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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Nebraska

Alexander Payne é um diretor que sempre é posto de lado pela crítica, mas sua filmografia ao meu ver é muito boa. Para citar alguns: "Eleição" (1999), "As Confissões de Schmidt" (2003), "Sideways" (2004) e "Os Descendentes" (2011). São filmes aparentemente simples e que fluem muito calmamente, além de ter um humor diferenciado. "Nebraska" (2013) segue esse ritmo, mas possui um algo a mais que com certeza o tornará sua obra-prima.
Woody (Bruce Dern) é um velhinho não muito simpático e cuja cabeça não ajuda mais. Ao receber um panfleto que diz que ganhou 1 milhão de dólares decide colocar o pé na estrada e seguir até Lincoln, onde poderá receber o prêmio, David Grant (Will Forte), filho de Woody sabe que não existe dinheiro algum, mas decide levar seu pai até lá mesmo contra a vontade do restante da família. Woody é um homem fechado, mas no decorrer da história percebemos a grandeza de seu coração, ele foi um homem muito bom e que inclusive, por muitas vezes foi passado pra trás. Seu pensamento está fixado neste prêmio imaginário, ele só quer comprar uma caminhonete nova e um compressor de ar. O rumo da viagem muda quando Woody sofre um acidente e tem que ficar hospedado na casa de alguns parentes. Muito bom os diálogos nesta parte, são bem soltos e aos poucos descobrimos mais sobre este homem.
Woody veio de uma família de fazendeiros, é um trabalhador que serviu a guerra como mecânico, da qual retornou falando quase nada. Isso fez com que deixasse a desejar na relação com os filhos. A frustração o tornou num alcoólatra e consequentemente deu muito trabalho para sua esposa Kate (June Squibb), uma senhora histérica que não deixa de reclamar por um instante. Muito importante ressaltar a linda e cativante atuação de June Squibb, sem papas na língua ela toma conta do que é seu, ela tem um jeito durão, mas ameniza com uma boa dose de humor e amor a sua família.
A fotografia em preto e branco só evidencia a melancolia, ali naquele lugar parece já não existir vida. Woody na verdade segue em busca de si mesmo, e David entende que necessita passar esse tempo com o pai, afinal ele a qualquer momento pode morrer. A teimosia é latente neste filme.
A viagem de Woody e David faz com que pai e filho se conheçam um pouco. A delicadeza de David é linda. Quando Woody diz que quer comprar um compressor de ar e uma caminhonete, e o restante do dinheiro seria para David e seu outro filho Ross (Bob Odenkirk), com certeza é um dos momentos mais emocionantes, é aí que o entendemos. Esse homem trabalhou duro e fez dos filhos homens bons, mesmo estando distante. A cena em que os filhos se unem e pegam de volta o compressor de ar há muito tempo emprestado é bonita e também bem engraçada.

Outra cena muito bacana é quando Kate defende Woody contra os parentes que querem uma parte do suposto prêmio. É, antes de saberem do prêmio trataram Woody com muita hostilidade, mas ao saberem do dinheiro, passou a ser querido por todos. O fator velhice ajuda, muitos aproveitam disso para se beneficiar, os julgam incapazes de pensar, mas Kate não poupa ninguém com suas palavras.
"Nebraska" é daqueles filmes que inevitavelmente mexem conosco, a simplicidade é só aparente, ele se desenrola calmamente dando tempo para que um sentimento se desenvolva e se transforme. Woody se sentia um homem abandonado, não existia mais nada em si, até que o desespero bateu e se apegou no "prêmio". David soube lidar com a situação com muita paciência e deu ao pai e a si mesmo momentos inesquecíveis. Ao final quando Woody dá uma olhadela para David dentro da caminhonete, com certeza nesse instante sentiu orgulho do filho.

O filme nos faz pensar na velhice e no quanto a sociedade os consideram descartáveis. Nem todos têm a paciência de David, infelizmente. É um filme extremamente sensível e verdadeiro!

