"Cafarnaum" (2018) dirigido por Nadine Labaki (Caramelo - 2007, E Agora, Aonde Vamos? - 2011) é um drama pesado e ao mesmo tempo sensível que retrata a miséria e o caos moral e social, além disso um filme que se posiciona e denuncia questões primordiais, por exemplo, o casamento de meninas menores de idade e a consciência sobre colocar mais vidas neste mundo falido. A dor que envolve a história é enorme, certamente os olhos do protagonista ficarão cravados na memória do espectador, também causa espanto pelas atrocidades pelas quais passa para a sobrevivência e o seu incrível senso de responsabilidade moral e clareza diante deste núcleo caótico em que vive.
Aos doze anos, Zain (Zain Al Rafeea) carrega uma série de responsabilidades: é ele quem cuida de seus irmãos no cortiço em que vive junto com os pais e que leva o alimento trabalhando em uma mercearia. Quando sua irmã de onze anos é forçada a se casar com um homem mais velho, o menino fica extremamente revoltado e decide deixar a família. Ele passa a viver nas ruas junto aos refugiados e outras crianças que, diferentemente dele, não chegaram lá por conta própria.
Zain vive num ambiente bagunçado em todos os sentidos, os pais não têm noção de nada, o faz trabalhar na mercearia em troca de um pouco de comida para dar aos irmãos que vivem amontoados num pequeno espaço, quando os pais decidem casar a irmã de onze anos com o dono da mercearia por causa de dinheiro, Zain fica revoltado e enfrenta-os, ela é seu vínculo mais forte e até a ajudou a esconder a menstruação da mãe a fim de que essa situação não ocorresse. Ele não consegue deter o casamento e irritado foge, simplesmente pega um ônibus e vai parar no lado em que moram refugiados, ali ele percebe um outro universo, tão pobre e tão difícil quanto o seu, porém recebe acolhimento e carinho de Rahil (Yordanos Shiferaw), que vive de maneira ilegal e tenta criar seu filho pequeno sem maiores problemas, Zain cuida da criança enquanto Rahil vai trabalhar e passa vários dias assim, até que Rahil é presa e as duas crianças ficam à mercê da sorte, sem ter o que comer Zain articula meios para poder conseguir dinheiro e comprar o mínimo possível, as cenas em que sai puxando o bebê atrás de si pelas ruas é de cortar o coração, eles enfrentam a fome e a dor de estar numa situação que não há saída, não existe escolha, é dali para pior, o que destrói qualquer pensamento de que todos têm possibilidades de escolha na vida. O filme promove o olhar para com o outro, para além do próprio mundo, da realidade miserável e lamentável em que crianças precisam lidar com o sofrimento do abandono, da irresponsabilidade dos adultos e dos podres que rodeiam esse mundo, como o personagem de Aspro (Alaa Chouchnieh).
Cafarnaum é traduzido como caos e também é o nome de uma cidade bíblica que ficou conhecida por uma série de milagres atribuídos a Jesus, a fé parece não ser de grande valia, apesar de alguns personagens tê-la, o que não é o caso de Zain, simplesmente pelo fato de que a estrutura social os relegam tanto que são invisíveis até para o divino. A saga de Zain e Jonas é calamitosa e nosso coração aperta e gela para os desfechos que poderiam ocorrer, quando se acha que não tem mais para onde cair, abandonado ele decide recorrer a Aspro e com uma enorme dor faz o que ele propôs várias vezes a Rahil, e aí então fica tentado pela travessia à Suécia e volta para casa na esperança de encontrar seus documentos, mas ali tem novas decepções, nenhum deles possui documentos, e o que mais corrói seu coração é saber o que ocorrera com a irmã o impulsionando a cometer um ato cheio de revolta e raiva. Zain vai preso e encontra Rahil em outra cela, que desesperada clama por seu pequeno Jonas.
Em determinado ponto Zain consegue por meio de um telefonema para um programa uma forma de poder acusar os próprios pais e o juiz o ouve. Dilacerante seu depoimento e seu olhar sobre o todo, a consciência que tem do meio e de suas impossibilidades toca e nos faz refletir no rumo que a humanidade está tomando, da questão da imensa pobreza, das crianças relegadas pelos próprios pais que continuam a procriar criando assim um círculo de sofrimento, da situação dos refugiados e da falta de opção e perspectiva vivendo à sombra e sendo menos que lixo. No tribunal Zain quer processar seus pais por tê-lo trazido ao mundo e em seguida diz: "Eu quero pedir que meus pais parem de ter filhos."
Nadine Labaki nos deu uma obra realista e arrebatadora, extraiu de Zain Al Rafeea uma potência no olhar que dificilmente será apagada de nossa memória, o personagem homônimo é um garoto sírio, mas a realidade é que Zain viveu vários anos como refugiado sírio no Líbano e enfrentou a dura pobreza e todas as consequências que a condição acarreta, a tristeza no seu olhar é verdadeira, assim como na boa parte do elenco, o que gera uma autenticidade que desperta a nossa consciência.
"Cafarnaum" é primoroso, necessário, uma extrema dose de realidade e um cinema que faz a diferença!
*Após a filmagem, Zain e a família receberam asilo na Noruega.
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