quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Paraíso Perdido

"Esqueçam a vida lá fora e sejam quem são. Sejam felizes aqui no Paraíso Perdido, o lugar para aqueles que sabem amar." 

"Paraíso Perdido" (2018) dirigido por Monique Gardenberg (Ó Paí, Ó - 2008) é um filme nacional que esbanja afeto e esperança, a família retratada é cativante, a atmosfera melancólica envolve juntamente com a trilha sonora brega que em sua maioria traz saudosas canções. O sobrecarregamento de personagens e o fato de não explorá-los acaba deixando a história sem profundidade, a trama os entrelaça de forma confusa e possui contornos de fábula, mas todos são tão apaixonantes que não tem como não sermos fisgados pela personalidade de cada um e também pelo ambiente descontraído da boate, a estreia de Jaloo e a presença de Erasmo Carlos abrilhantam a obra, mas todo o elenco é incrível, Júlio Andrade, Lee Taylor, Seu Jorge, Hermila Guedes, Malu Galli e Humberto Carrão.
Paraíso Perdido é um clube noturno gerenciado por José (Erasmo Carlos) e movimentado por apresentações musicais de seus herdeiros. O policial Odair (Lee Taylor) se aproxima da família ao ser contratado para fazer a segurança do jovem talento Ímã (Jaloo), neto de José e alvo frequente de homofóbicos, e aos poucos o laço entre o agente e o clã de artistas românticos vai se revelando mais e mais forte.
Odair é contratado por José para cuidar do neto, o jovem talentoso Imã depois que este sofre um ataque homofóbico, o policial se encanta pelo local e pelas pessoas tão amorosas e talentosas que ali habitam, Angelo, tio de Imã, é um eterno apaixonado e vive a relembrar de um antigo amor, sua filha Celeste está grávida e está confusa sobre sua relação com o namorado, Teylor, vivido por Seu Jorge é o único que não é da família, na trama também tem Pedro, vivido por Humberto Carrão, que se apaixona por Imã e não entende muito bem de início esse sentimento, a filha de José, Eva, vivida por Hermila Guedes, está presa há vinte anos, e a mãe de Odair, vivida por Malu Galli, que, infelizmente, sofre pela perda da audição e por não poder fazer o que mais ama, cantar, ela possui um passado com essa família e Odair aos poucos vai juntando as pistas e o entrelaçamento das histórias vai acontecendo aos trancos, Odair fica quieto e só se manifesta quando descobre algo pesado envolvendo Eva e seu pai.
É um filme regado a sentimentos e isso se deve as canções e as belíssimas interpretações destas, Jaloo especialmente encanta em cada apresentação, Júlio Andrade toda vez que surge rouba a cena e é uma pena que sua trama não avançou, o amor que ele cultiva e sua personalidade é das melhores coisas do filme. A aura agridoce predomina, por mais que essas pessoas sofram pelos desencontros e traumas, a felicidade sempre está às voltas, a esperança e o afeto, a certeza de que um tem o outro para se apoiar independente de qualquer coisa. É uma perfeita quebra da ideia tão falada de "família tradicional", é uma amostra de que laços são formados por sentimentos e não rótulos.

"As pessoas não te odeiam pelo que você é, mas pelo que não conseguem ser."

"Paraíso Perdido" é um filme agradável, sentimental e aconchegante, a família unida pela arte e o amor nos traz sentimentos bons e fazem nossos olhos brilharem diante das belas apresentações musicais, onde romantismo e sofrimento imperam, um encanto relembrar as canções românticas populares, como "Não Creio em Mais Nada", de Paulo Sérgio, "Escalada", de Augusto Cesar, "Minhas Coisas", de Odair José e também clássicos de Raul Seixas, Reginaldo Rossi, Belchior, Angela Maria e Roberto Carlos. Há espaço também para as novas, como "Amor Marginal" de Jhonny Hooker, que inclusive é uma das apresentações mais intensas de Jaloo. É um filme brasileiro acolhedor, amável e nostálgico!

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Sam Was Here/Nemesis (A Deusa da Vingança)

