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sábado, 18 de abril de 2020

O Poço (El Hoyo) / A Casa (Hogar)

Segue a resenha de dois filmes espanhóis disponibilizados pela Netflix, inclusive os mais vistos do streaming, e não é à toa, já que tocam em temas essenciais, especialmente porque dialogam com a atualidade sombria e incerta em que estamos vivendo, desigualdade social, desemprego, isolamento, ambição desenfreada, conflitos sociais, etc, temas que valem a pena refletir e que fazem um paralelo profundo com a realidade.

"Existem três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem."

"O Poço" (2020) dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia é um filme essencial, principalmente por causa da situação atual em que vivemos, ele retrata de forma cru e provocativa o quanto o ser humano se torna uma besta quando enclausurado necessitando sobreviver, repleto de metáforas e simbolismos, mas também direto em diversos momentos, não é fácil acompanhar o lado perverso e faminto da sociedade, a ambição desvairada e a falta de empatia e humanidade, o caos obviamente se instala usando artifícios que fazem o espectador refletir na sua própria condição, no meio em que está inserido e na sociedade em geral.  
Dentro de um sistema prisional vertical, os presos são designados para um determinado nível e forçados a racionar alimentos a partir de uma plataforma que se move entre os andares. Uma alegoria social sobre a humanidade em sua forma mais sombria e faminta.
Goreng (Ivan Massagué) acorda e depara-se com uma situação desconfortável, ele está preso numa espécie de prisão que possui um poço infindável, do qual uma plataforma se desloca levando comida entre os andares, sua companhia é o estranho e escroto Trimagasi (Zorion Eguileor), na parede o número é o 48 e segundo calcula vai até o 132, a dupla no início trava uma troca de diálogo interessante e aos poucos descobrimos mais sobre o lugar, o funcionamento acontece a partir do nível zero com a plataforma abarrotada de alimentos, ela vai descendo e os confinados comem o quanto querem até que ela vá para o próximo, sendo proibido guardar qualquer comida consigo, se isso ocorrer imediatamente o local esquenta ou esfria, Goreng escolheu entrar nesse experimento por vontade própria com a intenção de parar de fumar e levou consigo o livro "Dom Quixote", já seu companheiro escolheu levar uma faca auto-afiante, o que indica que se precisar sobreviver tem uma aliada. O banquete servido daria para todos se alimentarem, mas o que acontece é que dominados pela fúria, ambição e medo se empaturram fazendo com que não sobre absolutamente nada para os andares inferiores, o que gera violência, caos e morte. Goreng de tempos em tempos se muda de andar e experimenta tanto a tranquilidade de ter o que comer quanto a dor da fome, quando ele encontra Iomoguiri (Antonia San Juan), uma das administradoras do local ela lhe diz que a ideia do experimento era perfeita, mas que as pessoas estragaram tudo e tenta convencer os que estão no andar de baixo a racionar para que chegue alimento até o final do poço, mas obviamente cada um pensa somente em si e devora todas as comidas. Esse pensamento de dividir entra na mente de Goreng e obcecado com Miharu (Alexandra Masangkay), a estranha personagem que desce na plataforma em meio a comida para tentar encontrar sua filha e também por causa do próximo companheiro em outro andar, Baharat (Emilio Buale), que está a apenas seis andares do topo, se afia ao ideal de ir descendo nível por nível convencendo que comam somente o necessário, obviamente a violência entra em cena e traz à tona o animalesco no seu ponto mais alto. O filme é excelente em manter o espectador curioso e aflito, mas especialmente acerta ao incutir reflexões particulares a cada um, seja elas de cunho religioso, político-social, ou com mensagens de esperança e transformação em seu final, são simbolismos que afetam de maneiras diferentes e ganham camadas profundas. 
"O Poço" revela um sistema de isolamento em que é inviável a ação coletiva e quando essa regra é quebrada para acontecer uma possível transformação se dá através da violência e muito sangue, dai a frase: "a solidariedade nunca é espontânea". Uma potente crítica a diferença de classes, onde a ganância e a indiferença do topo prejudica quem está muito mais abaixo, por exemplo, ficamos sabendo do número real de andares lá pelo fim, ou seja, a invisibilidade da extrema miséria que acaba indo pelo único caminho, o da violência e morte. Sem dúvidas, uma obra para ser assistida outras vezes para captar ainda mais nuances que conversam com a realidade. Filmaço!

