quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Vênus Negra (Vénus Noire)

Abdellatif Kechiche é um diretor primoroso, recentemente seu nome ganhou notoriedade com o "Azul é a Cor Mais Quente", mas seus filmes anteriores são tão bons quanto.
"Vênus Negra" (2010) baseado em fatos reais retrata a sordidez humana. Saartjie, a Vênus Hotentote, nascida em 1789 às margens do Rio Gamtoos, no atual Cabo Oriental, na África do Sul, é pertencente à família Khoisan, mais conhecida como bosquímanos. Uma das características das mulheres bosquímanas era a protuberância das nádegas, por excesso de gordura, fenômeno conhecido como esteatopigia. Ela foi serva da família Baartman, agricultores holandeses que moravam nas proximidades da Cidade do Cabo. Convidada e iludida para se apresentar em espetáculos em Londres a fim de adquirir dinheiro acaba sendo humilhada de diversas maneiras.
A atriz cubana Yahima Torres deu vida a inocente Saartjie, seus olhares e silêncios nos dizem e emocionam muito, descobrimos um pouco dessa mulher que era doce, e que principalmente necessitava de afeto. Saartjie era exibida como um animal, uma aberração selvagem vinda da África, um lugar considerado extremamente exótico para os padrões europeus da época. As cenas são exibidas em longos planos, mostrando cada detalhe da apresentação, onde a mulher é tirada de uma jaula e exposta ao público curioso. Ela dança, toca e é apalpada, fato que entristece muito Saartjie. Por causa de suas características físicas avantajadas e o tal "avental hotentote" (pequenos lábios vaginais muito desenvolvidos) foi obrigada a submeter-se em terríveis situações.
A cena inicial já revela o racismo mascarado sob a forma de ciência. Uma aula de anatomia que acontece na Paris do começo do século XIX. Na ocasião, são comparados atributos físicos de uma mulher negra com macacos. O médico enfatiza: "Eu nunca vi a cabeça de um ser humano tão parecida com a de um macaco". Estudiosos acreditavam que os hotentote estavam muito próximos da raiz da espécie humana. E quando ficam sabendo das apresentações em Paris foram oferecer dinheiro em troca dela ser objeto de estudos durante o dia todo, mas Saartjie tinha vergonha de se despir completamente por conta de suas partes íntimas, e era exatamente isso que os estudiosos precisavam para saber se ela era uma hotentote legítima. Muito humilhante e desumano a forma como a tratam. É a perversidade humana em seu mais alto grau. Nesse momento ela já estava com outro explorador, pois Caezar irritado com Saartjie a vendeu para Réaux, que por sua vez era muito mais agressivo e não a poupava nas apresentações, sendo tocada com muita violência.

Muitas vezes Saartjie dizia que não era escrava, que recebia salário e que o que fazia era uma representação, como no teatro, fora dali era livre. Sua submissão era demais, dizia ser burra, mas a verdade é que ela não tinha para onde correr, e por isso aceitava sua bizarra situação. O homem em quem confiou a colocou para fora de sua vida em razão do dinheiro que foi perdido por ela não querer mostrar os lábios vaginais. Posta em outras mãos foi violentamente agredida, tanto fisicamente como moralmente, sua imagem de mulher se destruiu por completo.
Os olhos de Saartjie demonstram uma tristeza e um vazio imensurável, além de fragilidade e impotência diante aqueles ao seu redor. O filme faz questão de mostrar suas apresentações por inteiro a fim de que retrate a desumanidade na espécie humana. E quando se pensa que nada poderia piorar Saartjie é deixada a mercê da vida, acaba se prostituindo, adoece e mais uma vez é jogada na rua, sem ter mais forças para ir adiante, falece, mas nem assim consegue ter paz. Réaux a encontra e a vende para os estudiosos de Paris, que fazem um modelo a partir de seu corpo. Seus restos mortais (esqueleto, órgãos genitais e cérebro) ficaram expostos no Museu do Homem da França, até 1985. Houve apelos esporádicos pela devolução dos seus restos mortais, e só em 2002 foram entregues à África do Sul.
"Vênus Negra" mostra de forma contundente o racismo científico, um exemplo é a ideia de que o crânio se assemelhava com o do macaco, e de que vários aspectos da fisionomia eram "inferiores". Os europeus se achavam e desejavam expor suas teorias. No século XIX o racismo e a eugenia eram muito explícitas e ganharam força. A exotização da mulher negra nasceu daí.

Muito se diz que os tempos são outros, mas querendo ou não o exótico hoje em dia é vendido sob formas que aguçam a curiosidade. Uma amostra são os pacotes turísticos vendidos mundo afora para se conhecer as favelas do Brasil, ou as mulatas do carnaval que se exibem sem pudor algum, e cuja imagem é vendida como o símbolo do país.
Os períodos históricos servem para analisarmos o racismo, no século XIX era mascarado pela ciência, muitas ideias se difundiram e viraram verdades que predominam até hoje. Na atualidade é algo velado, mas a marginalização permanece, assim como o desprezo e a luta pela igualdade.
"Vênus Negra" é um filme chocante que mostra até onde vai a ignorância do ser humano em explorar outro ser humano que foge dos padrões ditos perfeitos.

Um comentário:

  1. Em primeiro lugar adorei a critica.

    Saartjie foi forçada a toda aquela situação, ela não tinha opções e ate quando foi levada a julgamento foi coagida a mentir, acreditava que se falasse a verdade seria presa e iria para uma situação ainda pior. Ela não era tratada como uma pessoa mas como um objeto, algo para se possuir e gerar lucro, era ludibriada com pequenos bens materiais com os quais ela própria se enganava que estava em uma situação se igualdade perante o seu senhor.
    Ela era uma mulher que tinha consciência de sua situação mas mesmo assim não conseguiu muda-la, ela vivia aquilo com a esperança de um dia poder se casar, ter sua fazenda e ser mãe novamente. A atriz mostra tudo que Saartjie passa através de seus olhos expressivos. Quando as lagrimas se formam timidamente em seus olhos nas situações de humilhação ou quando ela fala do filho que morreu.
    Venus noire é um retrato do racismo e da maldade humana.

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