"Sam Was Here" (2016) dirigido por Christophe Deroo é daqueles filmes que dão dor de cabeça ao tentar juntar as pistas para criar teorias e possíveis explicações, sua atmosfera enigmática e situações estranhas envolvem e mergulhamos profundo para tentar compreender pelo menos um pouco do que está acontecendo. O título em francês e em português sugerem uma explicação, ao contrário do americano que segue a linha do mistério, é praticamente impossível decifrar logo de cara e talvez nem tenha que ser decifrado, o diretor mesmo disse que o intuito foi conceber um longa atmosférico.
Sam (Rusty Joiner), um vendedor ambulante preso em uma cidade deserta, passa a questionar sua sanidade quando é ameaçado por moradores que o confundem com um assassino. 
O filme tem alguns elementos que dão a entender facilmente que se passa fora da realidade, quando Sam chega na cidade desértica supostamente trabalhando como vendedor, percebe-se um ar fora do comum, a trilha sonora cósmica ajuda a criar maravilhosamente essa vibração, Sam bate na porta de possíveis clientes, mas parece que os habitantes estão se escondendo, outro ponto é uma luz vermelha no céu vista por Sam, tudo soa estranho a ele e então decide ligar para o chefe e ir embora dali, só que cai na caixa postal, assim como todas as ligações que realiza, como para a esposa. Ele vaga pela cidade deserta, vai parar num motel onde tem uma porta fechada com correntes, o clima de pesadelo vai tomando conta cada vez mais do cenário, o rádio sempre está sintonizado no programa local, onde pessoas ligam e reclamam, o radialista, Eddy, pede para que a população ligue e faça as reclamações ou que se souberem de algo relacionado ao pedófilo/assassino que denunciem. Mas onde estão essas pessoas que participam desse programa? Até que Sam recebe em seu pager uma mensagem anônima o acusando de "porco pedófilo", Sam fica confuso, mas não se preocupa, segue passando pelos lugares à procura das pessoas, ele vai deixando bilhetes com a frase: "Sam esteve aqui". Depois de algum tempo Sam visualiza uma viatura e quando vai de encontro leva um tiro, começa uma perseguição e logo depois mais algumas pessoas entram nessa perseguição contra Sam, ele se vê obrigado a fugir e lutar por sua vida.  

Sam encontra cartas escritas por Eddy destinadas à população dizendo que ele é o assassino/pedófilo e que é preciso encurralá-lo e matá-lo, desesperado não entende a situação da qual se encontra e fica mais perturbado por não conseguir falar com a esposa, essa caçada é muito enigmática, nada é respondido e ficamos procurando pistas para entender se Sam é inocente ou não. Realmente a atmosfera construída é o grande destaque e é preciso acompanhá-la, graças a ela podemos formular algumas teorias, como se Sam está no purgatório refazendo seus passos e sendo julgado, ou mesmo no inferno, onde acertará as contas e o equilíbrio cósmico entre o bem e o mal será enfim restaurado. 

"Sam Was Here" foge das fórmulas convencionais e deixa muitas pontas soltas para que o espectador reflita sobre o que assistiu, as perguntas deixadas provocam sensações perturbadoras, instiga a querer encontrar respostas, mas tudo o que criamos são apenas hipóteses, a tensão e o medo diante disso causa desconforto e é exatamente por esse motivo que vale a pena ser visto. 
Disponível no catálogo da Netflix!

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

15 Filmes de Faroeste Modernos (15 Modern Western Movies)

O clássico gênero faroeste tem recebido novas roupagens e volta e meia aparece um diretor que se arrisca neste território, muitos se concentram na mesma fórmula, porém outros trazem outras perspectivas e até deixam de lado o chão poeirento e cheio de feno. É com certeza um gênero que se configura entre os mais amados do cinema. Segue a lista com 15 filmes de Faroeste Modernos que valem a pena conferir!
*Os números são só uma questão de ordem e não de preferência

15- "Damsel" (2018) EUA 
Samuel Alabaster (Robert Pattinson), um rico pioneiro, aventura-se pela remota fronteira dos EUA para se casar com o amor de sua vida, Penelope (Mia Wasikowska). Enquanto Samuel atravessa o Velho Oeste com um bêbado chamado Parson Henry (David Zellner) e um minicavalo chamado Butterscotch, sua jornada vai se tornando traiçoeira, apagando as linhas divisórias entre herói, vilão e donzela.

14- "A Vingança de Lefty Brown" (The Ballad of Lefty Brown - 2017) EUA
Lefty Brown (Bill Pullman) é um ajudante de 63 anos que toda a sua vida ficou ao lado da lenda do faroeste Eddie Johnson (Peter Fonda). Johnson foi apontado como senador de Montana e, apesar das objeções da esposa Laura, planeja deixar Lefty em cargo do rancho. Quando um ladrão mata Johnson, Lefty é confrontado pela sombra do parceiro e das feias realidades da justiça na fronteira.

13- "O Vale Sombrio" (Das Finstere Tal - 2014) Áustria


Um estranho homem chega a uma vila de uma montanha da Europa e é acolhido pelo povo até a chegada do rigoroso inverno. Ele se apresenta às pessoas como um fotógrafo norte-americano, mas ele não chegou até lá por acaso e sabe muito bem o que quer. 

12- "Hostis" (Hostiles - 2017) EUA


Em 1892, duas famílias se unem ao chefe de um exército (Christian Bale) para ultrapassar as barreiras de uma guerra e voltar para suas tribos. Esta tarefa não será fácil, visto que os membros da família tem, entre si, conflitos que devem ser superados para terem sucesso em sua missão.

11- "Uma Mulher Exemplar" (Woman Walks Ahead - 2017) EUA
Final do século XIX. Caroline Weldon (Jessica Chastain), artista e ativista do Brooklyn, vai até a reserva Standing Rock para ajudar Touro Sentado, chefe dos sioux, a lutar pela preservação dos indígenas no local. Ela se muda para a aldeia com o filho adolescente, assume o cargo de secretária de Touro - que não fala inglês - e passa a enviar cartas para o governo dos EUA pedindo atenção ao caso.

