"Sempre pensei que o que todos concordávamos era naquilo que a gente vê, mas isso é besteira, porque o que vejo não é necessariamente o que você vê."
"Lucky" (2017) marca a estreia na direção do ator John Carroll Lynch, um filme-testamento do ícone Harry Dean Stanton - que faleceu em setembro de 2017, extremamente sincero ao transmitir a sensação da finitude da vida, cru e sem floreios acompanhamos os lentos passos do protagonista que se mistura à realidade do ator, Stanton interpretou a si mesmo, um retrato doloroso, porém magnifico de um ser humano que ostenta seus 90 anos e que tem a consciência de todo seu percurso e sabe que a qualquer instante irá partir. Um adeus poético e genuíno.
Depois de fumar por muito mais tempo que todos os seus conterrâneos, o velho ateu Lucky (Harry Dean Stanton), de 90 anos, está no fim de seus dias, apenas esperando a morte. Vivendo em uma cidade no deserto, ele inicia sua última atividade antes de partir: se autoexplorar para enfim encontrar iluminação.
A narrativa é simples, mas propõe uma ótima reflexão sobre a solidão, a velhice e a morte, observamos a fragilidade do corpo, as manias, o tédio, as conversas com os amigos, os lugares por quais passa, ele caminha o dia todo e se mantém ativo, na hora que acorda faz seu ritual de exercícios, se arruma e sai, não há muito o que fazer e sempre para no bar para tomar sua Bloody Mary e jogar conversa fora, as pessoas param para escutar as outras, se entretêm com as histórias e se preocupam com Lucky. Um dia ele sofre uma queda e daí para frente começa a pensar mais no significado de estar vivo e inevitavelmente sentir medo da morte, a cena em que vai se consultar é realmente maravilhosa, o médico lhe diz que está com a saúde boa apesar de fumar e que não há mais o que fazer, exames não dirão nada e que se estivesse com alguma coisa o já teria matado, que estar pleno com 90 anos é de uma sorte que a grande maioria não têm, muitos adoecem, se acidentam e não chegam nessa fase da vida, não possuem a chance de olhar para trás, de notarem as mudanças físicas e psicológicas e estarem tão próximos da morte e ao mesmo tempo com tanta ansiedade para viver, Lucky depois disso encara as situações com outro olhar e repensa sua vida. Ele nunca casou, não teve filhos, passou por momentos críticos, vivenciou a guerra, em vários instantes é questionado sobre a solidão e ele rebate dizendo que há diferença entre estar sozinho e ser solitário. Há ternura no desenvolvimento do longa e Lucky não é uma pessoa fácil, é briguento e ranzinza, mas carrega em si a espontaneidade que nos tira sorrisos e lágrimas.
O personagem vai se redescobrindo e vamos juntos nesta jornada, seus olhares transmitem as sensações que sente, os diálogos são ótimos e refletem a compreensão que aos poucos chega, a participação de David Lynch é primordial nesta questão, além de estarem novamente trabalhando juntos, Howard, o personagem de Lynch também é só e lamenta o sumiço de seu jabuti, Presidente Roosevelt, ele é alvo de chacotas, mas o amigo o escuta com afinco, pois se comove pelo tempo de vida do animal em comparação a dele, Howard lamenta sua solidão, se desespera e deseja encontrar o jabuti, porém com o passar do tempo entende e aceita, as conversas são envoltas na surrealidade, mas trazem pensamentos interessantes acerca da morte. Outra aparição interessante é de Tom Skerrit, interpretando um veterano de guerra que conta uma história que testemunhou em solo japonês, a inusitada reação de uma garotinha diante da morte, com certeza um momento que fisga nosso protagonista, que desperta e o ilumina.
Há várias cenas emocionantes, como a que Harry canta "Volver, Volver" numa festa de aniversário de uma família latina, aliás o filme conta com uma bela trilha sonora, como "El Llanto De Mi Madre" de Lydia Mendoza e "I See a Darkness" de Johnny Cash, que conversam com toda a aura do filme.
"Lucky" nos mostra que nada é permanente, Harry interpreta a si mesmo e desafia a morte a cada dia, sabe que ela está à espreita, é consciente disso e ao fim sorri, não tem como não se comover, ele olha diretamente para a câmera com olhos marejados e abre um sorriso, uma sensação de liberdade em aceitar o inevitável e saber o quão sortudo foi chegar até esse ponto. A velhice e tudo que a acompanha é retratada com honestidade e delicadeza, a lucidez de encarar o fim é magistral neste longa. Uma despedida tocante de Harry Dean Stanton e um começo brilhante de John Carroll Lynch.