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Can

Dirigido pelo turco Rasit Çelikezer, o filme "Can" (2011) retrata a busca pela aceitação, conflitos de casais, a ambição, o tráfico humano, entre tantas outras coisas que atingem a sociedade. De maneira delicada aborda a inocência do pequeno Can em meio a tudo isso.
Depois de fugir para Istambul para escapar das objeções de suas famílias, Cemal e Ayse estão felizes em seu casamento. A única coisa que falta em suas vidas é o bebê que eles tanto gostariam de ter, mas descobrem que Cemal é infértil. Frustrado e envergonhado, ele pede que Ayse finja estar grávida, planejando adotar um bebê de forma ilegal, que vai chegar nove meses depois. Mas quando o bebê chega, em circunstâncias duvidosas, Ayse se sente impossibilitada de desenvolver qualquer sentimento materno por ele. Como ela e Cemal vão ficando cada vez mais ressentidos um com o outro, o casamento começa a desmoronar. No cenário de uma cidade com um próspero mercado de tráfico humano de crianças, o diretor Rasit Çelikezer criou uma exploração complexa e surpreendente do que significa ser pai.
Muitas pessoas têm o conceito de família assim: casamento + filhos = felicidade, mas nem sempre funciona, é preciso amadurecer a ideia, afinal é uma vida da qual os pais terão responsabilidade, e o importante também é entender que o amor nasce de várias maneiras, no filme Ayse não consegue amar a criança vinda de sabe-se lá de onde, ela rejeita, por isso Cemal não suporta a rotina, sua mulher está mudada e ele acaba buscando um outro caminho para si. Deixa a esposa e o bebê sozinhos.
Mais tarde vemos Can já garotinho e Ayse com o mesmo semblante de descaso com ele, todos os dias sai para trabalhar e o deixa sentado num banco de praça até que o seu expediente termine. Ele não frequenta escola, não tem amigos e pouco fala. Em dado momento o menino decide andar pelas ruas, ele sai marcando com um giz os lugares por onde passa para que consiga voltar antes de sua mãe chegar, mas um dia se atrasa e Ayse volta sozinha para casa, ela se preocupa, mas não demonstra. Ele acaba sendo encontrado e a polícia a interroga. Desse dia em diante ela o deixa em casa. Can passa o dia todo olhando as crianças brincarem.
Desenvolvemos um carinho muito especial por Can, mesmo não recebendo amor ele demonstra pelo olhar sentimentos bons, em várias situações tenta conquistar sua mãe, seja colocando a comida na mesa, ou guardando o dinheiro que ela juntou quando a casa é invadida. Essas coisas aos poucos vão amolecendo o coração de Ayse, pois ela percebe o quanto aquele menino a ama.

Paralelamente vemos Cemal, casado com uma garota rica e mimada, e um trabalho na empresa do sogro. Acontece que essa garota engravida e ele fala para o sogro que isso é impossível, o filho não pode ser dele, só que o homem rudemente faz ele aceitar a situação, e a ambição de Cemal fala mais alto, decide suportar traições, morar numa casa que não é dele, usufruir de um luxo que não lhe traz felicidade e cuidar de uma criança que não é sua, tudo por causa do dinheiro. Não dá para definir o sentimento que temos com este personagem, é uma mistura de raiva e pena.
"Can" é um filme maravilhoso, foi um achado e espero que mais pessoas possam vê-lo e se emocionar com esta história. É lindo de ver a inocência e a rejeição que aos poucos vai dando lugar ao amor. É um longa de roteiro encorpado e que oscila entre passado e presente nos revelando nuances da história.

"Can" é daqueles filmes que geram sentimentos bons, e ao final consequentemente abrimos um sorriso, é tão lindo ver algo puro, um sentimento ruim se transformando em amor. Veja o quanto muda o semblante de Ayse ao descobrir em Can o amor incondicional e verdadeiro. Ser mãe e pai é um papel muito importante, por isso é preciso pensar antes de gerar ou adotar. E quem dera que todas as crianças fossem como Can...

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Paraíso: Esperança (Paradies: Hoffnung)

"Paraíso: Esperança" (2013) é o último filme da trilogia de Ulrich Seidl, que iniciou com "Paraíso: Amor" e em seguida "Paraíso: Fé". A história de Melanie é mais branda, a adolescente de 13 anos passa pelo período das descobertas, portanto ainda carrega a inocência em relação a paixão. A garota é mandada para passar férias em um acampamento especial para jovens com sobrepeso. Entre treinamentos físicos e nutricionais, ela acaba se apaixonando pelo seu médico, um homem 40 anos mais velho. Ao não ser correspondida, sua depressão por se achar repugnante aumenta. Melanie é filha de Teresa, a mulher que foi se aventurar no Quênia, por causa desta viagem é deixada aos cuidados da tia Ana Maria, a fanática religiosa, protagonista do segundo filme. O último se inicia com a tia levando a menina para o acampamento de gordinhos, lá ela conhece outras garotas e conversa sobre sexo, paixão e amor. Dá para perceber o quanto ela é inibida e pura. É o drama de adolescentes que se sentem excluídos da sociedade que exalta o corpo perfeito, e mais ainda sobre solidão, pois é nítido que os pais não ligam para seus filhos, simplesmente os colocam lá a fim de não terem responsabilidades.
Melanie é carente, nesta história os pais são muito ausentes, os adolescentes no acampamento estão à mercê de seus sentimentos, que nesta fase são demasiadamente confusos. O médico dá atenção para a menina, ele conversa, brinca, e com isso ela se apaixona. Em meio a um ambiente rígido ela vê nesse homem um pouco do carinho que precisa. Ele percebe que a garota dá em cima dele, todos os dias se arruma e vai ao consultório. Claro que o código de ética proíbe tal coisa, ficamos indecisos sobre o que o médico sente, mas a cena em que ele resgata Melanie bêbada e a lambe no meio do matagal comprova suas intenções. Só que depois ele prefere se distanciar, e com isso ela se entristece e se inferioriza mais ainda. Um dos pontos mais legais do filme são as conversas entre essas adolescentes no quarto, há uma realidade explícita nestes diálogos.
Os filmes de Ulrich Seidl tem características bem marcantes, como a câmera estática enfatizando a história de maneira direta e crua. "Paraíso: Esperança" é mais ameno, não tem cenas chocantes, não há um final concreto mas passa a mensagem perfeitamente. Esse recurso utilizado pelo diretor faz com que embarquemos na história, mas de maneira distanciada, o que é bom, pois torna o filme totalmente despretensioso.