10- "A Hora e a Vez de Augusto Matraga" (2015) Brasil
Baseado no conto homônimo do livro "Sagarana", do escritor Guimarães Rosa, o filme narra a história de Augusto Matraga (João Miguel), fazendeiro mineiro valente e mulherengo, à beira da falência, que ao buscar vingança por sua mulher tê-lo trocado por Ouvídio Moura (Werner Schunemann), quase morre após cair em uma emboscada armada pelos capangas do Major Consilva (Chico Anysio). "Renascido", depois de ter sido cuidado por um casal, Matraga dedica o resto da sua vida à sua fé e ao trabalho, esperando "sua hora e sua vez" chegar, até fazer amizade com o rei do sertão, Joãozinho Bem-Bem (José Wilker), e seu bando de jagunços. Saiba+

09- "A Qualquer Custo" (Hell or High Water - 2016) EUA
Dois irmãos, um ex-presidiário e um pai divorciado com dois filhos, perderam a fazenda da família em West Texas e decidem assaltar um banco como uma chance de se restabelecerem financeiramente. Só que no caminho, a dupla se cruza com um delegado, que tudo fará para capturá-los.

08- "Doce País" (Sweet Country - 2017) Austrália
Sam, um aborígene de meia-idade, é designado para ajudar na mudança de um veterano de guerra, que acaba de se mudar para o posto militar onde ele vive, no norte da Austrália. O problema é que a relação dos dois logo se torna complicada e, como forma de se defender, Sam acaba matando o militar, sendo obrigado a deixar seu lar ao lado da mulher.

07- "Terra Selvagem" (Wind River - 2017) EUA
Cory (Jeremy Renner), caçador de coiotes e predadores traumatizado pela morte da filha adolescente, encontra o corpo congelado de uma menina em meio ao nada e decide iniciar uma investigação sobre o crime. Ao lado dele está uma agente novata do FBI (Elizabeth Olsen) que desconhece a região. Um filme tenso e pesado, somos inseridos no oeste norte-americano, especificamente no estado de Wyoming, um local que possui suas próprias regras e características extremas. Saiba+

06- "A Salvação" (The Salvation - 2014) Dinamarca
Na América de 1870, um pacífico colono americano mata o culpado por assassinar sua família, o que desperta a fúria do líder de uma famosa gangue local. Os covardes moradores da cidade traem sua confiança e delatam sua localização e plano para o bandido. Sozinho, ele é forçado a caçar a gangue com as próprias mãos. Tem todos os requisitos que um filme de faroeste necessita, e ainda se destaca pelo primor de sua estética e pelo roteiro simples, que não deixa de ser perspicaz. Saiba+

05- "A Balada de Buster Scruggs" (The Ballad Of Buster Scruggs - 2018) EUA
Uma antologia de faroeste em seis partes, uma série de histórias sobre o Velho Oeste americano contadas na incomparável voz dos cineastas Joel e Ethan Coen. Cada capítulo conta uma história distinta e independente. Saiba+

04- "Os Irmãos Sister" (The Sisters Brothers - 2018) EUA
Eli e Charlie são dois pistoleiros que recebem uma missão complicada: capturar e eliminar Hermann Kermit Warm, um explorador de minas de ouro. Os assassinos perseguem o explorador através do deserto do Oregon, no entanto, Eli começa a ter uma crise de consciência sobre a carreira que leva. Para se salvar, Hermann pode se aproveitar dessa fraqueza momentânea e oferecer um acordo melhor para os irmãos. Saiba+

03- "Oeste Sem Lei (Slow West - 2015) UK/Nova Zelândia
No século XIX o jovem Jay Cavendish (Kodi Smit-McPhee) cruza os Estados Unidos em busca de sua amada, que fugiu para terras distantes após ser acusada de cometer um crime. Nesta imprevisível jornada ele conta com a companhia de Silas Selleck (Michael Fassbender), um misterioso caubói. Um filme de faroeste atípico, começando pela sua beleza, a locação verdejante é extremamente linda, apesar da história se passar na América, tudo foi gravado na Nova Zelândia. A narrativa segue de forma lenta e a ação vem aos poucos, além do tom poético que permeia toda a trama. Saiba+

02- "Aferim!" (2015) Romênia
Na Romênia do século 19, um policial é contratado para encontrar um cigano fugitivo. Transformando a busca em aventura, o filme retrata a escravidão cigana que existiu no país por seis séculos.  Um filme histórico que retrata com um humor ácido e particular a origem do racismo contra os ciganos. Somos transportados para o início do século XIX, na região sul da Romênia, Valáquia, 42 anos antes da independência. Saiba+

01- "O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford" (The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford - 2007) EUA
Carismático e imprevisível, Jesse James (Brad Pitt) foi o mais notório fora-da-lei da América. Ele planejava mais um de seus grandes assaltos quando soube que seus inimigos, ávidos por glória e fortuna, haviam se lançado numa corrida em sua captura. James declara guerra a todos eles. No entanto não poderia imaginar que a maior ameaça à sua vida viria de um dos homens em que mais confiava.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Benzinho

