quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Marte Um

"Marte Um" (2022) dirigido por Gabriel Martins (No Coração do Mundo - 2019) é um filme feito com muito esmero ao retratar o espírito do povo brasileiro, as lutas travadas diariamente para conseguir seu sustento, a preocupação com os familiares e ainda conciliar os sonhos e esperança. Acompanhamos uma família de classe média baixa que mora na periferia de Contagem e sem grandes eventos vamos conhecendo cada um deles sobrevivendo aos desafios do cotidiano.
O filme traz a história de uma família periférica, nos últimos meses de 2018, pouco depois das eleições presidenciais. O garoto Deivinho (Cícero Lucas), o caçula da família Martins, sonha em ser astrofísico e participar de uma missão que em 2030 irá colonizar o planeta vermelho. Morando na periferia de um grande centro urbano, não há muitas chances para isso, mas mesmo assim ele não desiste. Passa horas assistindo vídeos e palestras sobre astronomia na internet. Wellington (Carlos Francisco), o pai, é porteiro em um prédio de elite e há um bom tempo está sem beber, uma informação que compartilha com orgulho em sessões do Alcoólicos Anônimos. Tércia (Rejane Faria) é a matriarca que depois um incidente envolvendo uma pegadinha de televisão acredita que está sofrendo de uma maldição. Por fim, a filha mais velha é Eunice (Camilla Damião) que pretende se mudar para um apartamento com sua namorada mas não tem coragem de contar aos pais.
A sensibilidade com que os personagens são retratados cativa o espectador, cada um deles tentando prosseguir da melhor maneira mesmo tendo a restrição econômica, dá-se o jeitinho e, acima de tudo, mesmo com todos os percalços externos e internos ao fim de tudo estão juntos. Tem um belo visual, os olhares brilham feito estrelas, há sempre um ar melancólico, porém nunca se rendendo de fato, a vida e os sonhos sempre resplandecem. Ver na tela características tão comuns, problemas tão corriqueiros que a imensa maioria passa aperta o coração, essas simples nuances de representatividade faz toda a diferença para conexão com a história, a crise econômica, as injustiças, os receios, os obstáculos praticamente intransponíveis, aliado a isso um período de obscurantismo na política começa a nascer e atacar os mais pobres, sobreviver a essas coisas só com muita força. Tércia por exemplo, depois de passar por uma pegadinha de um programa de TV fica tão traumatizada que acredita estar amaldiçoada, pois tudo ao seu redor começa a ruir, Wellington é um sujeito honesto e acaba sendo passado para trás em seu trabalho e sem piedade é jogado fora, também pressiona seu filho para que jogue futebol e até consegue uma vaga para participar de uma peneira, mas Deivinho se acidenta e fica impossibilitado, daí Wellington se rende a bebida pelo desgosto.

Deivinho sonha e o custo desse sonho é muito alto, ele passa o dia estudando sobre o universo, pretende apesar de tudo se tornar astrofísico e participar da missão que colonizará Marte. Ele é inteligente e até cria seu próprio telescópio, o que nos faz refletir sobre o tanto de pessoas capazes e cheias de vontade que estão presos em rotinas estafantes, mas que poderiam ser cientistas, astrônomos, profissões que não chegam para quem é pobre, e não adianta discursar sobre esforço porque essa é uma parcela extremamente pequena que contém doses altas de sorte. A verdade é que não existe incentivo e o desejo de que os pobres concretizem seus sonhos e saiam ocupando esses lugares. O filme neste aspecto é bastante sutil e prima mais pela beleza e poesia do cotidiano aprofundando aos poucos e deixando que o espectador perceba essas questões.
 
"Marte Um" é um conto lindo e triste sobre a realidade do povo pobre do Brasil, que sente a esperança pulsar toda vez que algo se despedaça a sua frente, esse poder de ser reerguer e de acolhimento entre seus familiares é o encanto do filme. Quem assistiu e não se identificou e se emocionou quando o pai fala: "A gente dá um jeito"? Não é daquelas propostas rasas de que é importante sonhar, não é isso não, é sobre a legitimidade de sonhar e a privação do meio para a concretização, é sobre a força que nasce de múltiplos sentimentos contidos, esses detalhes ganham uma grandeza singela na tela. A gente chora e sorri assistindo. Vale ressaltar a produtora mineira "Filmes de Plástico", o catálogo de filmes são riquíssimos e retratam a realidade brasileira com muito esmero.

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