Indico fortemente a trilogia "Paraíso" de Ulrich Seidl, mesmo com a narrativa não convencional e longos planos estáticos, todas essas peculiaridades só somam com o contexto todo. Há um jeito único no cinema deste diretor, o modo que coloca o corpo em evidência, os sentimentos e os desejos não realizados. Todas as mulheres retratadas almejam o paraíso, mas nessa busca acabam encontrando apenas o inferno, o último, assim como o título sugere, há esperança. Melanie é uma garota que tem muito o que aprender e muito ainda por amar.

Estamos acostumados a ver no cinema pessoas perfeitas, tudo muito exuberante e maravilhoso, o corpo nos filmes de Ulrich são expostos como são, e é engraçado, pois o público comum é visto como algo estranho para o espectador. A ditadura da beleza exclui as pessoas, as fazem crer que são feias e que ninguém vai gostar delas da forma que são. O acampamento que Melanie está indica o quanto isto é ridículo, a cena em que eles cantam a musiquinha "If you're happy and you Know it, clap your fat!", exemplifica. Por fim, vale exaltar a coragem de Ulrich Seidl em retratar aspectos controversos da sociedade.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O Segredo do Grão (La Graine et le Mulet)

"O Segredo do Grão" (2007) é mais um maravilhoso filme de Abdellatif Kechiche (Vênus Negra - 2010), neste a história gira em torno do sessentão Silmane Beiji (Habib Boufares), um homem de feição cansada que enfrenta um divórcio após anos de casamento. Seu emprego no estaleiro vai por água abaixo, pois segundo seu patrão estava atrapalhando a produção, devido a sua lerdeza. Silmane tem uma família grande, muitos filhos do casamento anterior, e uma enteada da relação atual com Latifa (Hatika Karaoui), também descendente de argelinos e dona de um pequeno hotel. A relação entre as famílias não é boa, há muito ciúmes e fofocas. Seu maior sonho é abrir um restaurante num barco, o sentido de sua vida está todo depositado neste sonho, e com ajuda de sua enteada Rym vai realizando aos poucos. Com a indenização que ganha de seu antigo trabalho no estaleiro compra um barco caindo aos pedaços, então surge os problemas burocráticos, são muitas autorizações, correm de lá para cá, e com muito esforço conseguem reformá-lo. Estando tudo em ordem, ele recebe o alvará provisoriamente para que prove que seu negócio pode dar certo, todos são convidados para comer o cuscuz, mas nada é fácil para Silmane.
O cenário desta história se passa na cidade de Sète, no sul da França, as margens do mar mediterrâneo. São duas culturas que se chocam, os imigrantes argelinos e os franceses. Isso é muito enfatizado no hábito das refeições, a cena que exemplifica é quando a família de Silmane come desenfreadamente em um almoço, onde a comida é farta e não há problemas em se usar as mãos, conversar e brigar na mesa, o contraste se dá na lenta burocracia para que ele consiga abrir seu restaurante, e especialmente no dia da inauguração a mistura acontece e a tradição deles é mostrada de verdade. O grão do título é referente a semolina, base preparatória do cuscuz marroquino.
"O Segredo do Grão" é um filme de longos planos que prioriza gestos e olhares. Muito interessante o estilo naturalista de filmagem, os atores interpretam pessoas comuns repletas de conflitos familiares. A câmera focaliza atos corriqueiros, como as refeições e às vezes a câmera não filma quem está falando, mas sim aquele que está chegando para se sentar à mesa, detalhes e minúcias são enquadrados enquanto conversas acontecem.