"Benzinho" (2018) dirigido por Gustavo Pizzi (Riscado - 2010) é um ótimo filme que retrata de maneira emocionante e verdadeira os dramas de uma família de classe média brasileira, desde os obstáculos econômicos, as brigas, o cansaço, mas também os laços, o companheirismo e o amor, principalmente, o da mãe, vivido brilhantemente por Karine Teles, da qual possui uma força imensa e se entrega com muito naturalismo. O fato de ser um filme feito praticamente em família, já que Gustavo Pizzi é ex-marido de Karine e seus filhos gêmeos estarem em cena, além do sobrinho de Karine é algo que cria realmente uma atmosfera familiar.
O primogênito de uma família de classe média é convidado para jogar handebol na Alemanha e lança sua mãe (Karine Teles) em uma espiral de sentimentos pois, além de ajudar a problemática irmã (Adriana Esteves), lidar com as instabilidades do marido e se desdobrar para dar atenção ao seus outros filhos, ela terá de enfrentar sua partida antes de estar preparada para tal.
Fernando (Konstantinos Sarris), o filho mais velho de Irene é convidado para estudar e jogar handebol na Alemanha, a notícia pega de surpresa a família, Klaus (Otávio Müller), o pai, fica muito contente e é ele que corre atrás da papelada, enquanto Irene mergulha nos problemas cotidianos e financeiros para ignorar esse fato. Seus sentimentos em relação a partida do filho são conflituosos e o seu psicológico fica abalado, o medo de que seu filho nunca mais retorne para casa a impede que sinta alegria da conquista dele, Fernando tem pouco tempo para arrumar as coisas e partir, só que Irene não quer pensar sobre e sempre que a conversa vem à tona se assusta com a data da partida e diz que não a avisaram que seria tão cedo. Irene é uma mãezona, se dedica de corpo e alma aos seus quatro filhos, ela sabe que mais cedo ou mais tarde eles irão alçar voo, mas quando acontece mesmo algo a trava para não refletir e não sofrer. Muito zelosa, ela também abre as portas para sua irmã, que sofre com a inconstância de comportamento do seu marido, todos a recebem de braços abertos e ela também acaba sendo um suporte para Irene, a relação de amizade e cumplicidade das duas é muito bonita, essa grande família possui um vínculo forte de afeto. 

Acompanhamos toda a trajetória emocional desta mulher, seus conflitos internos e externos, sua gana de vida, sempre se virando para conseguir um extra, sua felicidade em se formar no ensino médio e conseguir driblar os problemas cotidianos e cuidar dos filhos. 
É um filme que é muito próximo da realidade, o jeito da família, da convivência e até os problemas corriqueiros, como o adiamento para consertar uma torneira ou uma porta emperrada, dos sonhos em poder ter uma casa melhor, de encontrar meios de ganhar dinheiro por conta própria, seja vendendo marmita, jogos de lençol, etc. O marido de Irene é muito sonhador e vive a planejar um futuro que para ela parece bem distante, ele deseja vender uma casa que eles tem na praia para comprar um ponto e fazer um restaurante que acredita que vai ser sucesso, mas a realidade acaba sempre batendo a sua porta e adiando todos os seus propósitos.

"Benzinho" é um filme sensível e emocional ao colocar o medo que uma mãe sente em ver seu filho ir embora de casa, olhá-lo crescido e admitir que chegou o momento da separação, ela só realmente se dá conta de tudo quando Fernando entra no ônibus, em meio a tantos sentimentos ela chora e sorri e percebe no desfile cívico em que seu filho do meio, Rodrigo, está tocando, que ele será o próximo. 
É um filme que faz um retrato sincero e bonito de uma família bem brasileira, repleta de problemas, mas com muito afeto um pelo outro.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Dogman

