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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Sinfonia da Necrópole

"Todas as pessoas morrerão sozinhas, infelizes como um cão sarnento. A vida é amargura, para quê tanto tormento para virar poeira ao vento e terminar na cova escura."

"Sinfonia da Necrópole" (2014) dirigido por Juliana Rojas (Trabalhar Cansa - 2011) traz uma proposta ousada e inovadora dentro da cinematografia brasileira, é um musical/romance com uma abordagem cômica e ainda assim crítica e reflexiva sobre a urbanização de um cemitério, além disso a trama conversa um pouco com o terror e a fantasia, mas toda a aura envolvendo o cemitério é natural e comum, não há aquela impressão de um local obscuro e que gera sentimentos ruins, vamos nos familiarizando com os personagens e entendendo a dinâmica que está acontecendo, mas também não deixa de dissertar sobre a finitude da vida.
O jovem aprendiz de coveiro Deodato (Eduardo Gomes) está com seu emprego em risco. Os outros coveiros duvidam de sua capacidade para o trabalho. Seu tio Jaca (Paulo Jordão) tenta sensibilizá-lo para a função, mas é inútil: o trabalho aflige a Deodato, que tem aspirações artísticas. Prefere tocar o órgão da igreja escondido e vagar pelo cemitério escrevendo poemas. Após desmaiar durante um dos enterros, ele é chamado à diretoria, onde é confrontado por Aloizio (Hugo de Villavicenzio), o administrador do cemitério.
Deodato é um cara sensível e medroso, não gosta do trabalho como coveiro, porém esforça-se para não desagradar o tio, que lhe arranjou o emprego, ele tem alma de poeta e se desarranja quando precisa lidar diretamente com os defuntos, essa realidade muda quando Jaqueline (Luciana Paes), uma funcionária do serviço funerário é contratada para verticalizar a necrópole a fim de modernizar e abrir mais espaço para novos túmulos, assim gerando mais dinheiro. Ela chama Deodato para ajudá-la, fazem um inventário sobre o estado dos túmulos e vão atrás dos familiares para realizarem o remanejamento. Jaqueline é firme e gosta do que faz, joga uma conversa sobre conforto e modernização, e por fim oferece dinheiro e os familiares acabam aceitando. Jaqueline lida com a situação de forma tão prática que assusta, mas isso parece não incomodar Deodato que se apaixona por ela. Os dois são opostos, mas se dão bem e convencem pela naturalidade, entre tudo isso os números musicais são encaixados perfeitamente com as cenas, as letras são elaboradas e inteligentes, tiram vários sorrisos e lágrimas ao decorrer. As interpretações têm tom teatral e evidenciam essa aura despojada, é uma mistura inusitada que deu certo.

Interessante a crítica que o longa faz à maneira como lidam com a ampliação do cemitério, a reforma e a sua verticalização devido o crescimento das cidades, isso perturba Deodato que sensível alucina com os mortos vindo lhe pedir ajuda para não mexerem em seus túmulos. Jaqueline representa toda a frieza que seu ofício precisa ter, o olhar analítico e preciso de mercado, para ela o cemitério está longe de ser um local assombrado, mas para Deodato remover os restos mortais de túmulos abandonados é um desrespeito. Com a grande demanda falta lugar para os mortos, a verticalização parece ser a grande solução e o grande negócio atual para o mercado funerário. 

"Sinfonia da Necrópole" é um exemplar nacional inovador, equilibra humor negro e crítica social, tem leveza mesmo abordando temas pesados. Com personagens graciosos, como Deodato e seu tio e outras como a de um louco hipocondríaco que vive a procurar o padre, este que come as hóstias quando sente fome, além da mulher que vende coroas e o coveiro Humberto, eles dão ao filme um ar simpático e divertido. Os musicais, sem dúvida, são a grande atração, destaque para a "Canção dos Coveiros", "Canção dos Caixões" e "Canção da Metrópole", que com perspicácia e originalidade diz sobre o crescimento populacional das metrópoles e as mudanças e as adaptações que ocorrem por conta disso nas necrópoles. 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Aquarius

"Aquarius" (2016) dirigido pelo pernambucano Kleber Mendonça Filho (O Som ao Redor - 2012) e estrelado por Sônia Braga traz uma narrativa com diversos temas que se entrelaçam, mas, sobretudo, diz sobre memórias e resistência. É uma obra de arte poética.
Clara (Sônia Braga), 65 anos de idade, é uma escritora e crítica de música aposentada. Ela é viúva, mãe de três filhos adultos, e moradora de um apartamento repleto de livros e discos no Bairro de Boa Viagem, num edifício chamado Aquarius. Interessada em construir um novo prédio no espaço, os responsáveis por uma construtora conseguiram adquirir quase todos os apartamentos do prédio, menos o dela. Por mais que tenha deixado bem claro que não pretende vendê-lo, Clara sofre todo tipo de assédio e ameaça para que mude de ideia.
Sônia Braga é uma fortaleza em cena, mulher que já passou por inúmeros desafios e que carrega cicatrizes, uma delas, literalmente. Ela faz parte da classe média alta, não tem problemas financeiros, é dona de vários apartamentos, mas prefere morar onde foi criada e criou seus filhos, no Bairro de Boa Viagem, no edifício Aquarius que fica de frente para o mar, um lugar repleto de memórias e que abraça a personagem com lembranças. Sozinha, revive momentos escutando seus Lps, esse prédio já não faz parte da paisagem da Recife atual, assim como os móveis que a cercam e a própria protagonista, tem uma frase que diz muito sobre isso, "se você gosta é vintage, seu eu gosto é velho". Com toda a especulação imobiliária que existe e perante os assédios da construtora que anseia vorazmente dar fim ao Aquarius e erguer um moderno e luxuoso edifício, Clara resiste, é a única moradora e com o passar dos dias vai enfrentando a impertinência do jovem empreendedor Diego (Humberto Carrão), que não poupa artifícios para tirar Clara do seu lar. Este personagem é nojento, representa a arrogância, a sujeira e os males que trazem consigo ao empregar falsas ideologias humanistas com ideais de empreendedorismo, para, na verdade, obter reconhecimento e muito dinheiro. Clara enfrenta olhos nos olhos, serena, ouvindo e respondendo à altura, são diálogos críticos que colocam em evidência o poder concentrado nas mãos de apenas alguns e que é passado de geração em geração, Clara combate com maestria o jovem com sangue nos olhos que fez curso de Business.