"A Casa" (2020) dirigido por Àlex Pastor e David Pastor (Vírus - 2009) é um suspense magnético que aborda de forma primorosa a obsessão e a paranoia pelo poder e sucesso. 
Javier Muñoz (Javier Gutiérrez) é um executivo desempregado que é forçado a vender seu apartamento. Quando ele descobrir que ainda tem as chaves, ficará obcecado pela família que agora mora lá e decidirá recuperar a vida que perdeu, a qualquer preço.
O protagonista é um homem que não se conforma com sua atual condição, antes um publicitário de respeito, agora um reles homem sujeito a qualquer tipo de trabalho, vide o momento em que ele não percebe estar sendo designado para um estágio não remunerado por um antigo colega, essas situações humilhantes vão se aglomerando e Javier vai as guardando de modo frio, principalmente quando é obrigado a se mudar por não poder bancar mais seu luxuoso apartamento, a sua esposa não vê problema em se mudar para um lugar mais humilde e seu filho é retratado como um menino retraído e isolado do resto. Acompanhamos então a recusa de Javier a seguir um outro tipo de vida, primeiro que ele mente em relação a vender seu precioso carro e começa a stalkear os novos moradores de seu adorado apartamento. Acontece que Javier ainda possui as chaves desse local, pois quando despediu em seu carro a empregada ela as jogou em cima dele, diante desse cenário não pensa duas vezes e espera toda a família sair e se infiltra na casa alheia. Começa a surgir sentimentos de inveja e obsessão, Javier se adapta a rotina da família e capta as fragilidades e começa a seguir Tomás (Mario Casas), se aproxima dele no grupo do AA e mente, se torna amigável e confiável, nesse meio tempo cada vez mais se familiariza e continua a adentrar o apartamento, arquiteta intrigas e deixa a sua própria família à mercê, sendo indiferente a sua esposa e filho. Ele cria seu roteiro e é fiel a suas paranoias, brinca com a vida do outro, seu desejo é a posição de poder e se aproxima do lado que está no topo. O desenrolar é permeado por cenas tensas e que incutem pensamentos acerca da moral, a não aceitação de um homem antes bem remunerado - talvez nem tenha sido grande em sua profissão, o que tudo indica é que teve sorte e boas relações - tendo que lidar com a realidade palpável de trabalhar para sobreviver. Ele não aceita esse cenário e diante das circunstâncias seu desejo é ascender e para isso pouco importa os entraves. É frio, hediondo e execrável, a pessoa que experimenta estar lá em cima e cultiva em si a ambição e cobiça ávida jamais aceitaria estar abaixo. Sua mente não trabalha nesse universo. O filme causa polêmica porque não tem um desfecho julgador e que dê lições, simplesmente esse tipo de pessoa existe aos montes e raramente se dá mal, acumula-se relações, troca de favores e permanece nesse lugar mesmo que dê sinais de sempre haver transtornos, como a ótima cena final da torneira pingando.
"A Casa" é uma obra que retrata o cerne da inescrupulosidade, e por isso que é tão incômodo e provocativo, nosso desejo de juiz vem à tona, mas claramente sabemos que a justiça não existe para essas pessoas. Sem dúvidas, um ótimo exemplar para evidenciar o quão doentio é a ânsia que domina a ganância e a sede do poder de estar acima sem se importar com quem está ao seu lado, mesmo que essa pessoa seja o seu próximo mais próximo. Para pensar e muito!

Um comentário:

  1. Como citei em outra postagem sua, eu não gostei de "O Poço".

    Ainda pretendo ver "A Casa".

    O melhor que vi dos irmãos Pastor foi "Os Últimos Dias". Achei "Vírus" apenas razoável.

    Abraço

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