Todos ajudam Silmane a realizar seu sonho, inclusive sua ex-mulher, que prepara o cuscuz, mas há muito olho gordo e fofocas se o negócio irá dar certo ou não. A família ajuda, mas quem coloca a semente da esperança no coração de Silmane é Rym, há uma força de crescer nesta menina, de ver naquele homem de semblante tão cansado uma centelha de alegria.
Silmane vê que os filhos fazem coisas erradas, especialmente um deles, mas acaba não se intrometendo, o seu desgaste emocional e físico chega a nos cansar também, principalmente na cena em que ele sai a procura de seu filho descabeçado para resgatar o cuscuz do qual levou embora no porta-malas do carro. Ao chegar na casa da mulher de seu filho ela está chorando e sem pausa grita o quanto seu marido é um idiota que não a respeita. Nessa parte a tensão cresce, pois todos no restaurante estão esperando o cuscuz, as filhas de Silmane servem bebidas, e Rym tem a grande ideia de dançar, o grupo de músicos ajudam e então o público vai ao delírio. A garota dá um show, é a força de uma cultura que jamais morrerá. A jovem Hafsia Herzi que interpreta Rym é o grande destaque.

A cena da dança é longa e impressionante, enquanto desesperados procuram um meio de conseguir o cuscuz, Rym dança selvagemente. É interessante, pois às vezes julgamos tanto, no caso as filhas de Silmane falavam mal de Latifa e Rym, mas ao final quem mostrou preocupação com Silmane foram elas. É a tal questão, se dá demasiado valor para laços de sangue, mas os maiores laços são aqueles formados pelo coração. 
O final gera um certo desconforto, mas Rym é o novo tomando conta, ela é a certeza de que tudo irá dar certo. O resultado já não importa, o que é válido é todo o esforço feito.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Yeralti

O cinema turco por si só já tem a característica de contemplação, andamento mais lento e menos diálogos. "Yeralti" (2012) vai além dessa característica, é uma viagem existencial profunda fincada no pessimismo humano.
Baseado livremente no livro "Notas do Subsolo" de Dostoiévski, um aspirante a escritor caminha pela vida de forma modesta, trabalha como servidor público e as pessoas com quem convive não o enxerga, ou preferem não se aproximar, já que ele é um sujeito insuportável, inclusive ele mesmo não se aguenta. É um alguém cheio de manias e filosofias que se ergue perante os outros, detesta tudo ao seu redor e não poupa seus pensamentos, é considerado rude e de extremo mau gosto. Sua ira aumenta quando vê seu colega ganhar fama e prestígio por um livro que escreveu, ele sabe que esse indivíduo roubou as ideias de outra pessoa, e então num jantar começa a cuspir sua raiva acerca da natureza humana. Essa é uma das melhores partes do filme.
O longa tem alguns problemas de desenvolvimento e se torna enfadonho, são apenas planos que focam na mesma coisa por demorados minutos, um jeito de demonstrar reflexão, mas que acaba por se tornar prolixo demais. Prejudica a quem não é familiarizado com a obra mais existencialista de Dostoiévski, portanto se reduz ao público que conhece e já leu o livro. É um filme que propõe pensamentos além das imagens exibidas. O personagem por se sentir inadequado e não concordar com o modo de vida das pessoas teima em ser mau, mas logo retorna ao seu eu e percebe que não tem jeito de mudar o que se é de verdade. Vários pensamentos ruins passam pela sua mente, mas em vão. Isso o perturba e como sua personalidade é irônica acha graça de si mesmo.
"Yeralti" nos convida de forma estranha a desvendar a mentalidade deste homem. É complexo, pois ao mesmo tempo que quer ter amigos não os quer por achar que ninguém está a sua altura, os acham desonestos, e quando se aproxima, tudo o que consegue é afastá-los ainda mais. Ele quer ser herói, mas de repente muda de ideia, deseja ser mau, mas retroage. Então continua na inércia. Extremamente introspectivo é preciso ter um olhar aguçado para as atitudes e os pensamentos do personagem interpretado por Engin Gunaydin, que na maioria das vezes está absorto, ou com um riso irônico nos olhos.

Sinceramente pensei encontrar um personagem mais antipático, que reclamasse mais da humanidade, porém o que vi foi um homem cansado da vida que de alguma maneira tenta se encaixar, mesmo sabendo que seja impossível por causa de seu gênio forte. Não chega a sair do contexto, mas acabou dando um aspecto chato no filme. 
Me vi no homem do subsolo em vários momentos, e me assustei por isso, um dos pontos é na inadequação, o não conseguir disfarçar o desprezo pelo meio em que a hipocrisia reina, e por conta disso ser considerada grosseira ou arrogante, o que só me afasta de tudo por não suportar a realidade. Daí vem a oscilação de sentimentos, dentre eles o ódio de si. Outra coisa é a dúvida acerca de tudo, o que só traz a infelicidade, um vazio enorme e a solidão. Mas como o mestre Dosto dizia: "Só ponho máscara no rosto quando vou a algum baile à fantasia; não sei andar todos os dias pelo mundo com uma máscara pregada na cara". O homem do subsolo é o símbolo de uma existência a margem da sociedade, uma espécie de ressentimento com o mundo que não lhe dá o devido valor enquanto vangloria a quem não merece.

