quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Lucky

"Sempre pensei que o que todos concordávamos era naquilo que a gente vê, mas isso é besteira, porque o que vejo não é necessariamente o que você vê."

"Lucky" (2017) marca a estreia na direção do ator John Carroll Lynch, um filme-testamento do ícone Harry Dean Stanton - que faleceu em setembro de 2017, extremamente sincero ao transmitir a sensação da finitude da vida, cru e sem floreios acompanhamos os lentos passos do protagonista que se mistura à realidade do ator, Stanton interpretou a si mesmo, um retrato doloroso, porém magnifico de um ser humano que ostenta seus 90 anos e que tem a consciência de todo seu percurso e sabe que a qualquer instante irá partir. Um adeus poético e genuíno.
Depois de fumar por muito mais tempo que todos os seus conterrâneos, o velho ateu Lucky (Harry Dean Stanton), de 90 anos, está no fim de seus dias, apenas esperando a morte. Vivendo em uma cidade no deserto, ele inicia sua última atividade antes de partir: se autoexplorar para enfim encontrar iluminação.
A narrativa é simples, mas propõe uma ótima reflexão sobre a solidão, a velhice e a morte, observamos a fragilidade do corpo, as manias, o tédio, as conversas com os amigos, os lugares por quais passa, ele caminha o dia todo e se mantém ativo, na hora que acorda faz seu ritual de exercícios, se arruma e sai, não há muito o que fazer e sempre para no bar para tomar sua Bloody Mary e jogar conversa fora, as pessoas param para escutar as outras, se entretêm com as histórias e se preocupam com Lucky. Um dia ele sofre uma queda e daí para frente começa a pensar mais no significado de estar vivo e inevitavelmente sentir medo da morte, a cena em que vai se consultar é realmente maravilhosa, o médico lhe diz que está com a saúde boa apesar de fumar e que não há mais o que fazer, exames não dirão nada e que se estivesse com alguma coisa o já teria matado, que estar pleno com 90 anos é de uma sorte que a grande maioria não têm, muitos adoecem, se acidentam e não chegam nessa fase da vida, não possuem a chance de olhar para trás, de notarem as mudanças físicas e psicológicas e estarem tão próximos da morte e ao mesmo tempo com tanta ansiedade para viver, Lucky depois disso encara as situações com outro olhar e repensa sua vida. Ele nunca casou, não teve filhos, passou por momentos críticos, vivenciou a guerra, em vários instantes é questionado sobre a solidão e ele rebate dizendo que há diferença entre estar sozinho e ser solitário. Há ternura no desenvolvimento do longa e Lucky não é uma pessoa fácil, é briguento e ranzinza, mas carrega em si a espontaneidade que nos tira sorrisos e lágrimas.

O personagem vai se redescobrindo e vamos juntos nesta jornada, seus olhares transmitem as sensações que sente, os diálogos são ótimos e refletem a compreensão que aos poucos chega, a participação de David Lynch é primordial nesta questão, além de estarem novamente trabalhando juntos, Howard, o personagem de Lynch também é só e lamenta o sumiço de seu jabuti, Presidente Roosevelt, ele é alvo de chacotas, mas o amigo o escuta com afinco, pois se comove pelo tempo de vida do animal em comparação a dele, Howard lamenta sua solidão, se desespera e deseja encontrar o jabuti, porém com o passar do tempo entende e aceita, as conversas são envoltas na surrealidade, mas trazem pensamentos interessantes acerca da morte. Outra aparição interessante é de Tom Skerrit, interpretando um veterano de guerra que conta uma história que testemunhou em solo japonês, a inusitada reação de uma garotinha diante da morte, com certeza um momento que fisga nosso protagonista, que desperta e o ilumina.
Há várias cenas emocionantes, como a que Harry canta "Volver, Volver" numa festa de aniversário de uma família latina, aliás o filme conta com uma bela trilha sonora, como "El Llanto De Mi Madre" de Lydia Mendoza e "I See a Darkness" de Johnny Cash, que conversam com toda a aura do filme. 

"Lucky" nos mostra que nada é permanente, Harry interpreta a si mesmo e desafia a morte a cada dia, sabe que ela está à espreita, é consciente disso e ao fim sorri, não tem como não se comover, ele olha diretamente para a câmera com olhos marejados e abre um sorriso, uma sensação de liberdade em aceitar o inevitável e saber o quão sortudo foi chegar até esse ponto. A velhice e tudo que a acompanha é retratada com honestidade e delicadeza, a lucidez de encarar o fim é magistral neste longa. Uma despedida tocante de Harry Dean Stanton e um começo brilhante de John Carroll Lynch.

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Under the Tree (Undir Trénu)

"A Sombra da Árvore" (2017) dirigido pelo islandês Hafsteinn Gunnar Sigurðsson (Paris do Norte - 2014) retrata situações embaraçosas e falhas de caráter, imperfeições desconcertantes que nos leva a refletir nas relações do dia a dia, no convívio com os familiares, vizinhos e colegas, quando pequenas coisas se tornam desavenças e por muito pouco explodem e se transformam em tragédias, os absurdos cotidianos estão espalhados por aí e o filme é sagaz ao expô-lo com muito humor negro.
Depois de ser expulso de casa e impedido de ver a filha, Atli (Steinþór Hróar Steinþórsson) volta a morar com seus pais, que estão envolvidos em uma disputa em torno de uma grande e bela árvore que faz sombra no deque do vizinho. Enquanto Atli luta pelo direito de ver sua filha, a rivalidade com os vizinhos se intensifica — propriedades são danificadas, animais de estimação desaparecem misteriosamente, câmeras de segurança são instaladas e há um boato de que o vizinho foi visto com uma motosserra.
O constrangimento faz parte de toda a trama, logo no início vemos Agnes (Lára Jóhanna Jónsdóttir), a esposa de Atli o flagrando vendo um filme pornô e do qual ele é o protagonista, posto pra fora de casa e impedido de ver a filha volta para a casa dos pais, que estão em conflito com os vizinhos por conta da árvore, no começo Baldvin (Sigurður Sigurjónsson), o pai de Atli promete podá-la, mas no decorrer vão acontecendo algumas coisas que faz com que mude de ideia, o comportamento da mãe de Atli, Inga (Edda Björgvinsdóttir), se torna insustentável, cada vez mais rancorosa transforma o convívio impossível, entre agressões verbais, pneus furados, anões de jardim em poses indiscretas e animais que somem, somos conduzidos por mal-entendidos e confusões sem sentido, onde cada um pensa ter a razão, até tentamos entender as partes, mas os seres humanos retratados são mesquinhos, egoístas e sem nenhuma espécie de empatia, a angústia, o sofrimento os tornaram insensíveis.
Inga nega a morte do filho e remói isso dentro de si, se culpa e culpa os outros, cultiva sentimentos ruins e desconta da forma mais perversa, Atli é mentiroso, prepotente e machista, não vê o lado de sua esposa e todas as tentativas de aproximação são abusivas, sem nem um sinal de arrependimento ou empatia. Agindo irracionalmente tenta ver sua filha e para piorar se instala numa cabana no jardim da casa dos pais para vigiar a árvore, pois o vizinho tirou uma motosserra do carro, é engraçado que eles nunca pensam que estão cometendo absurdos, desesperados continuam e persistem em suas teorias, até que foge do controle total e o que sobra não é nada agradável. 