"É impressionante o que se diz, que falta educação. E sempre se referem a gente pobre. Mas falta de educação não tá em gente pobre não, tá em gente rica e abastada como você, sabe? Gente de elite, que se fala "de elite", que se acha privilegiada, que não entra em fila. Gente como você, que fez "curso de Business" nos Estados Unidos, mas não tem formação humana, não criou caráter, sabe? Quer dizer... O seu caráter é o dinheiro. Portanto, meu amor, você não tem caráter. Só o que você tem é essa carinha de merda."

Clara não é perfeita, é contraditória e prepotente, ela também faz parte desta elite que a está atrapalhando a viver em paz seu cotidiano, a tensão dos conflitos de classes está evidenciado, tem algumas sequências, por exemplo, sobre a empregada ser "quase" da família, de Clara ultrapassar o esgoto que separa a parte rica da pobre para ir à festa de aniversário dela, ou quando surge a lembrança de uma antiga empregada que roubou joias da família, e aí soltam a frase: "Elas roubam e a gente explora. Justo".
"Aquarius" é um filme de contrastes e cheio de camadas, é rico em detalhes e com diálogos pertinentes, além da bela trilha sonora que conversa o tempo todo com a trama. Dividido em três capítulos, "O Cabelo de Clara", "O Amor de Clara" e "O Câncer de Clara", o filme possui cenas sutis, mas de imenso significado, como quando a filha de Clara reclama da ausência da mãe e menospreza sua profissão, o irmão sem dizer uma palavra abre um livro escrito pela mãe e mostra a dedicatória feita. São momentos introspectivos e poéticos, uma gama de temas que vão sendo lançados e amarrados conforme o desenrolar.

É preciso deixar de lado todas as polêmicas extrafílmicas, a política está presente no contexto, claro, a crítica social é forte, mas assisti-lo somente por este viés é sufocar uma obra que mostra inúmeras facetas, é uma pena todo o binarismo, radicalismo em torno, pois a obra é sutil e marcada por uma protagonista complexa que resiste e conserva seu direito de viver como quiser, não é apenas pelo apartamento, também é sobre empoderamento feminino. Leituras é que não faltam, portanto, na essência não é um filme político, mas um filme que abarca uma série de questões importantes com sensibilidade e arte. 

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

A Garota Desconhecida (La Fille Inconnue)

"A Garota Desconhecida" (2016) dirigido pelos irmãos Dardenne (Dois Dias, Uma Noite - 2014) traz novamente a tão aclamada característica dos cineastas, o registro naturalista com a câmera agitada e dramas pessoais envolvidos em crítica social, porém, talvez esse seja o menor trabalho deles, mas o que não quer dizer que seja ruim.
Jenny (Adele Haenel) é uma jovem médica que está prestes a assumir um consultório de atendimento particular, mas antes disso acontecer segue em um endereço atendendo conveniados com a ajuda do estagiário Julien (Olivier Bonnaud). Jenny é séria e autoritária e logo surgem as desavenças com o estagiário, principalmente quando ele trava diante a um menino sofrendo de um ataque epilético, numa noite o proíbe de abrir a porta ao sinal da campainha, pois diz que já acabou o horário de expediente. No outro dia, a polícia aparece em seu consultório comunicando a morte de uma moça não identificada próximo dali e que precisam analisar as imagens da câmera de vigilância, justamente a pessoa da qual Jenny se negou a abrir a porta na noite passada está morta. Sentindo-se culpada Jenny inicia uma busca para saber quem é essa moça, mas ela não se importa em saber quem a matou, o interesse é saber quem ela era.
O longa ganha tons de gênero de investigação policial e o suspense toma conta, a trama segue com a protagonista tentando desvendar a identidade dessa jovem mulher que aparece assustada no vídeo e que mais tarde morre, ela se encontra com várias pessoas que dão informações importantes e pistas cada vez mais intrigantes, Jenny fica praticamente obcecada em obter o nome desta moça, especialmente para tirá-la da parte onde ficam enterrados os indigentes.
Adele Haenel atua com firmeza e autenticidade, tem grandes momentos em cena, para além da investigação que trava, as suas consultas domiciliares revelam uma Jenny muito querida pelos seus pacientes e denota certa fragilidade, por exemplo, quando o menino com câncer toca uma música em sua homenagem, ela chora de maneira contida e diz que apesar de que não será mais sua médica, o visitará. Certamente uma excelente profissional que abdicou da vida pessoal em detrimento do trabalho, perceba que pouco sabemos dela, até porque ela mora no próprio consultório. Jenny desiste da clínica particular depois do episódio da moça e sua frieza inicial se esvai a toda vez que sua campainha toca. Uma transformação significava acontece em Jenny.

Jenny insistentemente tenta encontrar respostas, inclusive fazendo o papel de detetive melhor do que da própria polícia, e descobre-se depois que a moça era uma imigrante africana menor de idade que se prostituía, o que evidencia os temas sociais que são tão caros aos irmãos Dardenne, como a imigração, a crise econômica, etc. 
"A Garota Desconhecida" se arrasta nesta jornada de Jenny repleta de incertezas e mistérios, mas o que no fim das contas Jenny fez foi resgatar o senso de responsabilidade para com o outro, ou seja, um ato humanitário. Uma bela mensagem para abrirem-se as portas.

sábado, 21 de janeiro de 2017

A Vida em um Aquário (Vonarstræti)