Ser consciente em demasia te torna doente, ainda mais nesta sociedade em que vivemos onde se valoriza o banal e o que importa é considerado esdrúxulo, diante disto o homem do subsolo prefere não agir. Quero enfatizar mais uma vez a cena do jantar com os "amigos", traz verdades desconfortáveis entre ilusões e diálogos sarcásticos do protagonista.
Por mais que o filme tenha um andamento lento e um roteiro não desenvolvido, vale para lembrar de uma das obras mais geniais que existem, a livre adaptação é trazida para os moldes modernos dentro da sociedade turca, mas, que na verdade, serve para qualquer outra do mundo.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

A Papisa Joana (Die Päpstin)

Baseado no best-seller escrito pela americana Donna Woolfolk Cross sobre a lendária história da única mulher que teria sido Papisa, entre os anos 885 e 858 DC.
Johanna von Ingelheim (Johanna Wokalek), nascida na pobreza numa época de trevas, onde ser mulher era quase uma maldição, usou de todos os esquemas para poder dar azo à sua sede de conhecimento: ensinada pelo irmão Matthew a ler com apenas seis anos, cedo acaba por ser escolhida pela escola religiosa na Catedral de Dorstadt, onde se torna a única menina estudante. Mais tarde conhece o afeto em Gerold (David Wenham), que a acolheu como filha em sua casa, mas cuja relação, com os anos se transforma em amor. Depois de ser obrigada a casar, acaba por fugir e, disfarçada de homem, entra para o mosteiro de Fulda, onde durante vários anos, esconde a sua verdadeira identidade, tornando-se Johannes Anglicus. Através dos seus grandes conhecimentos de medicina tradicional, conquista o respeito e confiança de todos e, assim seguindo caminho para Roma acaba por salvar a vida do papa (John Goodman), de quem se torna íntima e confidente. Guardando o terrível segredo sobre a sua verdadeira identidade, termina por ascender a pontífice máximo da igreja católica, mas o reencontro com Gerold ditará o seu trágico destino.
Se é fato ou lenda, pouco importa, o incrível do filme é mostrar a religião e o seu poder perante as pessoas, as intolerâncias e o machismo. E por mais que séculos se passem continuam a gerar burburinhos. No século IX não era tão incomum uma mulher se vestir de homem para poder adquirir conhecimento, ou apenas para aprender a ler e a escrever, já que as primeiras universidades eram administradas pelas igrejas, e estas barravam as mulheres. A história coincide com um período de grande confusão na diocese de Roma e Joana teria ocupado o cargo entre o Papa Leão IV e o Papa Bento II. Desde pequena Joana era muito curiosa, aprendeu latim com seu irmão, grego e filosofia com seu tutor, e com a mãe os nomes das ervas, no que mais adiante a ajudaria em medicina, pois foi posta para traduzir os livros de Hipócrates. Muito inteligente e astuta conseguiu se passar por Johannes Anglicus e residiu algum tempo em um mosteiro, onde seria descoberta por um bispo, e este a ajudado fugir.

Se estabelecendo em Roma depois de uma grande peregrinação, não demorou para que sua fama na arte de curar ficasse tão conhecida, deste modo foi chamada para tratar do papa Leão IV, que rapidamente se afeiçoou a Johannes, sua sinceridade e humildade o cativou e o nomeou como um porta-voz. Muitos estavam de olho e queriam o título de papa, e assim que ele morreu foi feita nova eleição, cada membro deu um nome, inclusive o de Johannes. O povo o escolheu, e devido a sua grande aproximação ficou conhecido como Papa Populi. Algum tempo depois acaba engravidando de Gerold, e apesar de ser fácil esconder a barriga por causa de suas vestimentas, foi diante a inúmeras pessoas, numa procissão, que sente as dores do parto, e seu segredo é revelado. Há algumas divergências sobre a descoberta e seu fim. Algumas versões dizem que foi apedrejada, e outras que morreu durante o parto enquanto o povo não acreditava no que via e alguns cardeais gritavam milagre.
Muitas coisas são questionáveis dentro da religião católica, várias histórias da bíblia podem se passar por meras ficções. Várias passagens são tão absurdas quanto surreais, não seria tão espantoso que uma mulher disfarçada de homem num período turbulento em Roma conseguisse conquistar o papado.