A insensatez é retratada de forma provocativa e trágica, uma crítica ao quanto a natureza humana tende a ser mesquinha e ter como certo apenas o próprio ponto de vista, de que apenas o outro tem defeitos e age como idiota, quem se sujeita a tais atos, como os retratados no filme, discutir por sombra de árvore ou que o cachorro defeca em sua grama está fechado em uma bolha e é incapaz de olhar para si e admitir os seus erros, e outro ponto é que descontar mágoa, frustração e sofrimento nos outros, como Inga, só faz cultivá-los ainda mais e elimina a chance de reflexão. 

"A Sombra da Árvore" desconcerta por apresentar pessoas que por ignorância e estupidez não se comunicam e tiram suas próprias conclusões, dificultando soluções e convertendo trivialidades em possíveis tragédias; a intolerância, o egoísmo, a mesquinhez, a prepotência e a impaciência é extremamente bem delineada na história e por mais descabida e risível que aparenta ser não destoa da realidade cotidiana.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

15 Thrillers Eróticos (15 Erotic Thrillers)

O auge dos thrillers eróticos aconteceu nos anos 80/90, filmes como "Instinto Selvagem", "Invasão de Privacidade", "Proposta Indecente", "Assédio Sexual", "Nunca Fale com Estranhos", "Gemidos de Prazer", "Corpo em Evidência", "Segundas Intenções" e tantos outros fizeram enorme sucesso por conta da mescla suspense e erotismo, o fato é que hoje são poucos os filmes que utilizam essa receita, mas existem alguns muito bons, portanto, elaborei uma lista com obras recentes e também com as mais antigas que são nostálgicas e maravilhosas. A lista foi montada aleatoriamente.

15- "Relação Indecente" (Poison Ivy - 1992) EUA
Sylvie Cooper (Sara Gilbert) é uma estudante de escola particular. Seu pai é Darryl (Tom Skerritt), um importante produtor de TV. A menina acaba ficando amiga de Ivy (Drew Barrymore), uma orfã que estuda em sua escola graças a uma bolsa de estudos. As duas tornam-se rapidamente melhores amigas, mas a proximidade de Ivy com a família de Sylvie começa a tornar-se doentia - principalmente quando fica evidente que a menina pretende roubar a vida da amiga.

14- "O Quarto Azul" (La Chambre Bleue - 2014) França
Um homem e uma mulher amam-se em segredo, sozinhos num quarto. Eles desejam-se, querem-se um ao outro. No crepúsculo, partilham alguns pequenos nadas. Pelo menos é nisso que o homem acredita. Agora, sob investigação policial e judicial, Julien não consegue encontrar as palavras certas. O que aconteceu? De que é que ele é acusado?

13- "Paixão" (Passion - 2013) EUA/Alemanha/França


O escritório de uma proeminente corporação multinacional serve como ambientação para uma disputa de poder entre duas mulheres contemporâneas. Isabelle (Noomi Rapace) tem uma admiração sem limites por sua superior direta, Christine (Rachel McAdams), uma mulher bastante experiente nos jogos do poder. Christine gosta de manipular Isabelle, permitindo que ela cresça um passo de cada vez, levando-a a mergulhar fundo em um jogo de sedução e manipulação, de dominação e servidão.

12- "Swimming Pool - À Beira da Piscina" (Swimming Pool - 2003) França
Sarah Morton (Charlotte Rampling) é uma escritora inglesa cujos romances policiais conciliam sucesso de vendas e prestígio junto a crítica. A convite de seu editor, ela viaja para a casa de campo dele, na Provence francesa, onde supostamente vai encontrar a tranquilidade necessária para escrever seu mais novo livro. Mas a paz de Sarah é interrompida com a chegada de Julie (Ludivine Sagnier), a filha do editor, uma adolescente linda e cheia de vida por quem a escritora sentirá uma grande e estranha atração.

11- "Um Estranho no Lago" (L'Inconnu du Lac - 2013) França
Durante o verão, homens se encontram na beira de um lago escondido. Franck (Pierre Deladonchamps) se apaixona por Michel (Christophe Paou), um homem bonito, poderoso e mortalmente perigoso. Franck sabe com quem está se envolvendo, mas ignora o perigo para poder viver essa paixão.

10- "Desejo e Perigo" (Se, Jie - 2007) China/EUA/Taiwan
Wang Jiazhi (Wei Tang) é uma jovem chinesa que entra na faculdade durante o período de ocupação japonesa, na 2ª Guerra Mundial. Lá ela participa de um grupo de teatro patriótico, tornando-se rapidamente a artista principal. Entretanto os planos do grupo são mais ambiciosos. Eles decidem assassinar o Sr. Yee (Tony Leung Chiu Wai), um colaborador do lado japonês. Wang, então, se transforma em Mak, a fictícia esposa de um mercador. Sua função é se tornar amante do Sr. Yee, para facilitar a ação do grupo.

09- "Um Mergulho no Passado" (A Bigger Splash - 2015) França/Itália
A estrela do rock Marianne Lane (Tilda Swinton) passa férias em uma ilha italiana na companhia de seu parceiro (Matthias Schoenaerts) quando é surpreendida por Harry (Ralph Fiennes), um ex-caso que aporta no paraíso com a filha (Dakota Johnson) e desencadeia uma onda de nostalgia e perigosos jogos de sedução.