"A Vida em um Aquário" (2014) dirigido pelo islandês Baldvin Zophoníasson (Órói - 2010) é um bom drama que carrega várias histórias entrelaçadas, a trama é muito bem construída, porém não há nada que surpreenda, é simples e despretensiosa.
Inspirado em fatos reais na Islândia, descreve três mundos diferentes que colidem violentamente. Mori (Thorstein Bachmann), escritor com problemas com a bebida, Eik (Hera Hilmarsdóttir), uma jovem mãe solteira que trabalha em uma creche e Sölvi (Thorvald David), um ex-jogador de futebol que vê sua vida familiar desmoronar debaixo dele.
Os três protagonistas são interessantes e agregam para a história, Eik trabalha em uma creche, tem uma filha, mas também trabalha como prostituta de luxo para conseguir pagar dívidas, a vemos sempre com um semblante triste e preocupado, Mori é um escritor talentoso com um passado trágico que o atormenta, ele isolou-se e diariamente embebeda-se. Sölvi, depois de largar a profissão de jogador de futebol, se envereda no ramo de investimento bancário, ele é casado e tem uma filha. Ao longo vamos conhecendo-os melhor e em algum momento eles vão se cruzar, trazendo um ar de esperança à trama, especialmente, a relação de amizade que se inicia entre Mori e Eik, um poeta bêbado com uma jovem prostituta, existe uma carência paternal nela e nele um desejo de ser pai, pois Mori perdeu a filha de uma forma trágica, já a relação de Eik com a família é tensa e distante, tudo se explica ao final. Sölvi tem tudo para ser feliz, uma linda mulher, uma filhinha, bens materiais, fama e agora um emprego no banco, mas após saber que precisará viajar para Flórida, uma viagem de luxo num iate cheio de prostitutas e drogas, a relação com a família perde a força e Sölvi começa a repensar sua vida, ele é um ser humano honesto, mas que agora habita em um território permeado de fraudes. Neste meio tempo encontra com Eik que está trabalhando neste iate, entre eles dois a relação não é apenas sexo, há uma troca de afinidades instantânea e que balança a estabilidade de Sölvi. 
O filme causa empatia e percebemos o quanto o acaso pode transformar nossas vidas, o encontro entre pessoas e o compartilhamento de sofrimentos que se transformam em instantes únicos e duradouros. Com ótimas interpretações, cenas belíssimas e diálogos marcantes, principalmente entre Mori e Eik, e mais ainda quando recita as suas poesias cheias de encanto, amargura e solidão.

"Estou dilacerado, caído no lado sombrio, na metade do caminho e a alma mergulhada no moleiro. As árvores vertem lágrimas, as pedras sangram, o frio morde as feridas. Mas o vento silva. Talvez o bloco de gelo seja reflexo do meu eu suspenso. Minhas mãos nunca tão vazias, minha língua nunca tão silenciosa. Eu fito ainda através do gelo e o verde está na raiz. E eu olho pra você, esperando o gelo partir."

"A Vida em um Aquário" é fascinante por colocar três personagens com problemas díspares que se colidem e que de alguma forma transformam seus destinos. Retrata a crise econômica, a ganância dos grandes, relações familiares conturbadas, segredos, hipocrisias e dolorosas feridas que precisam ser cicatrizadas para seguir adiante. 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

O Monstro de Mil Cabeças (Un Monstruo de Mil Cabezas)

"O Monstro de Mil Cabeças" (2015) dirigido por Rodrigo Plá (Deserto Interior - 2008) é um filme direto que retrata o auge do desespero de uma mulher, que em busca de uma solução para que seu marido tenha tratamento médico adequado, toma uma atitude extrema. Acompanhamos esta história com ares de thriller com muita indignação e empatia, diante de um sistema de saúde precário que pouco valoriza o ser humano esse instinto de violência acaba por surgir, mas que por consciência ou falta de coragem não o fazemos. 
Um animal ferido não chora, ele morde. Desesperada em busca do tratamento médico necessário que garantirá o conforto e a dignidade de seu marido – vítima de câncer em estado terminal – Sonia (Jana Raluy) dá início a uma cruzada contra a sua corrupta e negligente companhia de seguro de saúde e seus cúmplices. Ao lado de seu filho (Sebastian Aguirre Boeda), ela embarca em uma espiral vertiginosa de violência e morte. Uma rede de abuso corporativo que vem ultrapassando os limites da América Latina para se tornar um esquema de corrupção global.
É um assunto urgente que é tratado com total crueza, ele é certeiro ao demonstrar todo o descaso, a burocracia e os artifícios usados pelas companhias de seguro no momento em que alguém necessita de ajuda. O marido de Sonia tem câncer e está em estado terminal, mas ela tem esperança e busca um tratamento adequado, então recorre ao seguro que a família paga a mais de 16 anos e pede auxílio, porém a empresa nega por conta de questões burocráticas. É uma saga atrás de médicos e papéis, encurralada e desesperada, pois o tempo não corre a seu favor toma uma decisão drástica junto de seu filho. Vai atrás dos responsáveis e os ameaça com uma arma. 
Baseado no livro homônimo de Laura Santullo, somos convidados a assistir toda essa desesperada trajetória, também podemos observar a história sob o olhar de personagens secundários, a câmera é como se fosse o olho destas pessoas, no começo Sonia fica em segundo plano, menosprezada, ela ganha atenção quando toma a atitude de apontar uma arma para aqueles que podem resolver a questão. E enquanto a trama se desenrola ouvimos os depoimentos do futuro julgamento de Sonia. 

A atmosfera é angustiante e gera mal-estar, a protagonista causa empatia e compreende-se a atitude tomada, pois existem milhares de casos de pessoas que pagam plano de saúde e na hora de usá-lo não são atendidas, ou quando são não cobrem ou negam exames e tratamentos, entre tantas outras coisas.
Jana Raluy está maravilhosa em cena, seu semblante de desespero e cansaço é sustentado o filme todo, o filho a segue e por vários momentos exibe medo e percebe que a mãe se tornou obsessiva. Sonia é surpreendida, pois quando vai atrás da assinatura para começar logo o tratamento de seu marido, percebe que existe uma hierarquia de poder suja e fria e que não irá conseguir subir todos os degraus para obter a justiça almejada.

