e as circunstâncias se tornam trágicas.
A coragem é algo que permeia o filme, Michele é um bravo ao fazer suas escolhas. Pode até ter excessos de melodrama, mas aos corações sensíveis é um conto de amadurecimento que mostra valores nobres.
Surpreendente e emocionante, "Eu Não Tenho Medo" é indicado para aqueles que gostam de filmes que passam expressivas lições de amizade, solidariedade, e até heroísmo.
segunda-feira, 6 de outubro de 2014
Lobo (Volchok)
Realizado pelo russo Vasili Sigarev (Zhit - 2012), "Lobo" (2009), conta a história de uma mãe e da sua filha, que não têm nomes e estão numa incessante corrida. A mãe tenta fugir da filha na tentativa de começar uma nova vida e a filha corre atrás da mãe por não saber viver sem ela.
A personagem de Yana Troyanova é uma jovem mãe irresponsável, egoísta e selvagem, não existe espaço para a filha (Polina Pluchek), ela deseja apenas satisfazer suas necessidades. Vemos tudo através dos olhos da menina que busca atenção de sua desleixada mãe, que é tratada como um trapo por aqueles com quem se envolve, e de um jeito ou de outro desconta na garotinha. Sem dúvidas, essa inconstância é uma experiência dolorosa para uma criança que necessita de proteção e cuidados.
As cenas impactam, o desprezo choca, como pode uma mãe abandonar um filho, deixá-lo a mercê do nada, do destino? É da natureza humana, porque um animal não faz uma coisa dessas, eles protegem e alimentam seus filhotes até que estejam prontos e não sejam mais indefesos, já o ser humano nutre sentimentos que destroem tanto a si próprio, como aqueles que o amam. A mãe do filme não esbanja qualquer afeto pela menina, ela foge, não a quer por perto, e essa criança toda vez que a vê busca atenção.
Em dado momento a garotinha começa a frequentar o cemitério e faz amizade com um menino que acabara de ser enterrado, ela lhe conta histórias, mente sobre sua vida, leva doces, enfim... Sua avó morre e a mãe acaba culpando-a porque ela estava conversando com os mortos, depois desse episódio a coitadinha fica completamente perdida, a mãe bebe, se droga e vai internada, a situação fica tensa, pois quem ampara a menina é uma tia distante. O tempo passa e a mãe retorna como se não tivesse acontecido nada, ainda humilha a garota que agora já tem 14 anos. É o mesmo de sempre. Ela está desiludida sobre sua mãe, mas ainda corre atrás como se houvesse alguma esperança. A cena final é triste e amarga, o drama apela para o nosso psicológico.
Interessante é que a menina não é uma criança chorosa ou doce, ela é agressiva com os amantes da mãe, é sombria e carrega um semblante sério, um olhar ameaçador. É como se ela exigisse esse amor do qual não recebe. Em vários momentos inocentemente e confusa tenta acariciar a mãe, assim como os amantes, mas sempre é jogada de lado. Já grande a garota se torna retraída e quase sem voz, impossível manter um diálogo com aquela mãe que está a sua frente, não há o que dizer. É uma mulher vazia que jamais saberá o significado e a essência da palavra amor.
É deprimente, pesado, mas retrata uma história que acontece muito, a relação de mãe e filha, a rejeição de uma e o amor de outra. Se a mãe desaparecesse, talvez a dor dessa criança fosse menor, ela seguiria sua vida com uma certeza, agora nessa situação que vive, em que ora a mãe está por perto, ora está longe, cria um sofrimento imensurável e constante. É uma ferida que nunca se fecha.
"Lobo" é um filme duro, seco, e cujo final assusta. É triste saber que não há consciência em se colocar um filho no mundo e ainda mais fazê-lo sofrer depois.
"Acordei com a certeza de que tudo tinha acontecido daquela forma. Então, fui ao cemitério. Eu queria encontrar algo. Não sabia o quê... Talvez, a mim mesma."
quinta-feira, 2 de outubro de 2014
Gloria
"Gloria" (2013) do diretor chileno Sebastián Lelio é um raro retrato de uma mulher que está perto de completar 60 anos, no longa não há receios em expor chateações, relacionamentos, divertimento, e sexo.
Gloria (Paulina García) é ativa, leve e independente, divorciada há tempos e com os filhos já fora de casa, deseja apenas uma coisa: viver! Para isso ela frequenta bailes, onde se descontrai, dança e bebe, vemos o seu cotidiano, o esforço em manter contato com os filhos, o trabalho, a dificuldade em lidar com o seu vizinho barulhento dono de um gato que vive a invadir seu apartamento, enfim, somos introduzidos à vida desta mulher. Apesar de conviver bem consigo mesma, a solidão lhe afeta de vez em quando e ao conhecer Rodolfo (Sergio Hernández), um ex-oficial da marinha, dono de um parque de paintball, a paixão acontece, entre conversas carinhosas o romance engata, mas o dia a dia vai revelando defeitos desconfortáveis. O relacionamento deles é retratado de forma realista, o longa merece elogios por colocar a maturidade em evidência, pessoas das quais viveram tanto tempo do lado de alguém recomeçando novamente.
O ritmo segue agradável, em nenhum momento as situações caem no excesso dramático, Gloria lida à sua maneira com as circunstâncias. Por exemplo, quando leva Rodolfo para o aniversário de seu filho e lá encontra seu ex-marido e a namorada, e a filha que está grávida de um sueco, acontecem picuinhas, mas nada que estrague o momento, porém Rodolfo se sente mal e vai embora sem avisar. Gloria fica chateada e não quer mais vê-lo, mas ele liga, se desculpa e então voltam a namorar, só que ao invés de melhorar, ele segue cometendo deslizes imperdoáveis. Manter uma relação saudável com a ex-mulher é plausível, e com os filhos nem se fala, é algo imprescindível, mas Rodolfo exagera, as filhas e a ex-mulher que de ex não tem nada são completamente dependentes dele, o que faz com que seu relacionamento com Gloria comece a ruir.
O cotidiano de Gloria é o grande espetáculo, sem muito glamour, mas extremamente belo, pois ela ao contrário de muitas mulheres dessa idade não se sente velha, o estágio em que se encontra é de pura liberdade em ser, já não há responsabilidade com outros, é uma grande chance para conhecer-se melhor e viver experiências.
Paulina García executa maravilhosamente sua personagem, uma mulher forte, mas carente, decidida, que busca e não vê obstáculos em recomeçar. Vemos Gloria pulando de Bungee jumping, bebendo, fumando maconha, dançando na pista, além de cantar suas músicas preferidas. Aliás, a música é um ponto a se destacar, incluindo "Águas de Março" de Tom Jobim cantada por uma dupla com um sotaque todo especial, também tem "Lança Perfume" de Rita Lee, e fechando com chave de ouro "Gloria" de Umberto Tozzi.
A melancolia, o entusiasmo e a delicadeza são utilizados na personagem, e quando ela percebe que não há ninguém que possa preencher seu vazio, eis uma celebração de si mesma.
"Gloria" é um filme delicioso, há momentos encantadores e dolorosos, é um recorte realista de uma mulher que busca e não tem medo de viver, são as delícias e as angústias que permeiam a chamada fase "melhor idade", e que apesar dos contratempos, tudo continua, recomeços são importantes e em qualquer idade, afinal o principal é nos sentirmos bem e jamais deixar que a chama do desejo de viver se apague.
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