08- "Deusa do Amor" (Goddess of Love - 2015) Canadá/UK
Venus (Alexis Kendra) é uma artista plástica de dia e stripper a noite. Durante uma das suas atuações, conhece Brian e se apaixona. Atormentada por fantasias de traição, Venus vai revelar um lado seu desconhecido ao parceiro.

07- "Veludo Azul" (Blue Velvet - 1986) EUA
Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan), um rapaz simplório que acaba de voltar à cidade, envolve-se em uma perigosa investigação sobre os negócios de um traficante de drogas (Dennis Hopper) que mantém uma sádica relação com a bela cantora de cabaré Dorothy Vallens (Isabella Rossellini).

06- "De Olhos Bem Fechados" (Eyes Wide Shut - 1999) EUA/UK
Alice, curadora de arte, é casada com o doutor Bill Harford. Juntos formam um casal perfeito. Porém, depois de participarem de uma festa, Alice confessa ter tido atração e fantasias sexuais com outro homem, que também estava na festa. Os dois começam a discutir e Bill passa a se perguntar o porquê disto estar acontecendo com ele, então ele vai procurar seu amigo Nick Nightingale, que irá lhe mostrar um mundo de fantasias e jogos sexuais.

05- "Elle" (2016) França/Bélgica/Alemanha
Michèle (Isabelle Huppert) é a executiva-chefe de uma empresa de videogames, a qual administra do mesmo jeito que administra sua vida amorosa e sentimental: com mão de ferro, organizando tudo de maneira precisa e ordenada. Sua rotina é quebrada quando ela é atacada por um desconhecido, dentro de sua própria casa. No entanto, ela decide não deixar que isso a abale. O problema é que o agressor misterioso ainda não desistiu dela. Saiba+

04- "A Empregada" (Hanyeo - 2010) Coreia do Sul
Remake de filme sul-coreano, que leva o mesmo nome. Professor de piano rígido se sucumbe aos encantos de sua empregada doméstica. E o que podia ser apenas um mau passo na vida desse homem, acaba se tornando um drama que arrasta toda a família.

03- "Gradiva" (C'est Gradiva Qui Vous Appelle - 2006) França
John Locke é um historiador de arte de passagem por Marraqueche, explorando o trabalho seminal que Delacroix desempenhou lá. Ele fica numa isolada vila com Belkis, sua enigmática serviçal e concubina. Lá ele recebe slides de eróticos esboços que podem ter sido feitos por Delacroix. Então, os sonhos de Locke se intensificam: eles incluem sadomasoquismo com uma submissa jovem e visões de uma mulher de branco, que pode ser uma mulher que viveu no século XIX e foi executada por ter tido um caso com um homem francês. Indo contra os avisos de Belkis, Locke começa a se envolver com pessoas do submundo Marroquino, e cai em um mundo onde nada é o que parece ser.

02- "O Amante Duplo" (L'Amant Double - 2017) França
Chloé (Marina Vacht) é uma mulher reprimida sexualmente que, constantemente, sente dores na altura do estômago. Acreditando que seu problema seja psicológico, ela busca a ajuda de Paul (Jérémie Renier), um psicólogo. Só que, com o andar as sessões de terapia, eles acabam se apaixonando. Diante da situação, Paul encerra a terapia e indica uma colega para tratar a esposa. Entretanto, ela resolve se consultar com outro psicólogo, o irmão gêmeo de Paul, que ela nunca tinha ouvido falar até então.

01- "Desejarás" (Desearás al Hombre de tu Hermana - 2017) Argentina
Andrés (Guilherme Winter), mora na patagônia argentina com sua esposa, Ofélia (Carolina Ardohain), que é filha de uma brasileira com um chileno. Os dois são convidados por Carmen (Andréa Frigerio) para comparecer ao casamento de Lúcia (Mónica Antonópulos) e Juan (Juan Sorini) na capital de Buenos Aires. Apesar de Carmen torcer pela reconciliação das suas duas filhas – ou pelo menos uma trégua durante o casamento – o reencontro das irmãs Ofélia e Lúcia provoca uma série de recordações do passado, algumas nem tão boas assim, pois elas estão brigadas há sete anos, por causa de um motivo peculiar.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Corpo e Alma (Teströl és Lélekröl)

"Corpo e Alma" (2017) dirigido pela húngara Ildikó Enyedi (Simon Mágus - 1999) é um filme que mexe com os sentidos, uma obra bela que mescla romance e fantasia com doses caprichadas de originalidade.
Uma história de amor que começou em sonho, literalmente. Numa dualidade entre o dormir e o acordar, duas pessoas que não se conhecem têm sonhos exatamente iguais, e acabam se encontrando diariamente todas as noites nesse mundo paralelo de fantasia. Quando chega a hora de se encontrarem de verdade, a situação se mostra ainda mais complexa.
A história se passa num ambiente pesado, um abatedouro, e por incrível que pareça nasce algo desse lugar, um amor entre duas pessoas completamente sozinhas e incapazes de se conectar com as pessoas, Endre (Géza Morcsányi) administra o abatedouro e lida com a dificuldade de uma paralisia no braço esquerdo, um dia olhando pela sua janela vê Maria (Alexandra Borbély), que sozinha espera o intervalo passar para voltar ao trabalho, ela possui limitações e várias manias, não cria relações, não permite contato físico e tudo precisa estar milimetricamente perfeito, os dois trocam olhares, mas a realidade é confusa para a aproximação. É dentro dos sonhos que tudo acontece: um cervo e uma cerva caminhando pela floresta gelada. Por ocasião, em uma consulta psicológica da empresa, descobrem sonhar o mesmo e daí o desenrolar torna-se curioso e poético, Endre e Maria ficam entusiasmados pela descoberta e dia após dia se encontram para revelar o sonho e sorrirem diante ao fato de ser o mesmo, cervos andando pela floresta, mas conforme a relação vai se delineando e desejos vêm à tona, os sonhos dão uma parada e a realidade se torna ameaçadora, Endre é fechado e tolhido e Maria sofre por não saber o que está sentindo, ela parece ter a síndrome de asperger, seu comportamento frio e robótico não ajuda e Endre fica perturbado por não entendê-la. 
As cenas do abatedouro choca-se com o teor lírico do longa, algumas delas demonstra passo a passo do procedimento, vísceras e sangue dominam a tela, uma abordagem chocante e real, o trabalho ali é brutal, há um diálogo entre Endre e um entrevistado para o emprego em que ele pergunta o que sente por aqueles animais que processam ali, e o outro responde que não pensa nada e Endre devolve dizendo que se ele não sente pena não deve trabalhar lá, pois terá uma depressão. Não há questionamentos sobre o assunto, o filme expõe a rotina e fica por conta de cada um o que sentir vendo as imagens. Há um recado nos créditos finais que diz que alguns animais foram prejudicados durante a filmagem, mas nenhum por conta do filme, e que apenas documentaram a rotina num abatedouro. Diante desse cenário impróprio para criar qualquer tipo de elo, eis que Endre e Maria se conectam, surgindo primeiro no universo dos sonhos para então a realidade, tanto um como o outro terão que descobrir como ir adiante, Endre reavivando o que há muito deixou para trás e Maria aprendendo a sentir a si mesma e as sensações que a vida oferece.