Destaque para a crueza da história e o quão direta é, claramente uma denúncia aos sistemas de saúde que priorizam somente lucro, a câmera nervosa que acompanha os eventos e a interessante inserção do som como complemento intensificando as emoções.  
"O Monstro de Mil Cabeças" é extremamente realista, acredito que muitas pessoas diante de uma situação semelhante já pensaram em agir com violência, pois é tanto descaso e desprezo que parece que só gritando ou apontando uma arma é que as coisas poderiam dar certo.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Melhores Álbuns de 2016

Segue a lista dos melhores discos lançados em 2016 segundo o meu gosto pessoal, não sigo efetivamente os lançamentos, mas sempre aguardo com ansiedade os álbuns dos artistas que admiro e, que infelizmente, em sua maioria não se configuram na grande cena musical. Outros, no entanto, estão há longos anos no estrelato e ainda assim permanecem criativos e únicos, nesse ano dois grandes nomes (Bowie e Cohen) se foram, mas se despediram com enorme elegância em registros finais maravilhosos, como demonstrado aqui nesta singela listagem há uma imensa variedade de sonoridades, portanto, também uma ótima oportunidade de conhecer novos artistas e também o de resgatar outros. 
*Os números só são uma questão de ordem e não de preferência.
*No final de cada texto deixarei links.

16- Agnes Obel - Citizen of Glass
"Citizen of Glass", terceiro álbum da dinamarquesa Agnes Obel é de um refinamento ímpar, um som minimalista repleto de texturas que trabalha com elementos do trip-folk e pop unidos a referências clássicas, o piano como base se mistura a instrumentos como harpa, violino, violoncelo, marimba e a voz suave de Agnes se eleva limpa e profunda junto a ecos de vozes secundárias. É um obra que tem a aura de um inverno aconchegante cheio de melancolia e doçura. Primoroso! Ouça.

15- Papooz - Green Juice
"Green Juice", álbum de estreia da dupla francesa Papooz, é um som leve, refrescante e ao mesmo tempo sexy, o gênero é intitulado como "tropical garage", uma mistura original entre pop dos anos 60/70 e bossa nova. As vozes andróginas têm uma harmonia incrível e as canções carregam uma junção exótica de ritmos que dão a sensação de um sossego delicioso. Ouça.

14- Imany - The Wrong Kind of War
"The Wrong Kind of War" é o terceiro álbum da francesa Imany, cujo talento é tão lindo quanto ela, sua bela voz rouca transmite força. Este como seus outros trabalhos exibem uma despretensiosidade pouco vista nos dias de hoje, seu som é dotado de simplicidade, letras claras e positivas. Sem dúvidas, um disco para se apreciar pela total naturalidade e espontaneidade. Ouça.

13- Glass Animals - How to be a Human Being
"How to be a Human Being", segundo álbum do Glass Animals, continua a desconstruir o estilo indie do qual faz parte, uma sonoridade peculiar que mescla elementos do hip-hop, R&B, pop e psicodelia com texturas eletrônicas deliciosas e cujas canções celebram experiências humanas das mais variadas. Sedutor e divertido! Ouça.

12- Blues Pills - Lady in Gold
"Lady in Gold" é o segundo disco de estúdio do grupo sueco formado por Elin Larsson (voz), Dorian Sorriaux (guitarra), Zach Anderson (baixo) e André Kvarnström (bateria). O clima psicodélico sessentista continua e de forma ainda mais forte, o som é mergulhado no blues e soul e com certeza para os apreciadores do estilo uma baita banda que resgata essa sonoridade maravilhosa dos anos 60. Ouça.

11- Eric Clapton - I Still Do
Com 50 anos de carreira o lendário Eric Clapton lançou um novo álbum intitulado "I Still Do", uma combinação de duas novas canções e versões clássicas do blues, um trabalho simples e honesto e admiravelmente lindo, Clapton resgata as suas raízes e nos entrega uma declaração de amor à música. Ouça.

10- David Bowie - Blackstar
"Blackstar", o vigésimo quinto álbum de estúdio de David Bowie, foi lançado em 08 de janeiro de 2016, no dia do seu 69º aniversário e dois antes de sua morte. Carregado de uma atmosfera jazzística, melancólica, dolorosa e enigmática, o registro é honesto, criativo, ousado e empático. Um presente de despedida de um artista verdadeiramente talentoso e pungente. Ouça.

09- Leonard Cohen - You Want it Darker
14º álbum de estúdio do cantor e compositor canadense Leonard Cohen, reconhecido pela poesia de suas ótimas letras, neste seu último e tocante trabalho contêm referências religiosas e, principalmente, disserta sobre a sua relação com a morte, um registro íntimo, denso, fúnebre, mas imensamente sereno, um grande presente de despedida de um grande ícone da música mundial. Ouça.

08- Liniker - Remonta
Depois do incrível EP "Cru", eis que o álbum "Remonta" de Liniker e os Caramelows nasce, um dos artistas mais surpreendentes a surgir no cenário musical brasileiro recentemente, o disco flerta com vários gêneros musicais e nos traz um aglomerado de sensações a cada faixa, tecnicamente impecável, autêntico e espontâneo, um frescor maravilhoso. Ouça.

07- L.A Salami - Dancing with Bad Grammar
"Dancing with Bad Grammar", álbum de estreia do músico britânico L.A Salami é permeado pelo folk e o rock, mas ele declara como sendo um blues pós-moderno, mescla elementos do hip hop à guitarra elétrica, suas influências vão de Bob Dylan, Neil Young, Elliott Smith, Joni Mitchell a Alex Turner. O disco exibe canções que dizem sobre as dificuldades do dia a dia e a política coroadas pela sensibilidade e poesia. Ouça.

06- Mohsen Namjoo - Personal Cipher


Considerado o Bob Dylan do Irã, Mohsen Namjoo apresenta seu oitavo disco de estúdio e sexto fora do Irã (Namjoo foi exilado), intitulado "Personal Cipher", é mais uma obra de arte deste artista inovador que une música contemporânea à tradições persas, ele traz a riqueza cultural do seu país juntamente a ritmos ocidentais, como o blues. Há uma gama de estilos e ainda poesias proferidas em meio as músicas, o que garante um tom emocional. Lindo álbum! Ouça.

05- Blubell - Confissões de Camarim
"Confissões de Camarim", quinto álbum da maravilhosa Blubell é simples e suave, traz o jazz, bolero, rock e o pop com um clima leve, facilmente nos transporta para cenários super agradáveis, voz e melodia em perfeita harmonia, a música de Blubell parece pertencer a outra época. Ouça.