"Dogman" (2018) dirigido por Matteo Garrone (Reality - 2012, O Conto dos Contos - 2015) é uma história que retrata que não se pode ter tudo, o protagonista tenta agradar a todos, mas isso acarretará em consequências cada vez mais difíceis, o fazendo ruir e perder toda a sua dignidade. Todo o tempo nos perguntamos o porquê dele sempre ceder, as respostas surgem com o desenrolar ao entendermos sua personalidade canina, onde deseja tanto estar entre os cidadãos de bem, como também estar perto daqueles não tão bem vistos como forma de sobreviver e não se tornar vítima, mas essa maneira dele se comportar não dá certo e faz com que nem um lado nem o outro lhe dê atenção.
Marcello (Marcello Fonte), simpático funcionário do Pet Shop Dogman, na periferia de Roma, vive uma relação de amizade e ao mesmo tempo de humilhação com Simone (Edoardo Pesce), um ex-boxeador que aterroriza a todos no bairro em que vivem. Depois de uma humilhação que Simone pratica contra ele, Marcello comete um crime bárbaro.
Inspirado em um caso real que aconteceu nos anos 80 na Itália, Garrone nos presenteia com uma história naturalista sobre a violência, por um lado está Simone, um brutamontes que causa medo e revolta entre os habitantes do bairro, sua presença sempre é sinal de confusão e Marcello é uma espécie de brinquedo para ele, já que é dócil e leal, há um misto de adoração e medo em seu relacionamento com Simone, ele não consegue dizer não e sempre está à disposição seja para arranjar cocaína e se meter em roubos, claro que na maior parte das vezes é coagido simplesmente pela figura de Simone, mas Marcello também usa de sua figura franzina para ganhar a atenção dos demais e de algum modo ser protegido por Simone, que no caso não está interessado nisso, não tem nenhuma troca por parte dele e, por isso, Marcello acaba sendo sempre humilhado, o que dá a impressão que gosta de sofrer, é puramente masoquista. Ele dá e faz tudo o que tem e pode para o suposto amigo achando que ele irá dar algo em troca quando precisar, mesmo sabendo inconscientemente que não terá retorno, mas mesmo assim se submete. Por incrível que pareça muitas pessoas fazem isso e o filme exemplifica de uma maneira cru e revoltante. O título é explícito, Marcello realmente tem a personalidade de um cão amistoso, leal e que se dobra ao seu dono, o outro, Simone, um cão raivoso que sai mordendo a torto e a direito, talvez pelo modo como foi criado e as circunstâncias do ambiente o fizeram se proteger dessa forma, mas o que os dois querem se resume em uma única e igual coisa: atenção.
É incômodo visualizar a submissão de Marcello, ele está sempre no meio dos homens no bar escutando o quanto Simone enche o saco arrumando confusão e não pagando suas dívidas, até discutem um meio para sumir com ele, Marcello escuta calado a ideia e segue sua vida, que se resume a lavar os cachorros em seu surrado pet shop e agradar a filha com mergulhos, sua frustração em não poder levá-la em viagens melhores o faz tentar ganhar dinheiro vendendo cocaína, o que o aproxima também da parte não tão bem vista do bairro. Simone vive pegando a cocaína e não o paga, além de colocá-lo em situações perigosas de roubo, só que Marcello parece não se importar na maior parte do tempo, pois para ele estar inserido é um meio de não se tornar vítima, só que as coisas mudam de figura quando Simone articula um plano de roubo e Marcello termina preso.

A decisão que Marcello toma é estranha, será que ele tem tanto medo de Simone ao ponto de se sujeitar à prisão, ou quer mostrar que ele também é forte em não dar o braço a torcer e colocar o amigo na cadeia? Sua lealdade é tão forte assim para que estrague a própria vida? O fato é que depois disso o bairro vira às costas pra ele, pois foi considerado traidor e Simone é indiferente, Marcello quer metade do dinheiro do roubo, mas vendo que o amigo não tem intenção nenhuma em lhe dar dinheiro ou algum tipo de agradecimento por ficar na prisão no lugar dele, segue-se uma espiral de violência em que Marcello se enfurece ao ver sua reputação ir pro ralo com os demais e com a filha, sua última escolha é mostrar para todos ali que é capaz de consertar as coisas, mas termina como um cachorro que late, late e late pedindo inutilmente atenção.

"Dogman" traz uma interpretação impressionante de Marcello Fonte, sua figura franzina, suas atitudes e seus olhares nos conduzem desde o primeiro momento, sua voz terna para falar com os cachorros, sua submissão aos demais, e então a fase final em que sua visceralidade vem à tona, um poderoso retrato de um lugar em que a lei que impera é a do mais forte, o local decadente, o clima nublado e a pobreza só acentua para a atmosfera fria e pesada. É um filme marcante que demonstra o ser humano tentando sobreviver em um ambiente pobre em todos os sentidos. 

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

O Tratamento (De Behandeling)

"O Tratamento" (2014) dirigido por Hans Herbots (Bo - 2010) é um filme apreensivo que aborda a pedofilia de uma maneira corajosa e cru, o drama muito bem mesclado ao suspense garante a atenção do espectador e somos absorvidos por uma atmosfera tensa ao testar até onde a sanidade do protagonista aguenta. 
O inspetor Nick Cafmeyer (Geert Van Rampelberg) parece ter tudo, inteligência e uma carreira de sucesso. Mas uma nuvem negra paira sobre sua vida: desde criança, ele tem sido atormentado pelo desaparecimento de seu irmão mais novo Bjorn, nunca resolvido. Ivan Plettinckx, criminoso sexual conhecido, foi interrogado, mas rapidamente liberado. Plettinckx mora por perto e tem um prazer diabólico em assediar Nick. Então, quando um caso perturbador vem à tona envolvendo o desaparecimento de uma criança de nove anos, Nick lidera uma busca massiva que se transforma em uma perseguição implacável.
A pedofilia retratada é nojenta, literalmente, realmente causa repulsa, o filme faz questão de expor o lado podre do ser humano e seus desvios, as cenas com as crianças não são poupadas, é chocante e cruel. 
No início acompanhamos a história do policial Nick e seu trauma de infância, enquanto brincava com seu irmão, o viu sendo levado embora por Plettinckx, ele tentou alcançá-los, mas em vão. Esse cara vive a atormentar Nick, tacando pedras em sua janela, aparecendo em seu quintal e por aí vai, nada aconteceu com ele, talvez, por ser considerado doente mental, mas a questão do seu irmão nunca foi resolvida, nunca foi encontrado. O fato é que essas lembranças se aguçam depois que entra num caso perturbador de um psicopata/pedófilo, que sorrateiramente entra nas casas, tortura os pais da criança e faz coisas horríveis e nojentas. O menino desse caso foi encontrado em cima de uma árvore com vários sinais de abuso, inclusive uma mordida nas costas. Nick e a equipe vai tentando juntar o quebra-cabeça com as pistas que encontra e vai mergulhando em algo totalmente bizarro e sombrio. A aflição vai tomando conta à medida que a história se desenrola mostrando com detalhes o como esse psicopata age, além de cruzar com a história de Nick e seu trauma de infância, ele cada vez mais acredita que esse caso tem a ver com o de Plettinckx, pois a pedofilia é uma rede e, portanto, liga-os. 