Com ritmo lento e permeado de silêncios, os detalhes ganham força monumental, as imagens transmitem os sentimentos, a descoberta do amor é delicada e inusitada, Maria é uma pessoa que não consegue interagir, não entende as sensações e é completamente lógica em sua vida, aos poucos ao vivenciar as experiências que a vida lhe proporciona aprende que nem tudo precisa ser assim, até porque amar alguém nunca é uma conta exata, é repleta de diferenças e nuances, como o final exemplifica. Endre também redescobre-se, pois afastado de envolvimentos e fechado em si por conta da deficiência não esperava que sua alma pudesse ser afetada por outra, e no universo dos sonhos tanto um como o outro se encontram, a partir dessa bela coincidência as barreiras devagar vão sendo quebradas.

Não é fácil se conectar com outro ser humano, cada um enxerga a vida de uma forma, tem a sua realidade e para romper bloqueios requer muito empenho e querer, quando o sentimento ultrapassa o entendimento e começa a habitar um universo mais onírico, tudo se desenvolve melhor e ajuda no contato verdadeiro, assim foi com Endre e Maria que entre fascinação e dor se unem.
"Corpo e Alma" desenvolve uma narrativa original que mescla o real e o fantástico sob uma perspectiva peculiar e incômoda, o ambiente pesado e frio contrapondo com a sutileza dos sonhos e descobertas cotidianas gera sensações variadas que ora encanta, ora repele, mas reflete o amor e a sua capacidade de modificação e descobertas.
Vale destacar a trilha sonora com as canções "What He Wrote" e "My Manic and I", de Laura Marling. 

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Menashe

"Menashe" (2017) dirigido por Joshua Z. Weinstein traz uma história muito interessante sobre a forma de vida das pessoas nas comunidades judaicas ultra-ortodoxas, são retratados dilemas, tabus, ritos, hábitos, e por muitas vezes, a contradição.
Dentro da ultra-ortodoxa comunidade judaica do Brooklyn - a maior fora de Israel, um viúvo luta pela custódia de seu filho. Um sensível drama realizado inteiramente em iídiche, que explora intimamente a natureza da fé e o preço da paternidade.
Menashe (Menashe Lustig) trabalha dobrado em um mercado e tenta de todas as maneiras ter a guarda de seu filho, mas como não tem condições e, principalmente, uma esposa, pois as leis judaicas determinam que um lar necessita de uma figura feminina e que um viúvo é incapaz de fornecer o que uma criança precisa, Reiven tem dez anos e é cuidado pelo cunhado e esposa enquanto Menashe não dá um jeito em sua situação, a pressão em cima do assunto é forte, o cunhado e o rabino insistem, mas Menashe não quer saber de casar, quer apenas criar seu filho e ter um vínculo com ele. Para todos da comunidade Menashe é um desafortunado, desde o emprego até o seu jeito de ser, ele é um pouco desatento, como quando vai fazer entregas de van e esquece de fechar a porta de trás e todo o peixe se espalha pela rua causando um grande prejuízo, para pagar a dívida faz horas extras junto dos hispânicos, além disso Menashe não segue à risca os hábitos, como vestir cafetã ou o chapéu e até questiona alguns ritos, como o shabbat, ele destoa do ambiente, mas também não quer dizer que seja menos devoto. Menashe contesta o severo cunhado sobre ter o direito de ver Reiven e criá-lo, o menino entende a situação do pai e são poucos os momentos que discute ou se entristece, mas sempre está de olho em tudo, como quando seu pai é humilhado pelo patrão, ou o tio o desmerecendo por conta da vida corrida e sem pontualidade.

Para mostrar que pode criar seu filho sozinho e se impor diante a comunidade, Menashe decide fazer um jantar, uma tradição em que os parentes próximos visitam o túmulo e rezam, ele fica incumbido de preparar as comidas, arrumar o pequeno ambiente e seguir todos os hábitos para esse dia, nada pode dar errado, ele segue firme e dedicado, mas o seu jeito não harmoniza com todo o resto, a comida acaba queimando e olhares se entrecruzam na mesa, porém o rabino enxerga seu sacrifício.
A comunidade que se concentra no Brooklin é uma amostra de como a cidade é recheada de diversidade e cultura, todos falam em iídiche e mantêm suas vidas à base das leis judaicas, como Menashe que as têm como o único empecilho para criar seu filho, é um mundo à parte, Reiven não possui contato com outras coisas ou tecnologia, por exemplo, eles isolam tudo e se fecham entre si. 

O filme é muito direto e não faz apontamentos de certo ou errado, apenas demonstra o estilo de vida e retrata Menashe como um ser humano repleto de falhas, como qualquer outra pessoa. Difícil entender aonde é que o personagem realmente escolhe por si, já que todos palpitam em sua vida.
"Menashe" é um filme natural e real, os personagens vivem de fato no contexto judeu-ortodoxo, então é uma boa dose de conhecimento e compreensão da realidade vivida por eles, a devoção, o comprometimento com os estudos, as dificuldades em território estrangeiro, o fechamento entre eles, a opressão das leis, os tabus, as contradições e também a beleza da cultura, vide as canções que são belíssimas, e a força da identidade judaica. 