04- Charles Bradley - Changes
A história de Charles Bradley é incrível, inspirado por James Brown decidiu viver o sonho da música, porém ocorreram empecilhos e passou por inúmeras dificuldades, só conseguiu se sobressair no meio musical aos 62 anos de idade, "Changes" é seu terceiro álbum, um puro soul com pitadas de funk, profundamente emocional. O álbum traz uma belíssima releitura da clássica canção de Black Sabbath, "Changes", que dá título ao disco. Uma obra de essência! Ouça.

03- Fantastic Negrito - The Last Days of Oakland
"The Last Days of Oakland", projeto de Xavier Dphrepaulezz, é um blues raivoso, uma poderosa mistura de black music, blues, jazz e uma atitude punk. A vida do músico marcada por difíceis e cortantes experiências só o conduziram para a sua fase de agora, como ele mesmo diz, precisou nascer três vezes, suas canções retratam essas vivências e por isso chegam tão intensas e viscerais. Ouça.

02- Rotting Christ - Rituals
"Rituals", 12ª disco da banda Rotting Christ, uma das bandas de black metal mais criativas, traz neste novo trabalho uma sequência impressionante de músicas, a cada faixa um ritual antigo ocultista de diversas civilizações. Incorpora várias vertentes do metal, como atmosférica, doom, folclórica, gótica e industrial ao peso extremo do black metal, o uso dos vocais em alternados timbres é outra característica interessante, a sonoridade é espetacular e faz com que a banda que está na ativa desde os anos 90 continue a soar como nova, algo bem difícil dentro do universo do metal extremo. Destaque para "Les Litanes de Satan" que tem a participação de Michael Locher, vocalista da banda suíça Samael, lendo trechos de "As Flores do Mal", de Charles Baudelaire. Ouça.

1- Deluxe - Stachelight
"Stachelight", segundo álbum da banda francesa Deluxe é uma experiência satisfatória, uma mistura eletrizante de ritmos, é o pop moderno, um pouco de hip hop, funk, jazz, dance, e a espontaneidade, característica dos músicos de rua (eles originalmente tocavam em praças, estações de metrô na cidade de Aix-en-Provence), são músicos livres e trazem neste disco uma sonoridade inovadora. Ouça.

Outros destaques
"Day Breaks", sexto álbum de estúdio de Norah Jones, neste ela retorna ao jazz de forma magistral, um belo, suave e nostálgico registro. Ouça.
"White Bear", segundo álbum da banda britânica Temperance Movement, traz uma mistura de melodias que resgatam o rock antigo, blues e hard rock no melhor estilo. Ouça.
"Detour", 12º álbum de estúdio de Cyndi Lauper. Dessa vez a cantora optou por homenagear grandes nomes da música country. Ouça.
"Canções Eróticas de Ninar", do octogenário Tom Zé, um dos artistas mais subestimados do Brasil, apresenta seu 28º disco, curioso e instigante trata sobre o sexo. As canções têm um tom divertido ao contar as lembranças e experiências infantis de Tom Zé em Irará, na Bahia. Ouça.
"22, a Million", terceiro álbum de Bon Iver é complexo, profundo e inovador, é uma viagem sonora imersiva, melodias, estilos e instrumentação variados, é uma banda densa e com uma musicalidade ímpar. Ouça.
"Restart", terceiro álbum da portuguesa Aurea, traz uma atmosfera de soul e jazz com um 'bocadinho' de pop, uma ótima artista que se entrega, um disco delicioso e com uma energia mais séria. Ouça.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Eu Sou Sua (Jeg Er Din)

"Eu Sou Sua" (2013) dirigido por Iram Haq é um filme que coloca em foco uma personagem feminina que busca constantemente ser amada e que se permite viver de acordo com a sua vontade apesar de ter uma família religiosa e conservadora. A história é contada de maneira fria justamente para evidenciar essa falta de amor que conduz a vida da protagonista. 
Mina (Amrita Acharia) é uma jovem mãe solteira que vive em Oslo e passa parte da semana com Felix, seu filho de seis anos. Ela tem dupla nacionalidade, norueguesa e paquistanesa, e uma relação conturbada com sua família. Mina está constantemente procurando por amor e tem relações com diversos homens, mas nenhum de seus relacionamentos traz qualquer esperança de durar por muito tempo. 
O longa disserta sobre escolhas e as suas consequências. Mina escolheu ter uma vida mais liberal independente de sua família tradicional, que a repudia em todos os momentos em que os visita, ela tem um filho de seis anos do qual tem a guarda compartilhada com o ex-marido, mas não fica presa apenas ao papel de mãe, corre atrás de seu sonho que é ser atriz e se apaixona facilmente, porém não cria vínculos devido o tratamento dos homens com quem se relaciona, eles não a levam a sério por se tratar de uma mulher livre. Em dado momento larga sua vida na Noruega para viver uma forte paixão com um roteirista sueco, no início ele encara o fato dela ter um filho e o acolhe em sua casa, mas o relacionamento ganha aspecto de rotina e seu namorado Jesper (Ola Rapace) não quer ter esse tipo de relação. Só que mesmo depois de dizer isso e ela ter ido embora a manuseia como bem quer. Quanta decepção para Mina, ela escolheu trilhar caminhos diferentes, deixando de lado crenças, tradições para viver livremente e buscar a sua felicidade, mas suas tentativas caem sempre na solidão.
O tom do filme é realista e cru, mostra todo o machismo entranhado na sociedade, as cenas em que a família a repudia por não seguir suas regras é de chorar ao ver tanta ignorância, seus encontros casuais com homens também conferem ao longa uma carga dramática, são situações que não agregam, apenas aumentam o vazio. Mina faz suas escolhas sem medo, mas o que volta para ela é incompreensão e desamor. Mina não deseja grandes coisas, ela quer ser respeitada e amada.