É um filme interessante e coloca em xeque várias questões que querendo ou não ainda continuam mesmo que mascaradas. O poder que a igreja detém sobre as pessoas e as obscuridades em torno.
"A Papisa Joana" segue em tons épicos com uma linda ambientação e um roteiro enxuto e competente. A personagem em todas as fases cativa, sendo assim se faz um longa curioso e muito questionador. 

A Papisa foi imortalizada, no século XI, numa das cartas do Tarot de Marselha, representando a sabedoria, o conhecimento, a intuição e a chave dos grandes mistérios.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

A Menina que Roubava Livros (The Book Thief)

O livro de Markus Zusak sem dúvidas se tornou um clássico, traz uma triste, porém linda história sobre a inocência e a humanidade em meio a destruição. A adaptação para o cinema se fez fiel e deu à história o mesmo sentimento que o livro causa, aquele aperto no peito que nos leva as lágrimas.
Vale destacar que o diretor Brian Percival fez ótimos trabalhos em séries de TV, com a mais conhecida "Downton Abbey" e a primorosa e super elogiada "North and South". Trazer um livro tão querido para as telas de cinema foi um risco, mas a história foi muito bem ambientada e conduzida. Começando pelo narrador onisciente: a morte, assim como no livro já nos desperta um interesse, a voz masculina tem um tom irônico e ao mesmo tempo misterioso, ela disserta ao longo sobre as situações cruéis, as imprevisibilidades, e por fim não nos compreende e confessa o quanto se assusta diante dos humanos. A morte não se interessa pelas vidas que irá ceifar, com rara exceção se interessou pela garotinha Liesel Meminger, e então decidiu acompanhá-la. A guerra e a morte estão sempre lado a lado, e a guerra da Alemanha das décadas de 1930 e 1940 era o lugar perfeito para que ficassem ainda mais juntas.
Sophie Nélisse (Monsieur Lazhar - 2011) deu vida a Liesel, e com muita sensibilidade a personagem esbanja inocência, esperteza e a humanidade que transborda de seus belos olhos. Depois de ver seu irmão morrer nos braços da sua mãe comunista, a menina foi deixada aos cuidados de uma nova família, Hans Hubermann, um pintor desempregado e muito bondoso, e a rabugenta Rosa Hubermann. Na mala ela trazia o manual do coveiro, do qual roubara no enterro de seu irmão, este seria o primeiro de tantos livros que Liesel roubaria.
Hans, deliciosamente interpretado pelo sempre descabelado Geoffrey Rush ensina aos poucos a garota ler, ela anota todas as palavras novas que ouve e assim sua paixão pela leitura só tende a crescer. As palavras podem destruir, assim como construir, enquanto de um lado palavras de um enfurecido Hitler alimentava uma nação amedrontada, por outro Liesel toda vez que encontrava com as palavras conseguia afirmar sua existência. E isso aumenta quando o novo hóspede da casa, Max, um judeu refugiado, se esconde no porão. Hans tem uma dívida muito grande com o pai do rapaz, e portanto o ajuda. Ele a incentiva a escrever e a cultivar a imaginação, e quando fica doente, Liesel lê em voz alta para que ele se recupere de alguma forma. Há outros personagens marcantes também, como seu amigo Rudy, que vive lhe pedindo um beijo, e a mulher do prefeito que se afeiçoa a menina por conta do seu gosto pela leitura, inclusive é da casa dela que Liesel rouba os livros para ler para seu amigo Max.

É incrível, há centenas de filmes sobre o nazismo, e mesmo assim toda vez traz algo de novo e de assustador. É importante lembrar desta horrorosa parte da história que hoje envergonha não só os alemães, mas como o mundo todo. Na guerra não há vencedores, apenas mortes. E como no filme em que a própria morte narra, os humanos me assombram.
A trilha sonora traz o aclamado John Williams, conhecido pelas trilhas clássicas de Star Wars, Super Man, Indiana Jones, Um Violonista no Telhado. A música dá leveza a vários momentos pesados e tensos, e acaba por nos emocionar também. Há várias passagens em que Hans toca um velho acordeão, cujas canções são como abraços. As cenas em que Liesel e Rudy estão juntos são notáveis, a inocência e a pureza contrastando com o horror e a desumanidade em torno deles.

"A Menina que Roubava Livros" é um filme triste, principalmente nas cenas de destruição, com certeza traz muitos sentimentos dos quais esquecemos, como o de passar amor para alguém de grande importância, Liesel a todo momento esbanja carinho, seja com os doces olhares, ou com as suas palavras. Ela nos faz pensar na tal da humanidade.
Mesmo deixando alguns detalhes de fora, no todo é uma linda e fiel adaptação, vale a pena ver esta história ganhar vida no cinema!