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

O Fantasma da Sicília (Sicilian Ghost Story)

"O Fantasma da Sicília" (2017) dirigido e roteirizado por Antonio Piazza e Fabio Grassadonia (Salvo - 2013) é um filme belíssimo em que imagens traduzem sentimentos, extremamente poético se desenrola de forma sutil, porém avassaladora, trata com cuidado um tema tão pesado e nos leva para uma atmosfera tensa e imaginativa, sua aura de sonho contamina e impregna na pele, totalmente imersivo!
Giuseppe (Gaetano Fernandez) é um corajoso garoto de 13 anos de idade, que desapareceu nas mediações de uma misteriosa floresta localizada na pequena aldeia em que vivia. A única pessoa que parece não se conformar com o sumiço dele é a pequena Luna (Julia Jedlikowska), que está disposta a enfrentar todos os perigos para resgatar seu amigo.
Luna e Giuseppe são colegas de escola e estão apaixonados um pelo outro, o início reflete toda a magia da paixão, depois da escola Luna segue Giuseppe pela floresta e o observa, ela é encantada pelo jeito charmoso e corajoso dele, nesse dia os dois passeiam pela floresta, Giuseppe salva Luna de um cachorro, saem de lambreta e se beijam, Luna entrega uma carta a Giuseppe e ele se exibe ao montar seu cavalo com imensa destreza. Enquanto ela o espera sentada sozinha olhando o horizonte ao pensar no momento pelo qual está passando, a cena acontece atrás de si, um carro estaciona e homens vestindo roupas policiais pegam o menino e se vão. Luna ao ver que Giuseppe sumiu se desespera e começa a questionar todos, vai a casa do amado todos os dias, encontra a mãe aos pedaços e confusa, o pai irritado, e na escola ninguém se importa. O fato é que Giuseppe desapareceu e tudo continua da mesma forma, menos para Luna que irá fazer o impossível para encontrá-lo, e é aí que a fantasia entra em cena amainando um pouco o peso da história, mas mesmo assim a fábula é sombria e nada tem de sobrenatural, é a partir de sonhos que tudo se dá e se encaixa de forma bela e melancólica. Luna fica muito incomodada por ninguém fazer nada, então sozinha vai em busca, dentro dela acaba achando respostas e caminha por lugares tenebrosos. 
O suspense dá o tom à história, porém o fantástico predomina e invade com imagens hipnotizantes revelando grande parte da trama, momentos surreais e dolorosos se misturam. Os espaços antigos da região são explorados com maestria ajudando a criar o clima de imersão, a natureza ganha uma enorme significação, a floresta de cores vivas que foi o cenário de amor dá lugar a tons escuros que refletem o pesadelo e agonia de Luna.

O filme baseia-se na história real de Giuseppe di Matteo, um garoto de 13 anos que foi sequestrado pela máfia e mantido em cativeiro por 779 dias, numa tentativa da máfia para calar seu pai, que entrara num programa de delação premiada e estava entregando antigos companheiros no crime. Este horror foi contado de um jeito fantasioso, mas sem nunca perder a força, Luna é um alívio e é através dos olhos dela que os dias no cativeiro são recriados, sua imaginação, seus sonhos a levam até Giuseppe garantindo à narrativa poesia e delicadeza. Ela tem a ajuda de sua amiga Loredana (Corinne Musalian) para encontrar Giuseppe, a única que a ouve e que acredita nela, o resto é silêncio e medo. Os diretores conseguiram enlaçar o lúdico e o real perfeitamente, encanta ao mesmo tempo que sufoca, o que lembra os filmes "O Espiríto da Colméia" - 1973 , cujos disseram ser a bússola deles na hora de criar o tom, e "O Labirinto do Fauno" - 2006, que também utiliza o fantástico para amenizar o real horror. A linha tênue entre realidade, sonhos e delírios alimenta o mistério e aguça nossos sentidos.

"O Fantasma da Sicília" é uma obra primorosa seja em sua lenta e calada narrativa, como na estética com imagens de tirar o fôlego, a conexão entre os personagens tanto mostrado no início na floresta, como a força intuitiva e dedicação de Luna ao contrário de todos que fingem indiferença, é belo, romântico, denso e trágico, os momentos em que sentimos o sofrimento de Giuseppe que através da carta de Luna encontra a vida em meio a tanta violência dá um nó na garganta, são cenas pesadas transformadas em metáforas visuais incríveis, detalhes lapidados com delicadeza, um sonho melancólico inesquecível. Ainda conta com a linda canção "Safe with Me", de Soap & Skin.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

O Outro Lado da Esperança (Toivon Tuolla Puolen)

"O Outro Lado da Esperança" (2017) dirigido por Aki Kaurismäki (O Porto - 2011) tem estilo único e é rico em elementos, a mescla de drama, comédia e música dá muito certo e marca pela sinceridade e sensibilidade, sempre com temas atuais e frágeis da sociedade, a maneira que seu roteiro se desenrola, as situações e as reações das pessoas, tudo com um toque de humor irônico e muita música, e que bom gosto musical tem esse diretor! O filme não foge do peso do tema, refugiados que pedem asilo na Europa, e demonstra apuro e inteligência mostrando os lados, estereótipos e identidade. É simples, despojado e transfere uma sensação de melancolia e acolhimento.
Khaled (Sherwan Haji) fugiu da guerra na Síria e foi buscar asilo na Europa. Depois de percorrer vários países, solicita a permissão de estadia na Finlândia. Enquanto espera pela resposta, busca pela irmã desaparecida, e consegue a ajuda de um pequeno comerciante, Wisktröm (Sakari Kuosmanen), que aceita empregá-lo em seu pequeno restaurante.
Khaled fugiu do caos que assola seu país, a Síria, após muito percorrer pelos mais diversos países acaba desembarcando sem querer na Finlândia, o humor é um grande aliado do roteiro e os personagens tem tons caricatos e frios, mas isso é mais que positivo, encaixa-se perfeitamente, só que o clima melancólico permeia também a narrativa, o personagem perdeu toda a sua família e procura pela única irmã, determinado Khaled busca ajuda e asilo ao país, cujo tem fama de ser igualitário. As cenas de entrevista são ótimas e demonstram perfeitamente a situação calamitosa dos refugiados, enquanto o outro lado escuta e anota friamente sem estabelecer qualquer vínculo. Khaled não conhece outro sentimento a não ser dor e tristeza, vive de forma apática e quando o colega do abrigo lhe diz que precisa ser mais simpático não entende o que ele quer dizer, ou quando diz não entender piadas, os intervalos musicais refletem a solidão de Khaled e do outro lado, apesar de distantes compartilhando do mesmo sentimento está o carrancudo Wisktröm, que no decorrer demonstra afeição e humanidade. Wisktröm sem uma palavra arruma suas coisas e larga sua esposa bêbada, em um jogo de poker ganha uma boa quantia e compra um restaurante, uma nova vida está a caminho, mas não é fácil manter os clientes, para isso recebe a ajuda de seus três funcionários, as mudanças constantes de fachadas e identidade culinária são extremamente irônicas e marcam a confusão e o problema de adequação. Depois de delinear esses dois personagens tão diferentes, mas próximos em seus sentimentos o encontro se dá de forma até bruta, porém Wisktröm se rende e cria empatia por Khaled. Wisktröm escolhe se isolar dos demais, já Khaled é refém do isolamento, a situação parece improvável e até forçada, só que a mistura dos elementos e a forma que os personagens reagem e conduzem as situações transforma o filme em algo especial, há candura em meio a tanta dor e solidão. 