O preço que se paga para viver livremente e não de acordo como querem é alto, é saber que essa escolha é um caminhar solitário e geralmente repleto de tentativas falhas, pois existem uma porção de empecilhos, como o longa exemplifica, o machismo, o conservadorismo religioso, os papéis sociais destinados à mulher, é quase impossível ultrapassar essas barreiras. Mina é uma mulher carente que está em busca, qualquer demonstração de afeto a atinge fazendo-a acreditar e depois sofrer as consequências. É o retrato de uma vida excruciante.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Califórnia

"Califórnia" (2015) dirigido por Marina Person é um filme delicado que retrata a difícil, porém maravilhosa fase da adolescência. Sob a perspectiva feminina observamos todas as descobertas vivenciadas pela protagonista, seja o doce e o amargo da paixão, os frescos sonhos, as dúvidas, as amizades, e a formação de identidade. 
O ano é 1984. Estela (Clara Gallo) vive a conturbada passagem pela adolescência. O sexo, os amores, as amizades; tudo parece muito complicado. Seu tio Carlos (Caio Blat) é seu maior herói, e a viagem à Califórnia para visitá-lo, seu grande sonho. Mas tudo desaba quando ele volta magro, fraco e doente. Entre crises e descobertas, Estela irá encarar uma realidade que mudará, definitivamente, sua forma de ver o mundo.
Estela ou Teca acaba de entrar para o universo das descobertas adolescentes, suas referências musicais vêm do rock, graças a seu tio Carlos que mora na ensolarada Califórnia e lhe apresenta sempre as novidades musicais, eles trocam cartas e gravam fitas cassetes trocando ideias, existe um carinho imenso entre Estela e o tio. Seu maior sonho é ir visitá-lo e para isso abriu mão de sua festa de 15 anos para ter essa viagem. Teca conta os dias para essa aventura, fala para suas amigas sobre e enquanto isso vive suas descobertas, se apaixona pelo menino popular da escola, se desilude e encontra em JM (Caio Horowicz), considerado estranho por todos uma relação repleta de afinidades. Um dia, Estela é pega de surpresa com a volta do tio que está debilitado, ela acaba frustrada, mas compreende e fica ao lado dele.
O roteiro tem leveza e a aura magnética dos anos 80 é perfeita, realmente ativa a nostalgia e imergimos nesta história tão doce e ao mesmo tempo densa, depois que o tio de Teca retorna doente, as nuances da personagem se tornam mais pesadas, ela vai crescendo interiormente, esse período foi marcado pela chegada da Aids e pelo preconceito, já que não se sabia muito sobre a doença e também ao relacioná-la com a homossexualidade. Dentro desta questão o personagem JM nunca deixa claro a sua sexualidade, tem um diálogo muito bom entre os dois que ele diz que isso não importa, rotular para quê afinal. 
"Califórnia" é uma jornada de autoconhecimento muito bonita e que causa empatia, a paixão pela música, o rock especificamente, não é somente um hobby, mas uma grande aliada à sua formação, e Marina Person nos presenteia com uma trilha sonora espetacular, David Bowie, New Order, Joy Division, The Smiths e com imensa importância na trama The Cure, a canção "Killing an Arab", especialmente, que marca a amizade/romance de Estela e JM - que se caracteriza como seu ídolo Robert Smith, aliás, o livro de Camus, "O Estrangeiro", da qual a música foi inspirada é dado por JM a Estela. As bandas nacionais também compõem esse belo cenário, Blitz, Kid Abelha, Titãs, Os Paralamas do Sucesso, e Metrô com a inesquecível música "Beat Acelerado". 

Além da trilha sonora que é um deleite, a ambientação de época é um lindo trabalho, simples e eficaz nos transporta aos anos 80. É um drama sensível que faz um retrato das vivências de uma adolescente com todos seus percalços e descobertas. Cativa pela sinceridade e sutilezas, as atuações são ótimas, Clara Gallo e Caio Horowicz em sintonia total. É um filme que surpreende pela leveza, a aura nostálgica e a importância aos conflitos adolescentes, como o personagem de Caio Blat diz à sobrinha em determinado momento: "Nossos problemas parecem maiores, pois são nossos".

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Elle

"Elle" (2016) dirigido por Paul Verhoeven (Showgirls - 1995) traz uma trama instigante e recheada de camadas, a protagonista vivida por Isabelle Huppert - sempre sublime em cena - nos confunde tamanha a sua complexidade, muitas questões passam por nossa mente enquanto acompanhamos as suas atitudes, esse filme é uma experiência inquietante por ser provocador e por colocar a natureza humana de forma tão crua. Ao retratar uma personagem feminina controversa os sentimentos causados são dos mais variados, desde empatia a irritação e repulsa, é difícil compreender o jogo que ela inicia, Michèle é ousada, sarcástica, domina todos ao seu redor e muitas vezes até sem perceber, algo quase doentio.
Baseado no livro "Oh..." de Philippe Djian, Michèle (Isabelle Huppert) é a executiva-chefe de uma empresa de videogames, a qual administra do mesmo jeito que administra sua vida amorosa e sentimental: com mão de ferro, organizando tudo de maneira precisa e ordenada. Sua rotina é quebrada quando ela é atacada por um desconhecido, dentro de sua própria casa. No entanto, ela decide não deixar que isso a abale. O problema é que o agressor misterioso ainda não desistiu dela.
A temática é delicada e a visão que Verhoeven entrega é inusitada e perturbadora, a frieza domina o filme e se inicia com Michèle sendo estuprada enquanto seu gato olha a situação indiferente, ao invés de se abalar Michèle limpa o ambiente, toma um banho, segue sua rotina e analisa o crime de diferentes formas, como um acontecimento trágico ou mesmo banal. O estuprador continua a rondar sua casa e quando o episódio volta a acontecer e consegue desmascarar o agressor, Michèle transforma o ato em algo prazeroso, o que revela a faceta obsessiva e psicopata dela, o estupro desencadeou o compartilhamento de dois seres doentios que se satisfazem com um jogo imoral. 
Michèle é estranha, o modo como se relaciona com as pessoas próximas, como lida com o trabalho, um local essencialmente masculino, suas reações são anormais, o estupro só evidenciou a personalidade dominadora dela, os traumas do passado que envolveram seu pai, um serial killer famoso, por exemplo, é intrigante e chocante, aliás, parece ser a única coisa que desestrutura seu ser. Interessante que ela se separou do marido porque foi agredida, mas aceita ser violentada por um desconhecido, sem contar que ela não se importa, a frieza é sua característica, ela trai sua melhor amiga e companheira de trabalho com o marido dela. É preciso entender que o roteiro não quer discutir o estupro em si, mas o como essa mulher reagiu e o como se intensificou as loucuras e perversões que havia dentro dela. É um estudo de personagem complexo.