"É só uma pequena história, na verdade, sobre, entre tantas outras coisas: Uma menina, algumas palavras, um acordeonista, uns alemães fanáticos, um lutador judeu, e uma porção de roubos. Vi três vezes a menina que roubava livros."

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Vênus Negra (Vénus Noire)

Abdellatif Kechiche é um diretor primoroso, recentemente seu nome ganhou notoriedade com o "Azul é a Cor Mais Quente", mas seus filmes anteriores são tão bons quanto.
"Vênus Negra" (2010) baseado em fatos reais retrata a sordidez humana. Saartjie, a Vênus Hotentote, nascida em 1789 às margens do Rio Gamtoos, no atual Cabo Oriental, na África do Sul, é pertencente à família Khoisan, mais conhecida como bosquímanos. Uma das características das mulheres bosquímanas era a protuberância das nádegas, por excesso de gordura, fenômeno conhecido como esteatopigia. Ela foi serva da família Baartman, agricultores holandeses que moravam nas proximidades da Cidade do Cabo. Convidada e iludida para se apresentar em espetáculos em Londres a fim de adquirir dinheiro acaba sendo humilhada de diversas maneiras.
A atriz cubana Yahima Torres deu vida a inocente Saartjie, seus olhares e silêncios nos dizem e emocionam muito, descobrimos um pouco dessa mulher que era doce, e que principalmente necessitava de afeto. Saartjie era exibida como um animal, uma aberração selvagem vinda da África, um lugar considerado extremamente exótico para os padrões europeus da época. As cenas são exibidas em longos planos, mostrando cada detalhe da apresentação, onde a mulher é tirada de uma jaula e exposta ao público curioso. Ela dança, toca e é apalpada, fato que entristece muito Saartjie. Por causa de suas características físicas avantajadas e o tal "avental hotentote" (pequenos lábios vaginais muito desenvolvidos) foi obrigada a submeter-se em terríveis situações.
A cena inicial já revela o racismo mascarado sob a forma de ciência. Uma aula de anatomia que acontece na Paris do começo do século XIX. Na ocasião, são comparados atributos físicos de uma mulher negra com macacos. O médico enfatiza: "Eu nunca vi a cabeça de um ser humano tão parecida com a de um macaco". Estudiosos acreditavam que os hotentote estavam muito próximos da raiz da espécie humana. E quando ficam sabendo das apresentações em Paris foram oferecer dinheiro em troca dela ser objeto de estudos durante o dia todo, mas Saartjie tinha vergonha de se despir completamente por conta de suas partes íntimas, e era exatamente isso que os estudiosos precisavam para saber se ela era uma hotentote legítima. Muito humilhante e desumano a forma como a tratam. É a perversidade humana em seu mais alto grau. Nesse momento ela já estava com outro explorador, pois Caezar irritado com Saartjie a vendeu para Réaux, que por sua vez era muito mais agressivo e não a poupava nas apresentações, sendo tocada com muita violência.

Muitas vezes Saartjie dizia que não era escrava, que recebia salário e que o que fazia era uma representação, como no teatro, fora dali era livre. Sua submissão era demais, dizia ser burra, mas a verdade é que ela não tinha para onde correr, e por isso aceitava sua bizarra situação. O homem em quem confiou a colocou para fora de sua vida em razão do dinheiro que foi perdido por ela não querer mostrar os lábios vaginais. Posta em outras mãos foi violentamente agredida, tanto fisicamente como moralmente, sua imagem de mulher se destruiu por completo.
Os olhos de Saartjie demonstram uma tristeza e um vazio imensurável, além de fragilidade e impotência diante aqueles ao seu redor. O filme faz questão de mostrar suas apresentações por inteiro a fim de que retrate a desumanidade na espécie humana. E quando se pensa que nada poderia piorar Saartjie é deixada a mercê da vida, acaba se prostituindo, adoece e mais uma vez é jogada na rua, sem ter mais forças para ir adiante, falece, mas nem assim consegue ter paz. Réaux a encontra e a vende para os estudiosos de Paris, que fazem um modelo a partir de seu corpo. Seus restos mortais (esqueleto, órgãos genitais e cérebro) ficaram expostos no Museu do Homem da França, até 1985. Houve apelos esporádicos pela devolução dos seus restos mortais, e só em 2002 foram entregues à África do Sul.
"Vênus Negra" mostra de forma contundente o racismo científico, um exemplo é a ideia de que o crânio se assemelhava com o do macaco, e de que vários aspectos da fisionomia eram "inferiores". Os europeus se achavam e desejavam expor suas teorias. No século XIX o racismo e a eugenia eram muito explícitas e ganharam força. A exotização da mulher negra nasceu daí.