Somente um diretor como Kaurismäki consegue equilibrar comédia e drama com fineza, um tema tão pesado narrado com tanta despretensiosidade e carinho. É agridoce, denso, irônico, crítico e esteticamente peculiar, sem deixar de mencionar a trilha sonora diegética que cria e insere emoção, os diálogos pontiagudos que refletem a atualidade, a questão de se sentir refém das escolhas dos outros, de não pertencer a nenhum lugar, de não darem o devido valor a sua história, de ser apenas mais um, tudo contribuindo para a desistência e a nulidade. O olhar de Khaled invade nosso ser, por detrás de toda a sua languidez existe um oceano de tristeza, mas também de gentileza e amor. 

"O Outro Lado da Esperança" é direto em sua abordagem e retrata os absurdos dos mecanismos da sociedade, Khaled é impassível ao fazer o relato de sua situação, ele conta os detalhes das atrocidades e da confusão de não saber quem ataca quem e porquê, a sua peregrinação, a violência de todos os lados, grupos anti-imigração, neonazistas e etc, a busca pela irmã e enquanto isso espera miseravelmente a possível aprovação de estadia, e entre muitos percalços conhece Wisktröm, que lhe fornece abrigo, trabalho e como não há outra forma, a ilegalidade. Pode parecer ingênuo acreditar que no meio de tanta violência, barreiras e rótulos haja um pouco de compaixão, acolhimento e dignidade, mas sabe-se que em algum lugar reside a esperança, senão do que vale estar vivo e persistir com tanta coragem como Khaled? 

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

O Sacrifício do Cervo Sagrado (The Killing of a Sacred Deer)

"O Sacrifício do Cervo Sagrado" (2017) dirigido por Yorgos Lanthimos (Alpes - 2011, The Lobster - 2015) tem um roteiro inusitado, que também tem a mente criativa de Efthymis Filippou, constante parceiro de Lanthimos, o universo criado retrata os extremos dos conflitos das relações, as complexidades do ser humano, o tom cômico e trágico causa desconforto e constrangimento, o fato é que o filme provoca e causa incômodo, traz situações absurdas, personagens desprovidos de emoções e quando existe algum indício carecem de significação, são atos mecânicos e diálogos crus e diretos, os símbolos e referências estão por toda a parte e é preciso estar atento a cada detalhe, conversa e ação. Criativo, irônico e desconcertante, intriga tanto em sua estética fria e robotizada, quanto em seu roteiro com desenrolar lento e repleto de pontas, é uma experiência única assistir os filmes de Lanthimos, que mesmo produzindo fora de seu país continua com suas estranhas características, quanto mais se pensa no filme mais coisas surgem e mais interessante fica. 
Steven (Colin Farrell) é um cardiologista conceituado que é casado com Anna (Nicole Kidman), com quem tem dois filhos: Kim (Raffey Cassidy) e Bob (Sunny Suljic). Já há algum tempo ele mantém contato frequente com Martin (Barry Keoghan), um adolescente cujo pai morreu na mesa de operação, justamente quando era operado por Steven. Ele gosta bastante do garoto, tanto que lhe dá presentes e decide apresentá-lo à família. Entretanto, quando o jovem não recebe mais a atenção de antigamente, decide elaborar um plano de vingança.
A vida aparentemente perfeita da família de Steven começa a ruir quando o jovem perturbado Martin - incrivelmente e extraordinariamente bem interpretado por Keoghan, não sente que está sendo uma prioridade mais na vida do médico, ele tem ressentimento e raiva por causa da morte do pai nas mãos de Steven, a relação é um jogo de troca, Steven nunca declara sua culpa, a disfarça em forma de pena pela falta de afeto que Martin sente e que mais tarde é transformada em obsessão e raiva, Steven em determinado momento se cansa de Martin, e este não tolera ser colocado de lado, ele se aproxima da família, cativa Kim e Bob e lança uma praga em cima da família do médico. Bob, o filho mais novo destoa do aspecto frio e reto da família, tem as próprias vontades, uma demonstração é não cortar o cabelo, ele representa a inocência, a gentileza nesse meio, ou seja, o Cervo, que possui essas características na simbologia, além de se sacrificar por um bem maior. Bob é o primeiro a sentir os sintomas da "maldição" de Martin, logo é Kim que sente suas pernas paralisarem, a influência de Martin sobre ela é imensa, pois em uma cena no hospital ela se levanta para olhar pela janela a pedido dele ao telefone, segundo Martin todos na família irão sofrer as consequências, só basta a Steven escolher um deles, é uma questão de equilíbrio, ao eliminar alguém da vida de Martin, alguém da vida de Steven também tem que ser. 

"Um: paralisia dos membros. Dois: recusa a comer ao ponto de morrer de fome. Três: sangramento dos olhos. Quatro: morte. Um, dois, três, quatro."