"Elle" contém cenas que nos pega de surpresa por conta da personalidade de Michèle, o que inicialmente parece ser somente uma vingança, onde Michèle tenta descobrir seu agressor, acaba tomando rumos inesperados. Essa mulher coloca todos a sua disposição, os domina num jogo de gato e rato tenso e sarcástico. 
Provocativo, inquietante e perverso, a atuação de Huppert é magnânima, sempre às voltas da violência ela é um enigma a se decifrar, manipula-nos até o último segundo. Repleto de camadas é um filme para se analisar em detalhes. O diretor holandês Paul Verhoeven retorna após um recesso de 10 anos ainda mais potente e inovador. Brilhante execução!

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

A Incrível Aventura de Rick Baker (Hunt for the Wilderpeople)

"A Incrível Aventura de Rick Baker" (2016) dirigido pelo neozelandês Taika Waititi (O Que Fazemos nas Sombras - 2014) é um filme singelo e encantador, tem leveza ao abordar conceitos de família, vida, morte, natureza e liberdade, a jornada realmente é incrível, pois proporciona descobertas valiosas. O humor peculiar é um dos pontos fortes, é inteligente e sincero. 
Baseado no livro "Wild Pork and Watercress" de Barry Crump, um casal de caçadores que vive numa remota fazenda na Nova Zelândia resolve depois de muitos anos de casados adotar um problemático garoto chamado Rick (Julian Dennison). Depois de um incidente na casa do casal, Rick decide se aventurar pela região, e para tal precisará da ajuda de seu tio / pai adotivo Hector (Sam Neill) para que sobreviva na mata.
Para Rick esta adoção é a última opção, se ele não se comportar o Estado toma a custódia e estará à deriva. Ele chega quieto e com a cara amarrada, mas Bella (Rima Te Wiata) é uma pessoa tão aconchegante que conquista o menino, aos poucos se sente em casa e vai expondo seu lado carente e pueril. Após a morte de Bella e ser supostamente rejeitado por Hector decide fugir para a floresta, o tio Hec apesar de ser ranzinza e não querer inicialmente criar vínculos com Rick vai atrás dele e os dois iniciam uma caminhada edificante cheia de obstáculos e descobertas. Enquanto eles fogem do serviço social encontram-se diante a liberdade. Esses dois personagens tão distintos desenvolvem uma forte relação, aos poucos e sem perceberem totalmente.
Alguns temas são expostos ao longo da trama, como aceitação e elos afetivos, simplesmente lindo o motivo de Bella querer adotar Rick. A liberdade que Rick encontrou junto a seu tio lhe abriu diversos horizontes, certamente uma evolução, pois quando chegou não havia perspectivas, mas nada como o amor, a compaixão e uma experiência em meio à natureza.
A aventura vivida por Rick Baker e seu tio é genuína e mesmo que seja surreal em algumas partes encanta e esbanja ternura, são personagens que despertam sentimentos bons e proporciona uma reavaliação de nossas próprias vidas, ao longo esquecemos de olhar com mais carinho para os outros e para nós mesmos, endurecemos perante acontecimentos ruins, por isso se permitir a uma jornada é sempre válido, ajuda a ressignificar a vida e valorizar o que importa de verdade. Nossa vida é tão curta e incerta. O filme delicadamente coloca em questão esses aspectos, as relações, as dificuldades, a superação, a vida, a morte, a aceitação de si mesmo, a reconexão com a natureza, e o amor e a compaixão. 
A fotografia é esplendorosa, a beleza da Nova Zelândia é explorada nos detalhes e, portanto, garante uma fotografia de encher os olhos, os diálogos é outro ponto a se destacar, espertos e dotados de inteligência e sensibilidade.

Além dos protagonistas tem algumas aparições de personagens memoráveis, como a do próprio diretor interpretando um padre que faz um discurso excêntrico e outro é um maluco que eles encontram no caminho interpretado por Rhys Darby.
"A Incrível Aventura de Rick Baker" é um filme simples com uma aura leve, despretensiosa e um tom de comédia próprio de Taika Waititi, também carrega reflexões importantes sobre a vida e ainda nos presenteia com personagens encantadores e cenas inspiradíssimas. 

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Paradise Trips

"Paradise Trips" (2015) dirigido por Raf Reyntjens, conhecido pelos vídeos musicais, como "Papaoutai", de Stromae, coloca em evidência conflitos geracionais, apesar do tema não ser novidade a maneira com que é apresentado faz toda a diferença. É forte, direto e calibra bem o drama com o humor.
Mario (Gene Bervoets) é um motorista de ônibus de férias, que tem sua própria empresa de viagens 'Paradise trips'. A beira de sua própria aposentadoria, Mario tem que levar um grupo de alternativos para um festival psicodélico na Croácia. A viagem logo se transforma em uma viagem fascinante que confronta Mario com seus próprios preconceitos e seu filho (Jeroen Perceval) há muito tempo perdido.
Gravado num festival de música eletrônica na Croácia, eles não deixaram que os visitantes soubessem que ali estava sendo rodado um filme, contrataram figurantes que dançassem em torno e a festa em si ficou ao fundo dando a atmosfera esperada. Uma forma ousada de se gravar um filme, os visitantes reais da festa sempre estão distantes e desfocados, o acampamento foi construído antes do festival começar e com o início da festa as outras tendas foram armadas ao redor. 
Mario topa levar o grupo a um festival, mas quando vê que são hippies se fecha, pois isso lhe traz à memória seu filho, que anos antes denunciou para a polícia por tráfico de drogas, a relação foi cortada e a sua mulher se comunica com o filho escondida, ele não sabe que tem um neto, ao chegar no local conhece algumas pessoas e como sempre os julga vagabundos, por coincidência seu filho está lá também, nesse ponto já está envolvido com um menino que não curte muito aquela vibe e que vem a saber depois que é seu neto. O filho não gosta da ideia de ter seu pai lá e não quer encontrá-lo, mas chega um momento que precisam conversar. 
Há cenas inspiradíssimas regadas a uma viagem psicodélica produzida por cogumelos, Mario encarna o Super Mario Bros, personagem querido por seu neto, recém-descoberto. Muito hilário, e é a partir daí que a mudança começa a surtir efeito, ele se descaracteriza, alivia o semblante e fica disposto a dialogar com o filho.