Muito se diz que os tempos são outros, mas querendo ou não o exótico hoje em dia é vendido sob formas que aguçam a curiosidade. Uma amostra são os pacotes turísticos vendidos mundo afora para se conhecer as favelas do Brasil, ou as mulatas do carnaval que se exibem sem pudor algum, e cuja imagem é vendida como o símbolo do país.
Os períodos históricos servem para analisarmos o racismo, no século XIX era mascarado pela ciência, muitas ideias se difundiram e viraram verdades que predominam até hoje. Na atualidade é algo velado, mas a marginalização permanece, assim como o desprezo e a luta pela igualdade.
"Vênus Negra" é um filme chocante que mostra até onde vai a ignorância do ser humano em explorar outro ser humano que foge dos padrões ditos perfeitos.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Temporário 12 (Short Term 12)

"Short Term 12" é um filme independente que foge do esteriótipo cool, é sincero, real, e extremamente humano.
Gracie (Brie Larson) e Mason (John Gallagher Jr.), trabalham num lar temporário de acolhimento a jovens, cuja vida não é fácil, a grande parte por causa de problemas com os pais. A maioria tem tendência suicida e Gracie ao mesmo tempo que é doce, conduz o lugar de maneira responsável, a fim de que nenhum desses adolescentes possam fugir ou fazer mal a si próprios. Dentre os jovens, duas histórias se sobressaem, Marcus (Keith Stanfield), que logo abandonará o lar, pois irá fazer 18 anos, é um garoto quieto e coloca toda sua revolta em letras de rap, e Jayden, com 14 anos, que chega já com um histórico de várias tentativas suicidas. Revoltada e sempre desenhando desenvolve conforme o desenrolar um grande laço com Gracie, que assim como os jovens retratados também teve um passado bem pesado, e por isso nutre traumas horríveis. Quando engravida de Mason entra num dilema pessoal entre fazer um aborto, ou arcar com a responsabilidade de ser mãe. O filme todo gira em cima de Gracie, os personagens ao redor em vários momentos fazem com que ela lide com os seus problemas do passado.
"Short Term 12" retrata adolescentes que passam por tortuosos caminhos na vida, e que encontram nesse lar temporário um acolhimento do qual necessitam para amadurecer. Marcus sente-se amedrontado quando chega perto de sua partida, não sabe o que irá encontrar lá fora, mas a base dada neste lugar faz com que o jovem enxergue um futuro para si, pois analisando seus traumas do passado e as situações de desamor, consequentemente sente-se esperançoso em conseguir algo bom para seu futuro. Um dos momentos mais emocionantes e que nos tira todas as palavras é quando ele canta seu rap jogando tudo para fora, o desespero, a revolta, a carência afetiva e o abandono. Outro momento bem reflexivo é quando Jayden lê para Gracie uma história que fez, ela conta sobre um polvo que arranca seus próprios tentáculos para ter a amizade do tubarão, como o polvo nunca teve um amigo pensou que não haveria problemas em arrancar um de seus oito tentáculos, mas o tubarão não satisfeito todos os dias lhe pedia outro tentáculo, e mais outro...
É um drama que toca em pontos sensíveis, e por ser tão real inevitavelmente nos emociona, o desenvolvimento dos personagens é de extrema naturalidade. Realmente aborda o lado mais humano.

Baseado num curta homônimo igualmente realizado e escrito por Destin Cretton, "Short Term 12" tem algo que raramente vemos nos filmes americanos convencionais, ele é feito de coração, é um filme que conversa conosco, que nos permite adentrar na vida dos personagens, e mesmo que a história destes não seja mostrada em detalhes, entendemos as dificuldades de cada um, porque assim como eles todos nós buscamos um lugarzinho neste mundo, todos necessitamos de carinho, e sabemos que uma palavra na hora certa move montanhas.
Gracie se fechou por causa de seu tenso passado com o pai, ela não se permitia pensar em soluções para se livrar desse peso, não conversava com ninguém, e quando engravidou a dúvida acerca de ter responsabilidade sobre outro ser humano lhe atingiu em cheio, mas claro que ela seria uma excelente mãe, bastava olhar ao seu redor e ver os jovens do lar, todos carinhosamente bem tratados e com esperança no olhar.
O final todo arrumado nos dá uma ótima sensação, daquela de que podemos ir adiante mesmo que tenhamos medo do que virá.

"Short Term 12" como já dito é um longa sincero, e revela uma grande atriz, Brie Larson, que deu alma para uma linda personagem, entre suas peculiaridades, explosões de choro, olhares preocupados, e uma doçura como poucas.
É filme para se recomendar, com certeza um dos melhores do cinema independente Norte-americano.

"Short Term 12" nos faz lembrar de olhar para o outro com mais carinho e entender que existe um mundo diferente em cada ser humano. É uma ótima opção para renovarmos nossa esperança na humanidade.