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quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Corpo e Alma (Teströl és Lélekröl)

"Corpo e Alma" (2017) dirigido pela húngara Ildikó Enyedi (Simon Mágus - 1999) é um filme que mexe com os sentidos, uma obra bela que mescla romance e fantasia com doses caprichadas de originalidade.
Uma história de amor que começou em sonho, literalmente. Numa dualidade entre o dormir e o acordar, duas pessoas que não se conhecem têm sonhos exatamente iguais, e acabam se encontrando diariamente todas as noites nesse mundo paralelo de fantasia. Quando chega a hora de se encontrarem de verdade, a situação se mostra ainda mais complexa.
A história se passa num ambiente pesado, um abatedouro, e por incrível que pareça nasce algo desse lugar, um amor entre duas pessoas completamente sozinhas e incapazes de se conectar com as pessoas, Endre (Géza Morcsányi) administra o abatedouro e lida com a dificuldade de uma paralisia no braço esquerdo, um dia olhando pela sua janela vê Maria (Alexandra Borbély), que sozinha espera o intervalo passar para voltar ao trabalho, ela possui limitações e várias manias, não cria relações, não permite contato físico e tudo precisa estar milimetricamente perfeito, os dois trocam olhares, mas a realidade é confusa para a aproximação. É dentro dos sonhos que tudo acontece: um cervo e uma cerva caminhando pela floresta gelada. Por ocasião, em uma consulta psicológica da empresa, descobrem sonhar o mesmo e daí o desenrolar torna-se curioso e poético, Endre e Maria ficam entusiasmados pela descoberta e dia após dia se encontram para revelar o sonho e sorrirem diante ao fato de ser o mesmo, cervos andando pela floresta, mas conforme a relação vai se delineando e desejos vêm à tona, os sonhos dão uma parada e a realidade se torna ameaçadora, Endre é fechado e tolhido e Maria sofre por não saber o que está sentindo, ela parece ter a síndrome de asperger, seu comportamento frio e robótico não ajuda e Endre fica perturbado por não entendê-la. 
As cenas do abatedouro choca-se com o teor lírico do longa, algumas delas demonstra passo a passo do procedimento, vísceras e sangue dominam a tela, uma abordagem chocante e real, o trabalho ali é brutal, há um diálogo entre Endre e um entrevistado para o emprego em que ele pergunta o que sente por aqueles animais que processam ali, e o outro responde que não pensa nada e Endre devolve dizendo que se ele não sente pena não deve trabalhar lá, pois terá uma depressão. Não há questionamentos sobre o assunto, o filme expõe a rotina e fica por conta de cada um o que sentir vendo as imagens. Há um recado nos créditos finais que diz que alguns animais foram prejudicados durante a filmagem, mas nenhum por conta do filme, e que apenas documentaram a rotina num abatedouro. Diante desse cenário impróprio para criar qualquer tipo de elo, eis que Endre e Maria se conectam, surgindo primeiro no universo dos sonhos para então a realidade, tanto um como o outro terão que descobrir como ir adiante, Endre reavivando o que há muito deixou para trás e Maria aprendendo a sentir a si mesma e as sensações que a vida oferece.

Com ritmo lento e permeado de silêncios, os detalhes ganham força monumental, as imagens transmitem os sentimentos, a descoberta do amor é delicada e inusitada, Maria é uma pessoa que não consegue interagir, não entende as sensações e é completamente lógica em sua vida, aos poucos ao vivenciar as experiências que a vida lhe proporciona aprende que nem tudo precisa ser assim, até porque amar alguém nunca é uma conta exata, é repleta de diferenças e nuances, como o final exemplifica. Endre também redescobre-se, pois afastado de envolvimentos e fechado em si por conta da deficiência não esperava que sua alma pudesse ser afetada por outra, e no universo dos sonhos tanto um como o outro se encontram, a partir dessa bela coincidência as barreiras devagar vão sendo quebradas.

Não é fácil se conectar com outro ser humano, cada um enxerga a vida de uma forma, tem a sua realidade e para romper bloqueios requer muito empenho e querer, quando o sentimento ultrapassa o entendimento e começa a habitar um universo mais onírico, tudo se desenvolve melhor e ajuda no contato verdadeiro, assim foi com Endre e Maria que entre fascinação e dor se unem.
"Corpo e Alma" desenvolve uma narrativa original que mescla o real e o fantástico sob uma perspectiva peculiar e incômoda, o ambiente pesado e frio contrapondo com a sutileza dos sonhos e descobertas cotidianas gera sensações variadas que ora encanta, ora repele, mas reflete o amor e a sua capacidade de modificação e descobertas.
Vale destacar a trilha sonora com as canções "What He Wrote" e "My Manic and I", de Laura Marling. 

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