É uma história dolorosa, mas que traz uma bela transformação de um personagem preconceituoso e turrão, a forma que isso acontece é bonita e gradativa e a relação entre pai e filho não é reconstituída forçosamente.
Gene Bervoets faz um homem cheio de julgamentos e preconceitos, impenetrável. Não expressa amor e tudo lhe parece errado, a vida que o filho leva, por exemplo, fora do padrão capitalista o deixa irritado, e por isso o nega, até que essa festa os aproxima inusitadamente, a convivência com variadas pessoas durante uma semana neste local vai o tornando menos austero, percebe que há inúmeras maneiras de ser feliz, que tudo não precisa ser do jeito que pensa que é. As pessoas escolhem seus caminhos e é assim que deve ser. Ao fim, num diálogo com o filho, ainda muito resistente ao contato do pai, expressa o como a mente desse homem se tornou mais aberta e, consequentemente, o deixando mais leve e pronto para começar a demonstrar amor. O filho apesar das diferenças parece-se com o pai na teimosia e com uma simples frase também expressa que, talvez, esteja aberto para um recomeço. Tão sutil e tão significativo, sem clichês, é direto e real.

"Paradise Trips" tem nuances encantadoras, emociona ao mesmo tempo em que nos tira sorrisos, é inteligente no desenrolar e competente ao passar a mensagem. Coroado por interpretações enternecedoras, e claro, sem deixar de evidenciar a trilha sonora potente que contrapõe com o universo interior de Mario, que aos poucos adentra nessa atmosfera quebrando diversos paradigmas. Um ótimo filme sobre conflitos de geração.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Swiss Army Man

"Swiss Army Man" (2016) dirigido por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, conhecidos como The Daniels, é cinema autoral, singular, bizarro e surpreendente, Daniel Radcliffe e Paul Dano estão fabulosos em cena, a sinergia entre eles é impressionante. O filme remete um pouco a "Um Morto Muito Louco" - 1989 e "Náufrago" - 2000, mas a verdade é que não existem comparações, realmente é um filme muito original e estranho. Segundo os diretores, esse é um filme onde o primeiro peido faz você rir, e o último, faz chorar.
Hank (Paul Dano), um homem perdido no deserto, e sem esperanças, encontra um corpo no meio do caminho. Decidido em ficar amigo do morto, eles vão partir, juntos, em uma jornada surrealista para voltar para casa. Ao mesmo tempo em que Hank descobre que o corpo é a chave para sua sobrevivência, ele é forçado a convencer o morto o quanto vale a pena viver.
É fato que é preciso embarcar na viagem que os diretores propõem e saber olhar além do superficial e da escatologia, há um existencialismo patente na trama. Por detrás do trivial há reflexões importantes, principalmente o de ser você mesmo, se libertar, os gases nada mais são do que uma analogia a isso. O filme disserta sobre solidão, angústia, aceitação, amor, entre outras coisas, pode-se ter variadas interpretações, é alegórico. Ele brinca com o fato do protagonista não se encaixar e estar perdido no mundo, ele quer se matar mas encontra um cadáver que o salva com o peido, a partir de então o torna seu amigo, esse morto começa a falar, a questionar e se deslumbrar com o mundo, pois não lembra de absolutamente nada, ele vê a vida com olhos pueris e sem travas morais, ele também é uma espécie de canivete suíço, serve como fonte de água, seu pênis de bússola, sua boca como machado, seus peidos o impulsionam como um jet ski e uma infinidade de outras serventias. Radcliffe com toda a limitação de seu personagem exibe um timing cômico sensacional, suas poucas expressões são significativas e sua fala arrastada garantem o tom esquisito do longa, Paul Dano está perfeito expondo sua vulnerabilidade e compaixão, causa empatia e certamente merece inúmeros elogios por sua atuação. Esse moço sabe fazer tipos estranhos.
No meio da floresta Hank constrói um universo onírico que representa toda a dor humana, a cena do ônibus em que ele explica a Manny o sentimento quando encontrar a garota por quem é apaixonado, é emocionante. As figuras, as cores, os efeitos, a trilha sonora original é de uma delicadeza absurda. Hank e Manny criam uma forte conexão chegando em alguns momentos, como na cena em que estão submersos num rio, surgir um envolvimento romântico. Os sentimentos envolvidos são muitos e ambíguos.

A imaginação corre solta, uma onda de pensamentos invade, curioso analisar a vida e o como vivemos através de um filme onde se utiliza elementos desagradáveis e inusuais. Quando Manny começa a falar com Hank e pergunta sobre tudo a sua volta, o que é isso, o que é aquilo, se fascina com o mistério da vida e fala tudo o que vem a sua cabeça, Hank diz que ele não pode falar tudo o que pensa, pois a sociedade se escandaliza com certos assuntos, existem códigos morais.
Ao longo do filme observamos que Hank ao segurar seus peidos por medo do que os outros iriam pensar foi tão ruim quanto ter segurado seus sentimentos em relação a garota que via no ônibus, a falta de coragem e passividade o atormenta. Sempre receoso deixou de arriscar não abrindo espaço para possíveis possibilidades, sejam elas positivas ou negativas. 

"Swiss Army Man" é extremamente criativo, peculiar, belo e gracioso, a trilha sonora é um deleite e traz composições originais incríveis interpretadas por Dano e Radcliffe, como "Cotton Eye Joe", "When I Think About Mom", "History Of The Universe", "Montage", "Goodbye/Hello", entre outras. Tudo nesse filme é único e inusitado, explora com encanto e poesia o como é difícil se expressar, falar sobre o que sentimos, se libertar e ser quem realmente somos.