Martin vai soltando verdades no decorrer e tudo de maneira calma, mas também inquietante, ele é uma espécie de profeta. Steven é um homem extremamente egoísta, fraco e hipócrita, esconde sua culpa e finge asseio, em nenhum momento admite seus erros ou revela suas imperfeições. Ele é vazio. Anna com o desenrolar parece acordar e perceber um pouco as coisas, como quando na cozinha ao se defrontar com ele, que ao invés de estar preocupado com o filho pede para que ela faça um purê. "Você tem belas mãos. Nunca havia percebido. Mas todos têm me dito isso nos últimos dias, que belas mãos você tem, e agora vejo com os meus olhos. Macias e limpas. Mas quem liga se elas são lindas? Elas não têm vida". Só que ela não titubeia ao fato de fazer de tudo para não ser a escolhida para o sacrifício, como ao dizer que ainda podem ter mais filhos, aliás esta parte é carregada de humor negro e impacta com as atitudes de cada um ao querer se livrar do inevitável.

"O Sacrifício do Cervo Sagrado" faz referência ao mito grego "Ifigênia", que escolhida ser sacrificada pelo próprio pai, foi por obra dos deuses, substituída por um animal no derradeiro momento, a tragédia é colocada nos moldes atuais e daí surge variadas camadas e cada espectador absorve e interpreta de uma maneira, mas o incômodo é certeiro e intenso ao evidenciar o lado podre do ser humano e os absurdos dos seus comportamentos enquanto disfarçam e fingem virtudes. Uma obra particular e imensamente desconcertante.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Thelma

"Thelma" (2017) dirigido por Joachim Trier (Oslo, 31 de Agosto - 2011, Mais Forte que Bombas - 2015) e roteirizado pelo excelente Eskil Vogt (Cegos - 2014) é um filme intimista e enigmático que traz a descoberta sexual da personagem através do sobrenatural, em tom frio seguimos os passos de Thelma (Eili Harboe) e o seu despertar sexual aliado a um dom poderoso, sua educação foi atrelada à religião e por conta disso é reprimida, a figura do pai exerce bastante influência em sua vida, ao mesmo tempo em que Thelma descobre coisas sobre si a partir da relação com Anja (Kaya Wilkins), sofre de alguns ataques epilépticos.
Thelma é uma jovem tímida que acaba de deixar a casa dos pais para estudar em Oslo, onde vive seu primeiro amor. Seu relacionamento é logo afetado pela intromissão opressiva de sua família, que com suas crenças religiosas fundamentalistas conseguem afetar a vida da jovem. Quando Thelma fica chateada, coisas estranhas começam a acontecer e esses fenômenos sobrenaturais só aumentam. Enquanto busca respostas sobre esses poderes que ela não controla, seus pais severos e religiosos se preparam para o pior.
O prólogo nos fisga por ser belíssimo e ao mesmo tempo curioso, uma força inexplicável que move a arma que o pai aponta para um animal para a própria cabeça da filha, logo depois Thelma está se estabelecendo sozinha, indo à faculdade e timidamente se aproximando de Anja, algo acontece dentro dela e num dia dentro da biblioteca pássaros começam a bater nas janelas e Thelma sofre um ataque epiléptico, não é difícil deduzir que essa cena representa a opressão, o atrito entre seus desejos e suas crenças, ela foi doutrinada pelo pai e ele até então a controlava, mas depois desse episódio as suas vontades vão se libertando e causando literalmente o caos.
"Thelma" faz referência ao filme "Carrie - a Estranha", de 1976, mas a composição de sua personagem é particular e extremamente misteriosa, pois seus poderes tem amplos extremos, como quando criança acaba cometendo um ato que rompeu de certa forma o laço afetivo entre ela e a mãe, um trauma pesado e uma constatação de que Thelma possuía uma habilidade perigosa e que para dominá-la recorreram a rigidez da crença cristã, mas quando ela vai morar só em Oslo aos poucos os seus desejos emergem e esses poderes retornam com imensa potência. Bambeando entre o drama e a fantasia somos absorvidos por uma trama intrigante que faz uma analogia perturbadora do desabrochamento para a vida, são momentos impactantes e sensoriais, muitas metáforas incluídas e o pecado sempre está simbolicamente perto de Thelma.

A narrativa segue lenta, contida, porém muito atraente e quando retrata os momentos do passado se torna ainda mais interessante, o mistério vai se desvendando e Thelma aos poucos vai crescendo e se libertando de tudo que a oprimia, o fantástico e o real se unem de maneira extraordinária, e faz o principal, que é refletir sobre o como é difícil crescer, se desvincular de crenças e pensamentos opressores que os pais acabam semeando, e enfim aceitar-se como realmente é, libertar-se da figura esmagadora do pai, dos preconceitos e dar asas aos desejos.

"Thelma" é um filme diferenciado por conta da abordagem e de interagir com o sobrenatural, mas é sutil, bonito e, claro, também perturba, pois lança questões a serem sempre repensadas, a opressão religiosa sobre a figura feminina, a repressão de seus desejos, a castração das vontades próprias por conta da moral, a desvinculação do seio familiar, e então ir desafiar todas as amarras e tabus sociais. Joachim Trier e Eskil Vogt são excelentes juntos, não há dúvidas do cuidado com todos os aspectos do longa, somos envolvidos em uma aura misteriosa e fria, mas sensível e significativa.
O despertar da adolescência/juventude feminina mesclado à fantasia/terror também pode ser visto em "The Fits" - 2015 e "Raw" - 2016, ambas obras fortes e pertinentes assim como "Thelma".

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Melhores Álbuns 2017

Segue a lista dos melhores álbuns do ano, um resumo do resumo de tudo o que escutei. Os melhores citados são essencialmente de gosto pessoal!

13- Lyves - Like Water (Pop/Eletrônico/Indie/Alt-Soul)
Quem está por trás de Lyves é a italiana Francesca Bergami, sua voz profundamente emocional juntamente com a guitarra, batidas e sintetizadores evoca diversas sensações, "Like Water" é seu EP de estreia e traz quatro canções envoltas numa atmosfera ao mesmo tempo calma e sedutora, escura e pungente. A música "Darkest Hour", sem dúvidas, é a mais envolvente. Vale conferir!