É um ótimo exemplar de suspense, vai por caminhos não convencionais e deixa um gosto amargo, certamente pesado pela abordagem que faz da pedofilia e a maldade humana. Ele tem muito em comum com o excelente "Os Suspeitos" (2013), o clima e o desenrolar, porém mais incômodo, principalmente, pelo seu desfecho.
O personagem é bastante nervoso, age muitas vezes por impulso, se desestabiliza e tem uma ansiedade para encontrar soluções e também para se vingar, essa angústia misturada à eletricidade do desespero dele difere com o ritmo lento da narrativa, o que é um grande diferencial, além de não fornecer as respostas do jeito esperado, como em seu final dilacerante.

"O Tratamento" cumpre o papel de filme de suspense, mas sem deixar nunca o drama de lado e mostrar com realismo a monstruosidade de pessoas que sentem prazer em cometer atrocidades. O mistério é bem desenvolvido e a aflição se faz presente a cada passo do protagonista. 

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Ward nº6 (Palata N°6)

"Ward nº 6" (2009) dirigido por Aleksandr Gornovsky e Karen Shakhnazarov (Tigre Branco -2012), baseado em um conto de Chekhov, "Enfermaria nº6", conta a história de um psiquiatra que se torna paciente do asilo que antes comandava. Adaptado para a Rússia dos dias atuais, o filme é uma mistura de ansiedade e mistério, mostrando como é fácil nos tornarmos o que mais tememos. A adaptação moderna de um conto de Chekhov para a Rússia contemporânea em que um médico psiquiatra se torna paciente é sem dúvidas interessante e angustiante, as conversas entre Gromov e Ragin são regadas a ansiedade e seus pontos de vista levantam questões importantes. O começo do filme em que conta-se a história do local é algo maravilhoso, assim como a união da ficção e realidade na utilização de pacientes reais. 
É um filme que serve para a reflexão sobre um tema atemporal, a corrupção institucional e o como os indivíduos categorizados loucos são marginalizados e sofrem nas mãos daqueles que obtêm algum poder, a crise existencial pulsa e diálogos filosóficos coroam a obra. Filmado em um hospital psiquiátrico em funcionamento, o local, um antigo mosteiro, mistura ficção e realidade, onde instaura-se de forma documental uma investigação acerca do médico que se tornou paciente. Além da bela e terrível apresentação sobre o lugar, alguns pacientes são entrevistados e respondem perguntas sobre fé e sonhos, em seguinte acompanhamos um jovem médico, Khobotov (Evgeniy Stychkin), que assumiu o lugar de Ragin (Vladimir Ilin), aos poucos somos introduzidos à história e as entrevistas que tentam extrair de todos no local, pacientes, funcionários e médicos, o que teria levado o homem àquele estado? Claro, tudo fica mais interessante quando Ragin estabelece vínculo com Gromov (Aleksey Vertkov), um homem inteligente, mas que sofre da síndrome de perseguição, quando Ragin o descobre começa a trocar ideias o tempo todo e isso leva os outros médicos a perguntar sobre sua sanidade.
O fato é que para Ragin ninguém é interessante, não consegue estabelecer uma conversa a não ser com seu amigo Mikhail, só que com Gromov as discussões inspiradas levam Ragin ao abismo, ele é um homem sossegado sem grandes aflições, nunca experimentou o sofrimento e por isso o despreza, seu pessimismo é tanto que nada do que venha a fazer tem valor, já que no final a única coisa que o espera é a morte, ele diz que a felicidade está dentro e independe do ambiente, mas fecha os olhos para o mundo dos outros, suas ideias começam a chacoalhar à medida que Gromov o desperta e numa cena brilhante pergunta ao médico que razões ele tem para pregar sobre o significado da vida, já que ignora o sofrimento e nunca viveu de fato. A partir daí tudo que acreditava desmorona e nada é capaz de impedir sua derrocada, enquanto isso os médicos conspiram por visualizar Ragin cada vez mais deprimido e bêbado.

Gromov propõe em seus diálogos pontos de vista que até então o médico não havia pensado, já que estava mergulhado em suas próprias ideias niilistas e apenas sentado em sua cadeira sem viver de fato a vida. Quando se passa pelo sofrimento e a ação se faz necessária algo muda e as percepções da vida se tornam diferentes. Depois dessa conversa Ragin não foi mais o mesmo e se entregou à bebida o levando a um estado apoplético. 

