terça-feira, 21 de janeiro de 2014
Sonhos (Dreams)
Akira Kurosawa é um dos melhores diretores de todos os
tempos, levou o cinema japonês para um patamar elevado e desde então tem
inspirado diretores do mundo todo, e enriquecido os espectadores com suas
belíssimas histórias. "Sonhos" é uma obra baseada em sonhos
verdadeiros que Kurosawa teve ao longo de sua vida, dividido em oito segmentos
destaca-se alguns temas bem recorrentes, como a morte e a guerra. Somos contemplados
por tradições e passeamos pela cultura japonesa. Por mais que se fale deste
filme nunca será o suficiente, é daqueles que toda vez que é assistido tira-se
algo de novo.
"Uma vez eu tive um sonho..." Esse é o começo
desta obra que abrange diversos aspectos de maneira singela e sublime. No
primeiro retrata uma criança que desobedece a mãe e vai para a floresta espiar
a dança do acasalamento das raposas, ao voltar sua mãe não lhe deixa entrar,
pois ele havia desrespeitado sua ordem e invadido o ritual das raposas, assim
coloca um punhal em sua mão afim de que por honra pratique o haraquiri - o
suicídio. Porém há um meio de se redimir, voltando à floresta e pedindo
desculpas à elas. É uma amostra do quão rígida é a educação dos japoneses, e
que honra e respeito é ensinado desde pequeno.
No segundo conta sobre o jardim de pessegueiros, um garoto
ao servir chá para suas irmãs repara que uma menina foge, indo ao seu encontro
vê apenas tocos do que um dia foi um imenso jardim de árvores frondosas,
percebe que a garota que fugiu é uma boneca, o símbolo do festejo da florada
dos pessegueiros, mas como ali já não existe mais nada, não faz sentido haver
mais bonecas. Com uma dança melancólica vemos os espíritos dos pessegueiros,
que por fim entende que o garoto nunca quis que as árvores fossem arrancadas. É
um belo retrato de uma tradição que cultua a natureza como forma e espírito.
Esse sonho tem um poder hipnotizante.
O terceiro sonho é de três homens que enfrentam com muito
esforço uma nevasca, mas em determinado momento acabam sucumbindo, daí surge
uma mulher que envolve o líder com um manto prata, ela pode ser considerada a
morte, mas de repente ele reage e consegue visualizar o acampamento. É a luta
contra a morte e o quanto somos impotentes perante a natureza.
O quarto sonho mostra um capitão andando por um túnel e ao
passá-lo escuta passos atrás de si, quando vira é um soldado morto em combate,
mas que não acredita estar. O capitão acaba o convencendo, mas de repente
aparece o pelotão inteiro. Uma clara mensagem sobre a estupidez da guerra. O
capitão se sente envergonhado por continuar vivo, e diante dos soldados tenta
expiar sua culpa pelas atrocidades da guerra.
O quinto sonho representa a arte e a poesia. Um jovem pintor
entra nos quadros de Van Gogh e encontra-se com o próprio, interpretado por
Martin Scorcese. O personagem anda pelas pinturas do artista, como a
"Campo de Trigo com Corvos", talvez a mais famosa. Ele diz ao jovem
rapaz de como as paisagens o fazem pintar freneticamente. Van Gogh necessita pintar
enquanto há luz, pois sabe da efemeridade. Emergimos em seus quadros em uma
viagem onírica repleta de significados.
No sexto sonho o monte Fuji entra em erupção ao mesmo tempo
em que ocorre um incêndio numa usina nuclear, provocado por falha humana.
Enquanto a radiação toma o ar, as pessoas fogem descontroladamente. Vemos
isolados uma mãe com seus dois filhos e dois homens tentando fugir das fumaças
coloridas que representam determinadas substâncias. De repente um dos homens
diz ter sido um dos responsáveis pela tragédia, sendo assim prefere morrer logo
do que sofrer as consequências lentamente. A radiação não tem cor na vida real,
ela é invisível e o povo sente os efeitos nocivos com o tempo. Esse
sonho/pesadelo é o grande fantasma que acompanha os japoneses, é a estupidez do
homem em prol do conforto, e sua tecnologia antiecológica. Isto reflete no
próximo sonho/pesadelo, com o demônio chorão. É retratado o pós tragédia, onde
há muitas cinzas, mutações ambientais e humanas. Um viajante do tempo encontra
um ogro, assim por ele designado, e lhe conta como tudo ocorreu. Mostra o meio
ambiente deformado, a hierarquia dos ogros que se alimentam deles mesmos quanto
menor o chifre, e os que têm muitos chifres sofrem de uma dor terrível e estão
condenados a imortalidade. Cada um sofre um tipo de punição, a natureza se
organiza diante o que cada um fez. O ogro diz ao viajante que se lamenta por
ter sido tão egoísta e ganancioso.
No último sonho, o povoado dos moinhos, esbanja um ritmo de
vida da qual faria o ser humano dar valor ao que realmente interessa, buscando
na natureza o básico para viver. O velhinho de 103 anos propõe um retorno às
origens e tradições. O mesmo viajante se deslumbra ao chegar na aldeia repleta
de moinhos, e ao encontrar com o velho indaga porque não há eletricidade no
local, ele responde: "Não precisa, pois assim é a noite, por que ela
deveria ser clara como o dia? Eu não ia querer noites claras, que não deixassem
ver as estrelas."
Esse utópico sonho nos diz que ser humano e natureza são uma
coisa só. Não há distinção entre um e outro, somos parte dela. Uma bela
mensagem, já que atualmente pouco nos importamos com o meio, somos movidos pelo
egoísmo e ambição visando apenas o conforto do presente. Sabe-se que os
recursos da natureza um dia acabarão, mas claro, não pensamos nisso, está tão
distante. Somos pobres, limitados e estúpidos. Escravos de apetrechos
tecnológicos que cada vez mais nos fazem infelizes, pois nunca serão o
suficiente. O ser humano esqueceu que faz parte da natureza, destruindo-a
consequentemente destruímos a nós também. De forma bem singela o velhinho
disserta sobre uma verdade, o homem cria coisas das quais não precisa, mas que
julga ser indispensáveis. O que na verdade necessitamos não cuidamos. Parece
clichê, mas é fato que caminhamos para um futuro não muito generoso.
"Sonhos" é um filme como poucos, consegue nos
inebriar diante as imagens abrindo portas da nossa mente, cada sonho contém
suas particularidades, uma explosão visual e emocional que traz críticas à sociedade
em relação ao modo que vivemos.
É arte pura, um deslumbre visual e uma avalanche reflexiva.
Cada vez que se pensa a respeito mais e mais pensamentos vêm à tona. Kurosawa
nos deu uma linda obra-prima que deve ser vista por todos, e principalmente passada
adiante.
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