12- Cigarettes After Sex - Cigarettes After Sex (Slowcore/Dreampop/Pop-Noir)
Encabeçada pelo vocalista Greg Gonzales, a banda alcançou o sucesso de fato em 2015 após o aumento de visualizações no Youtube com a hipnotizante canção "Nothing’s Gonna Hurt You Baby", após vários singles lançados eis que surge o álbum, a marca registrada da banda com certeza é a voz frágil e melancólica de Greg, e claro, seu estilo minimalista, romântico, nostálgico e aconchegante. Diante a tanto desamor e caos Cigarettes After Sex nos proporciona momentos de profundidade e repouso. Confira

11- Sevdaliza - Ison (Trip Hop/Art Pop/Experimental Pop)
Álbum de estreia da iraniana Sevdaliza, Ison é um álbum que carrega um poder feminino exuberante, uma aura obscura, sensual e misteriosa, uma sonoridade sensorial com distorções experimentais envolventes, uma atmosfera íntima e dominadora. É para se deleitar a cada música com suas combinações de gêneros e letras poéticas que hipnotizam. Confira

10- Y'akoto - Mermaid Blues (Pop/R&B)
Mermaid Blues é o terceiro disco da cantora e compositora ganesa/alemã Y'akoto, que com sua voz áspera nos captura com baladas melancólicas e letras emocionais, mesclando o pop e o neo soul de maneira harmoniosa e extremamente agradável. A canção "Fool me Once" e "Love me Harder" são os destaques deste álbum.

09- Ron Gallo - Heavy Meta (Rock/Indie)
Álbum de estreia do americano Ron Gallo, Heavy Meta traz o rock garage, a psicodelia, o glam, o punk de forma eletrizante e divertida, um álbum que nos remete a outras bandas, como Rolling Stones, Jack White e até Beatles, mas o vocalista cheio de personalidade une suas características próprias e nos presenteia com esse delicioso registro que resgata o rock da melhor maneira possível. Confira.

08- Black Joe Lewis and the Honeybears - Backlash (Rock/Blues)
O som de Black Joe Lewis é enérgico, ardente e selvagem, nesse seu novo álbum não é diferente, sonzeira total, uma mistura de funk, soul, garage rock junto a seu vocal nervoso e intenso. Um disco quente, dançante e também profundo em suas letras. Destaque para a música "Sexual Tension" e "PTP". 

07- Alt-J - Relaxer (Art Pop/Indie/Eletrônica)
Terceiro trabalho da banda Alt-J, "Relaxer" mantém as características únicas e intrigantes, assim como os outros contém referências, simbolismos e brinca com sonoridades diversas, realmente uma viagem, destaque para as canções "Deadcrush" e "In Cold Blood". 

06- Prophets of Rage - Prophets of Rage (Rock/Rap)
Prophets of Rage surgiu em 2016 da união de três integrantes do Rage Against the Machine e Audioslave, o guitarrista Tom Morello, o baixista Tim Commerford e o baterista Brad Wilk, dois membros do Public Enemy, o rapper Chuck D e o DJ Lord, e ainda o rapper, B-Real, do Cypress Hill. O álbum homônimo é mais que necessário, uma denúncia a tudo que está acontecendo de errado no mundo, coloca o dedo na ferida e aponta diretamente em Donald Trump, mas também diz sobre extremismos, racismo e pobreza. Um projeto cujo intuito é o protesto e a mensagem de união entre os povos. Confira.

05- Princess Nokia - 1992 (Hip Hop/Rap)
A americana Destiny Nicole Frasqueri, "Princess Nokia", lançou seu álbum de estreia, 1992, que traz canções com letras repletas de empoderamento feminino, desconstrução de gênero e mescla alguns gêneros como música eletrônica e rap trap juntamente ao rap oldschool, Princess Nokia retrata uma geração que não se cala e não abaixa mais a cabeça para o preconceito. Destaque para a canção "Brujas" que enaltece suas raízes e "Tomboy", que diz sobre gênero e estereótipos.

04- Fever Ray - Plunge (Trip-Hop/Synthpop/Experimental)
Após 8 anos de recesso Karin Dreijer Andersson voltou e surpreendeu os fãs com o álbum Plunge, que mesmo não estando no patamar do anterior, com toda a obscuridade, esse vem com uma aura futurista e fetichista, continuando com letras criativas e sonoridade experimental que mexe muito com nossas sensações. Plunge está inserido num universo mais aberto, menos misterioso. O caos está presente, assim como o bizarro, mas a intensidade conversa com outros elementos, é mais expressivo e tem uma abordagem libertadora, dizendo sobre amor, sociedade e sexualidade. Confira

03- Tulipa Ruiz - Tu (MPB/Pop Alternativo)
Tu, quarto disco da cantora Tulipa Ruiz, traz gravações inéditas e repagina algumas canções, como "Pedrinho" e "Desinibida", ainda traz a participação do ator franco-mexicano Adan Jodorowsky na música "Terrorista del Amor". É um álbum que nos faz sorrir e que propõe o desnudar-se, é livre, espontâneo, suave e simples.  Confira

02- Simone Mazzer & Cotonete - Simone Mazzer & Cotonete (MPB/Jazz-Funk)
Simone Mazzer tem um vocal poderoso, uma intérprete sem restrições, vai desde Tim Maia a Björk, o seu disco de estreia, Férias em Videotape, revelou toda essa potência. Simone representa o que é ser uma artista de verdade, talentosa ao extremo, uma diva essencialmente. Seu segundo álbum em parceria com o grupo francês Cotonete, que são mestres nas sonoridades do funk dos anos 70, ou seja, uma parceria vibrante, cheia de suingue e com um toque vintage. Confira

01- As Bahias e a Cozinha Mineira - Bixa (MPB/Rock)
Segundo álbum de Raquel Virgínia e Assucena Assucena, Bixa, uma referência ao álbum Bicho, do cantor baiano Caetano Veloso, traz além do MPB, batidas eletrônicas, reggae, bolero e até o tecnobrega, um disco dançante que passeia por letras irônicas e histórias de amor e violência. As Bahias e a Cozinha Mineira vão mais além do termo lacrar e se configuram como uma das mais relevantes artistas do cenário musical brasileiro. Letristas de primeira e qualidade musical impecável. Confira.