A atmosfera de angústia, desespero e ansiedade predomina a maior parte do tempo, discorre com maestria sobre o como os transtornos mentais surgem em sua maioria a partir da hipersensibilidade das pessoas em razão de sofrimentos, rejeições, traumas, etc. É um exemplar importante para afastar o preconceito contra os doentes mentais e ter mais compaixão e, principalmente, retratar essas instituições que os aprisionam e os sedam o tempo todo, algo extremamente desumano que só faz eliminar a personalidade do doente.
"Ward nº6" traz grandes questionamentos e faz uma ótima adaptação do conto para a Rússia contemporânea, mas que de algum modo se faz universal, até porque as dores e os sofrimentos humanos são semelhantes.

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Feliz como Lázaro (Lazzaro Felice)

"Lazzaro Felice" (2018) dirigido por Alice Rohrwacher (As Maravilhas - 2014) é uma espécie de fábula inspirada como o título sugere na história bíblica de Lázaro, porém as camadas que o filme propõe são amplas e deixa em cada espectador um sentimento, a linguagem é simples, mas há metáforas e uma enorme carga reflexiva, com certeza é uma obra para revisitar e tentar compreender e absorver o máximo possível das ideias expostas. 
Nesta leitura livre da história bíblica, Lázaro (Adriano Tardiolo) é um garoto pobre e pouco inteligente, mas extremamente bondoso. Ele é explorado pelos familiares, fazendo trabalhos forçados diariamente, além de colaborar com a marquesa, proprietária das terras onde vivem. No entanto, após uma tragédia, Lázaro retorna à vida no século XXI. Ele não compreende mais a lógica deste mundo, mas pretende reencontrar a sua família e viver como antigamente.
Nos deparamos com uma comunidade de camponeses, que mais adiante percebemos serem explorados por uma marquesa, dona das terras e conhecida como "a senhora do tabaco", cuja fortuna advém desse trabalho escravo, dentro dessa engrenagem de exploração, Lázaro, um garoto ingênuo e prestativo, bondoso por essência jamais se enraivece ao ser sempre chamado pelos seus companheiros para realizar o trabalho duro, ele parece olhar o mundo sob uma perspectiva da pureza, a marquesa em determinada parte diz: "Eu os exploro e eles exploram aquele pobre homem. É uma reação em cadeia e não pode ser parada". Quando questionada pelo próprio filho se não tem medo que descubram a verdade, já que vivem sob um véu de ignorância, ela diz: "Humanos são como animais, liberte-os e só aí eles se darão conta da própria condição de escravos, condenando-os ao próprio sofrimento. Agora eles sofrem, mas não sabem disso". Os camponeses não sabem nada, o isolamento geográfico, o pensamento restrito, o fato de conhecerem somente aquele mundo e que não há outro meio a não ser se submeter à marquesa o fazem continuar nesse ciclo, enriquecendo-a e mantendo-se na extrema pobreza. Lázaro acaba por se aproximar do filho da marquesa, o rebelde Tancredi, que abomina a maldade da mãe, só que nada faz, na verdade utiliza a inocência de Lázaro também a favor de sua revolta, forja o próprio sequestro, o faz acreditar que é seu meio-irmão e toma para si o refúgio de Lázaro nas montanhas. Essa relação com Tancredi desperta em Lázaro coisas que não havia sentido antes, uma conexão em que se doa ainda mais, ele faz tudo pelo amigo e mesmo quando adoece se lembra que Tancredi está sozinho nas montanhas e vai atrás do amigo, seu medo é que Tancredi pense que ele o abandonou.

Nesse trajeto Lázaro sofre uma queda e morre, mas ele revive décadas depois por meio de uma dádiva e quando vai procurar pelas pessoas não há mais nada no local, tudo está abandonado e ladrões estão saqueando a grande casa, ele segue a pé o caminho até a cidade apontado pelos ladrões e, por ocasião, reencontra alguns rostos conhecidos, dos quais momentaneamente se chocam por reencontrá-lo e por permanecer com a mesma aparência, seria ele um santo ou um fantasma? Com o desenrolar percebe-se que pouco importa e Lázaro neste século também não tem chance, a bondade simples e pura não existe nesse mundo repleto de interesses. A exploração do outro é novamente exposta, só que com novas roupagens, as pessoas antes exploradas agora precisam encontrar maneiras de se sustentar e o que resta a eles é enganar e roubar. Lázaro reencontra Tancredi e reaviva o amor pelo amigo e sem entender e sem se contaminar pelo meio o tenta ajudar indo a um banco para pedir que devolva os bens dele, que claro foram tirados por conta da situação que a mãe o colocou, o escândalo da marquesa do tabaco que mantinha uma comunidade feito escravos.

"Lazzaro Felice" é um filme que trabalha com elementos do realismo fantástico que ora fascinam, ora entristecem, revela que na sociedade seja em qualquer época nunca a bondade irá resplandecer, alguém dotado desse nobre sentimento sempre é visto como um idiota ou doente mental, e que por nunca pensar mal de ninguém e querer sempre fazer o outro feliz é explorado das mais diferentes formas, a diretora Alice Rohrwacher disse: "A história é de uma menor santidade, sem milagres, poderes ou superpoderes, sem efeitos especiais. É a santidade de viver neste mundo sem pensar mal de ninguém e simplesmente acreditar em seres humanos". É um filme diferente que ecoa dentro de nós por algum tempo, são camadas preciosas para explorar e que deixa uma reflexão contundente sobre a humanidade e sua falta de ternura.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O Animal Cordial

"O Animal Cordial" (2017) dirigido pela estreante em longas-metragens Gabriela Amaral Almeida é o primeiro slasher feito por uma mulher no Brasil e, sem dúvidas, um exemplar potente para indicar sem medo àqueles que ainda acham que o cinema brasileiro carece de criatividade e ousadia. A atmosfera tensa coroada por brilhantes interpretações garantem um arrepio na espinha diante do quão fácil é o ser humano se tornar um animal selvagem.
São Paulo. Inácio (Murilo Benício) é o dono de um restaurante de classe média, por ele gerenciado com mão de ferro. Tal postura gera atritos com os funcionários, em especial com o cozinheiro Djair (Irandhir Santos). Quando o estabelecimento é assaltado por Magno (Humberto Carrão) e Nuno (Ariclenes Barroso), Inácio e a garçonete Sara (Luciana Paes) precisam encontrar meios para controlar a situação e lidar com os clientes que ainda estão na casa: o solitário Amadeu (Ernani Moraes) e o casal endinheirado Bruno (Jiddu Pinheiro) e Verônica (Camila Morgado). Entre a cruz e a espada, Inácio - o homem pacato, o chefe amistoso e cordial – precisa agir para defender seu restaurante e seus clientes dos assaltantes.
Percebe-se algo pulsante desde o início, a relação entre patrão e empregados, há algo querendo se libertar, principalmente de Inácio e da personagem Sara, que puxa o saco de Inácio e o olha com desejo, já Djair não aguenta mais as condições em que trabalha, sem hora pra ir embora, o patrão dizendo que as receitas são deles e também o preconceito. Inácio é um ser aparentemente tranquilo apesar de conduzir o restaurante com pulso firme, mas conforme a noite avança o percebemos estranho, a cena em que ele se olha no espelho é poderosa e aí parece despertar algo diferente. Enquanto os empregados estão doidos para ir pra casa, com exceção de Sara, há um cliente comendo um coelho e um casal tomando vinho e reclamando do ambiente. O tempo vai passando e eles continuam sentados, até que dois dos empregados saem com um saco de lixo pela frente irritando Inácio, logo Djair sai também da cozinha e senta no balcão, os ânimos estão exaltados até que tudo culmina num assalto, Inácio por impulso tenta desarmá-los e logo sugere amarrá-los, desesperados alguns pedem para chamar a polícia, só que o dono do restaurante se recusa, ele quer dar uma lição nos meliantes. Como nem todos cooperam com Inácio ele decide amarrá-los com a ajuda de Sara e daí pra frente observamos o como os personagens se comportam, mudando conforme o rumo dos eventos.

Djair é justo e lidera a cozinha com as receitas de sua família, por isso Inácio de certa forma é dependente dele, o funcionamento do restaurante se dá pela capacidade e talento de Djair, isso o irrita e até parece invejá-lo, mas ele também não gosta de sua forma de ser, os seus cabelos compridos o enoja profundamente, mas no cotidiano tudo é velado e as relações seguem cordialmente, até que a noite do assalto muda tudo e o que estava adormecido levanta-se e se mostra da pior maneira. Sara fantasia a oportunidade do seu chefe a enxergar e faz o que ele pede e se torna tão selvagem quanto, Inácio e Sara deixam de lado todas as regras sociais e morais e mergulham no desespero de suas infelicidades.
Murilo Benício neste filme mostrou uma faceta que até então, particularmente, não havia visto ainda, está perfeito na pele de Inácio, suas feições e olhares antes de acontecer o assalto o traduzem para nós, aliás todos estão espetaculares, Irandhir Santos e Luciana Paes também se destacam poderosamente.

"O Animal Cordial" não é somente um slasher ou um thriller, também carrega uma boa dose de crítica social, as relações entre patrão e empregados, a angústia gerada entre classes sociais, como a cena do casal rico no restaurante debochando de Sara, esta que se submete a Inácio sem ser vista, já Inácio dependente de Djair, o responsável pelo restaurante ir pra frente, e este mesmo com condições de trabalho ruins e todos os olhares reprovadores por conta de sua figura se mantém no emprego. Essa tensão entre eles é o que faz o desabrochar de cada um ser ainda mais perturbador e suas ações cada vez mais perversas, cujas cenas maravilhosas são regadas a muito sangue, erotismo e pitadas de ironia.
O medo, a infelicidade e o desespero quando instalados no ser humano o leva em momentos cruciais a realmente revelar um lado do qual se mascara no cotiano devido as regras sociais e morais, o obscuro vêm à tona e aí a violência domina por completo. Um surpreendente filme que nos brinda com um terror bem feito e ainda consegue dialogar sobre as aflições que atingem os brasileiros.

*Murilo Benício recebeu o prêmio de Melhor Ator no Festival do Rio, em 2017. No FantasPoa 2018, o filme foi premiado nas categorias Melhor Direção e Melhor Atriz, para Luciana Paes.